Boecio de Libera

Alain de Libera — Breve nota sobre Boécio

1. Boécio e a metafísica “greco-latina” — A diferença entre “ser” (esse) e “ente” (quod est), como a exprimem os Opuscula sacra de Boécio, é o ponto de partida da reflexão metafísica dos latinos. Seu desenrolar completo passa pela assimilação da doutrina da homonímia e da sinonímia formulada no comentário sobre as Categorias e pela generalização da teoria da predicação teológica exposta no capítulo IV do De Trinitate.

O De hebdomadibus distingue o ente e seu ser, e nesse ser o fato de ser algo, absolutamente falando (tantum esse aliquid), característico da substância, e o fato de ser algo em um ente (esse aliquid in eo uod est), característico do acidente. Essa dupla diferença, que estrutura o conjunto do criado — isto é, do composto — e solicita dois modos distintos de participação, é unificada no ser simples que é Deus: para a criatura, uma coisa é ser, outra coisa é aquilo que é; Deus, ao contrário, é de modo unitário (unum habet) tanto o que ele é quanto aquilo que é. A diferença ôntico-ontológica, que, atravessando e produzindo o criado, se perde em Deus é trabalhada conceitualmente numa ontologia que não é a de Aristóteles, mas a que Boécio herda e transpõe de suas fontes gregas tardias: a distinção entre categorias substanciais (substância, quantidade, qualidade) e acidentais (as sete últimas categorias) expostas no De Trinitate, constitui o fundamento da primeira teoria latina das categorias — um modelo que sofre a concorrência da apresentação mais “aristotélica” das Categoriae Decem do pseudo-Agostinho (Paraphrasis Themistiana), opondo a categoria de substância às “nove categorias do acidente”.

Do século IX (João Scot Erígena, Periphyseon, I, 465A) ao século XII (Pedro Lombardo, Sent. I, 22) a problemática da “transferência” das categorias na predicação “divina” explora a tese de Boécio, segundo a qual “todas as categorias mudam de sentido quando são aplicadas a Deus”. A ontologia “boeciana” culmina na ontologia de Gilberto de Poitiers.