Boaventura — Itinerário da mente para Deus
Capítulo III A CONTEMPLAÇÃO DE DEUS POR MEIO DE SUA IMAGEM IMPRESSA NAS POTÊNCIAS DA ALMA
1 Os dois primeiros degraus percorridos até agora nos guiaram a Deus pelos seus vestígios — através dos quais Ele brilha em todas as criaturas — e nos fizeram reentrar em nós mesmos, isto é, na nossa alma, onde reluz a imagem de Deus. Penetrando, pois, agora em nós mesmos neste terceiro degrau e como que abandonando o mundo sensível — que é como o adro externo do lugar ao qual temos de chegar — devemos esforçar-nos por ver a Deus, como num espelho, no seu templo (cf. Êx 26,34-35), isto é, na parte anterior do Tabernáculo. Aqui a luz da verdade brilha à maneira de candelabro perante nossa alma, na qual resplandece a imagem da beatíssima Trindade.
Entra, pois, ó homem, em ti mesmo e observa com que ardor tua alma se ama a si própria. Ora, ela não poderia amar-se, se não se conhecesse. Nem poderia conhecer-se, se não tivesse lembrança de si mesma. Porque nossa inteligência não apreende senão aquelas coisas que a memória torna presentes.
Vê, portanto, não com os olhos da carne mas com os olhos da razão, como nossa alma possui três potências. Considera as atividades e as relações mútuas destas três potências e poderás ver a Deus em ti mesmo como na sua imagem. Isso significa ver a Deus “por um espelho e escuramente” (1 Cor 13,12).
2 A atividade da memória1 consiste em reter e representar não só as coisas presentes, corpóreas e temporais, mas também as contingentes, simples e eternas. Retém as coisas passadas com a lembrança, as presentes com a visão, as futuras com a previsão. Retém as coisas simples, tais como os princípios das quantidades contínuas e numéricas (Cf. Aristóteles, De Praedicam., cap. De Quanto.) — o ponto, o instante, a unidade — sem o que seria impossível recordar ou pensar aquelas coisas que delas decorrem. Retém também os princípios e os axiomas das ciências como eternos e para sempre. Porque, enquanto tiver uso da razão, jamais pode esquecê-los e, se lhos propusermos, não poderá deixar de aprová-los e dar-lhes o seu assentimento. E isso não como se ela começasse a compreender verdades novas, mas como se reconhecesse verdades que lhe são inatas e familiares.2 Para nos convencermos, basta propormos a alguém este princípio: “Qualquer coisa ou é afirmada ou é negada”. Ou ainda este outro: “O todo é maior que sua parte”. Ou qualquer outro princípio que a razão admita sem poder contradizê-lo (Cf. Aristóteles, I Poster., cap. 8).
Retendo atualmente todas as coisas temporais — passadas, presentes e futuras — a memória nos oferece a imagem da eternidade, cujo presente indivisível estende-se a todos os tempos.
Retendo as coisas simples, mostra que estas ideias não lhe vêm somente das imagens exteriores, mas também dum princípio superior e que ela tem em si mesma noções que não podem derivar dos sentidos ou das imagens sensíveis (Cf. cap. II, nota 7 e, neste cap., nota 3).
Retendo os princípios e os axiomas das ciências, faz-nos ver que a memória traz em si mesma uma luz imutável, sempre presente, na qual conserva a lembrança das verdades que nunca mudam.
As atividades da memória provam, portanto, que a alma é imagem e semelhança de Deus. Pela sua memória a alma está de tal modo presente a si mesma e Deus lhe está igualmente tão presente, que em ato O conhece e é potencialmente “capaz de possuí-lo e fruir d’Ele” (S. Agostinho, XIV De Trinitate, cap. 8, n. 12).
3 A atividade da inteligência consiste em compreender os termos, as proposições e as conclusões.
Em primeiro lugar, a inteligência entende o significado dum termo quando, por meio duma definição, compreende o que esta coisa é. Toda definição, porém, faz-se por meio de termos gerais, os quais, por sua vez, se definem por termos mais gerais, até chegarmos às noções supremas e totalmente gerais, sem cujo conhecimento não podemos dar a definição dum termo inferior. Se, pois, ignoramos o que é o ser em si, é impossível definir perfeitamente uma substância específica. E, para conhecer bem o ser em si, é preciso conhecer suas propriedades, isto é, a unidade, a verdade e a bondade.
Ora, o ser pode conceber-se como completo ou incompleto, como perfeito ou imperfeito, como ser em potência ou ser em ato, como ser sob um certo aspecto ou como ser absoluto. Ou como ser parcial ou total, como ser passageiro ou permanente, como ser condicionado ou incondicionado, como ser misturado de não-ser ou como ser puro, como ser dependente ou absoluto, como ser posterior ou anterior, como ser variável ou imutável, como ser simples ou composto.
“Aquilo que é negativo e defeituoso não pode ser conhecido senão por meio do que é positivo” (são palavras do filósofo árabe Averróis, III De Anima, text. 25). Por isso, nossa inteligência nunca poderá definir adequadamente um ser criado, se antes não tiver a ideia dum Ser puríssimo, atualíssimo, completíssimo e absoluto. Este é o Ser por essência e eterno, no qual se acham na sua pureza as razões de todas as criaturas (Cf. cap. II, nota 7 e, no presente cap., nota 3). Como, efetivamente, nossa inteligência poderia saber que um ser é defeituoso e incompleto, se não tivesse a ideia dum Ser absolutamente perfeito? E o mesmo diga-se das outras condições do ser.
Em segundo lugar, a nossa inteligência compreende realmente uma proposição, quando sabe com certeza que ela é verdadeira. E saber isso é saber verdadeiramente, porque se tem certeza de não se enganar. Com efeito, a inteligência sabe que uma proposição é verdadeira quando não pode ser de outra maneira e que, por conseguinte, é uma verdade imutável. Mas, como o nosso espírito está sujeito à mutação, não poderia ver a verdade de maneira imutável sem o socorro duma luz invariável — a qual não pode ser uma criatura mutável. Se ele conhece a verdade, conhece-a, pois, naquela luz que “ilumina todo homem que vem a este mundo”, a qual é “a verdadeira Luz” e “o Verbo que no princípio estava em Deus” (Jo 1,1-9).
A nossa inteligência, finalmente, só então percebe verdadeiramente o significado duma conclusão, quando vê que essa conclusão segue necessariamente das premissas. E vê isso não só nas verdades necessárias, mas também nas verdades contingentes, como neste exemplo: “O homem corre. Logo, se move”. Esta relação necessária entre as premissas e a inferência é percebida por nossa inteligência não apenas nos seres reais, mas também nos possíveis. É sempre verdadeira, por exemplo, a conclusão: “O homem corre. Logo, se move”, quer o homem exista, quer não exista.
A necessidade duma conclusão não deriva, por conseguinte, da existência material da coisa — porque ela é contingente — nem da sua existência na nossa alma — porque, se não existisse na realidade, seria apenas uma ficção. Tal necessidade deriva das ideias-arquétipos da Arte divina, de acordo com as quais foram criadas as relações mútuas das coisas segundo as representações do Exemplar eterno.
Todo espírito, pois, que raciocina — diz S. Agostinho no seu tratado “Sobre a Verdadeira Religião” — toma luz daquela Verdade eterna e é a ela que se esforça por chegar (De Vera Religione, cap. 39, n. 72). A conclusão evidente do que se disse é que nossa inteligência está unida à Verdade eterna, porque sem o socorro de sua luz nada podemos conhecer com certeza.
Tu, então, podes contemplar por ti mesmo esta Verdade que te ensina, se as paixões e as imagens terrestres não to impedissem, interpondo-se como uma nuvem entre ti e o raio da verdade.
4 A atividade da vontade se funda na deliberação, no juízo e no desejo.
A deliberação consiste em procurar ver se é melhor esta ou aquela coisa. Ora, o melhor não pode ser assim chamado, se não se aproximar do ótimo. E esta aproximação é tanto maior ou menor, quanto mais ou menos perfeita fôr a semelhança. Portanto, para saber se uma coisa é melhor que outra, é necessário conhecer seu grau de semelhança com o Bem supremo. Mas é impossível conhecer este grau de semelhança, se o Bem supremo fôr desconhecido. Eu não posso saber se determinado indivíduo se parece com Pedro, se não conhecer a Pedro. Aquele, pois, que delibera tem necessariamente impresso no seu espírito o conhecimento do sumo Bem.
Para que seja certo o juízo emitido sobre as coisas que são objeto da deliberação, é preciso uma lei. Ora, esta lei não produz a certeza, a não ser quando estamos seguros de sua retidão e de que ela está acima de todo juízo nosso. Nossa mente, porém, emite juízos sobre si mesma. Não podendo, pois, emitir juízos sobre a lei que serve de regra aos seus juízos, segue-se disso que esta lei é superior à nossa mente e que nós julgamos unicamente pela sua presença em nós mesmos. Mas nada é superior à nossa mente senão Aquele que a formou.
Por conseguinte, nossa faculdade deliberativa chega a atingir as leis divinas, se de seu ato faz uma análise completa.
Por fim, o desejo tem por objeto principal aquilo que mais nos atrai. Ora, o que mais nos atrai é aquilo que mais amamos. E o principal objeto do amor é a felicidade. Mas a felicidade não se encontra senão no sumo Bem e nosso Fim último. Assim, em todos os seus desejos, o homem tende para o soberano Bem ou para aquilo que até Ele conduz. Ou mesmo para o que possui alguma semelhança com o sumo Bem. Tanta é a atração do sumo Bem, que a criatura nada pode amar sem desejá-l’O. Só se engana e cai no erro, quando toma a imagem e uma vã imaginação pela realidade.
Vê, pois, como a alma está próxima de Deus. Vê como a memória nos conduz à eternidade, a inteligência à verdade, a vontade à sua bondade soberana, de acordo com as suas respectivas operações.3
5 A ordem, a origem e a mútua relação destas três faculdades nos conduzem até à própria Santíssima Trindade.
Efetivamente, da memória nasce a inteligência, que é como sua filha, porque entendemos só quando a imagem do objeto conservado pela memória se reflete na inteligência. Esta imagem torna-se então “verbo”. Da memória e da inteligência é espirado o amor como nexo que unifica as duas.
Estas três coisas — a mente que gera, o verbo e o amor — existem na alma como memória, inteligência e vontade, as quais são consubstanciais, coexistentes, coiguais e se compenetram mutuamente.
Se, portanto, Deus é perfeito espírito, tem então uma memória, uma inteligência e uma vontade4, as quais necessariamente se distinguem porque uma procede da outra. Distinguem-se, porém, não essencialmente nem acidentalmente, mas pessoalmente.
Por isso, quando nossa alma se considera a si mesma, eleva-se, destarte, como por meio dum espelho, à contemplação da Santíssima Trindade: o Pai, o Verbo e o Amor — três Pessoas coeternas, coiguais e consubstanciais, existentes uma na outra sem se confundirem e, no entanto, todas as três não são senão um só Deus.
6 Nesta contemplação da Santíssima Trindade, a alma, mediante as suas três faculdades que a tornam imagem de Deus, é ajudada pelas luzes das ciências, que a aperfeiçoam, a informam e representam a Santíssima Trindade de três maneiras.
Toda filosofia, com efeito, é natural, racional ou moral.
A primeira trata da causa do ser — e nos conduz ao poder do Pai. A segunda se ocupa das leis do conhecimento — e nos leva à sabedoria do Verbo. A terceira fornece as normas duma vida honesta — e nos conduz à bondade do Espírito Santo.
A filosofia natural, por sua vez, divide-se em metafísica, matemática e física. A metafísica ocupa-se das essências das coisas; a matemática, dos números e das figuras; a física, das substâncias, forças e energias. Destarte a primeira nos conduz ao primeiro Princípio — o Pai; a segunda, à sua Imagem — o Filho; a terceira, ao Dom5 do Pai e do Filho — o Espírito Santo.
A filosofia racional, ao invés, se divide em gramática — que nos torna capazes de exprimir ideias — lógica — que nos torna perspicazes para a argumentação — e a retórica — que nos ensina a persuadir e comover. Estas três ramificações da filosofia racional também insinuam o mistério da Santíssima Trindade.
A filosofia moral, finalmente, se divide em individual, familiar e política. A primeira insinua a inascibilidade do primeiro Princípio — o Pai; — a segunda, a relação familiar do Filho; a terceira, a liberalidade do Espírito Santo.6
7 Todas estas ciências possuem seus princípios certos e infalíveis, como luzes e raios que descem da Lei eterna à nossa alma. Assim, ela, iluminada e penetrada de tanto esplendor, pode por si mesma — se não fôr cega — elevar-se à contemplação da Luz eterna. A irradiação e a consideração desta Luz enchem de admiração aos sábios. Mas, pelo contrário, confundem os insensatos que rejeitam a Fé, sem a qual nada podem compreender. Verifica-se, destarte, a palavra do Profeta:
“Do alto dos montes eternos,
tu, ó Deus,
enviaste uma luz admirável
e a perturbação se apoderou do coração dos insensatos” (Sl 75,5-6).
NOTES
Nesta exposição — perpassada, aliás, do influxo de S. Agostinho — o termo memória possui uma significação mais larga do que na acepção atual. Efetivamente, uma primeira atividade ou operação da memória “concerne à retenção e à representação das experiências interiores e exteriores (…), incluindo o passado, o presente e o futuro. Surpreendente, mas tipicamente agostiniana, é a adição da memória das coisas futuras por antecipação”. Uma segunda atividade “concerne à retenção e à representação das noções simples ou ideias de objetos, mormente matemáticas (geometria e aritmética) e do tempo”. Ph. Boehner, op. cit.. pp.121-122, nota 5. ↩
Inspirando-nos em E. Bettoni, eis breve explicação destas afirmações gnoseológicas de S. Boaventura, às quais, aliás, já aludimos (cf. cap. II, nota 7): O fato de conhecermos as coisas não apenas como são mas como devem ser, na gnoseologia de S. Boaventura, significa que nossa mente as conhece mesmo nas suas rationes aeternae ou normas eternas. No entanto, a ratio aeterna só assiste eficazmente todo passo de nosso conhecimento como uma norma superior e como uma força que impulsiona de conhecimento para conhecimento, até à unificação suprema de toda a realidade. Ora, este influxo regulador e motor se concretiza com a impressão em nós de certo conhecimento de Deus, por meio duma similitudo ou species Dei — adequada à nossa capacidade atual — que nos habilita para O conhecermos e, ao mesmo tempo, conhecermos todas as outras realidades. Mas, se Deus, conhecendo sua essência, conhece nela todas as coisas, nós — incapazes de termos uma intuição de Deus e, portanto, de conhecermos tudo n’Ele — deveremos, ao invés, voltar-nos à experiência e ao raciocínio para adquirir nosso conhecimento das coisas. Todo passo, porém, de nosso conhecimento será feito em virtude dessa ideia de Deus impressa em nós, a qual é a luz e a regra do nosso conhecimento. É precisamente desta ideia do Ser supremo que brotam os conceitos de unidade, bondade e verdade e, por isso mesmo, os primeiros princípios teoréticos e práticos. Portanto, Deus, para S. Boaventura, não é só ponto de chegada mas também de partida. Isso, porém, não significa que possuamos uma ideia lúcida e completa de Deus, mas só os elementos para elaborá-la — e estes, ainda, não-tematizados. Para ele inato — sempre de acordo com E. Bettoni — significa apenas isto: uma determinada ideia não é tirada por abstração a partir das realidades sensíveis, mas se forma somente e com ocasião da experiência. Imprimindo na nossa alma sua imagem ou ideia inata, fá-la existir como intelecto, deixando-a, porém, indeterminada, não-tematizada, com respeito a todas as ideias de coisas determinadas. Embora não nos forneça a posse de nenhum conhecimento determinado, nos torna, contudo, capazes de conhecermos tudo, assistindo, promovendo e regulando cada passo nosso para a Verdade. A experiência é, pois, autêntica e própria fonte de conhecimento para as realidades sensíveis. Quanto às substâncias espirituais e Deus e aos primeiros princípios, é só ocasião para a nossa mente passar dum conhecimento implícito para um conhecimento explícito. E. Bettoni, op. cit., pp.126-136 (nele se baseia literalmente esta nota). Cf. E. Gilson, op. cit., pp. 304-324. ↩
Todas estas considerações de S. Boaventura sobre o entender e o querer humanos — explica E. Bettoni — “germinam, por assim dizer, mais que da experiência, da nossa mente em contato com a experiência”. Aquele certo conhecimento inato que de Deus tem a mente (inato não no sentido de possuí-lo já tematizado, mas no sentido de não ser tirada da experiência, embora sua elaboração e determinação dependam dela: cf. acima nota 3), ao mesmo tempo que desdobra e explica a sua vida espiritual, assiste ou “ilumina” todo ato intelectivo. “Quando eu afirmo das coisas que entram a fazer parte da minha experiência, que são contingentes, causadas, possíveis, mutáveis, em potência, quando, em suma, descubro os seus limites, a sua finitude e a sua imperfeição, faço isso porque as considero dum ponto de vista superior, e julgo que elas carecem de muitas perfeições possíveis. Ora — observa S. Boaventura — ‘como nossa inteligência poderia saber que um ser é defeituoso e incompleto, se não tivesse a ideia dum Ser absolutamente perfeito?’ Os aspectos metafísicos que eu vou descobrindo nas coisas proclamam a existência de Deus, no sentido de me fazerem perceber que Deus está presente à minha mente, e enquanto determinam aquela ideia confusa e indeterminada, que guia todo passo do meu intelecto. Mais que me demonstrarem a existência de Deus, portanto, descobrem-me as perfeições de Deus e explicitam uma certeza que tenho já em mim, enriquecem a minha experiência inicial de Deus”. E. Bettoni, op. cit., pp.53-54, Cf. exposição mais detalhada em E. Gilson, op. cit., pp.101-118 e pp.274-324. ↩
“O Pai é Deus enquanto se pensa a Si mesmo e exprime neste ato de pensamento a sua ideia, ou profere o seu Verbo; o Filho é a ideia expressa pela atividade da inteligência divina, o Verbo interiormente proferido”. Ora, “Deus, enquanto amando-se e produzindo o seu ato de amor, é o Pai e o Filho, infinitamente unidos na unidade dum mesmo e só princípio: o termo produzido, o amor procedente do Pai e do Filho é o Espírito Santo”. Valentin-M. Breton, O.F.M., A Santíssima Trindade (Editora Vozes, Petrópolis 1954), pp.102-103. A isto chamam os teólogos de “processões imanentes”, explicando ser a geração do Filho “necessária” e por via de inteligência — e a espiração do Espírito Santo “livre” e por via de vontade. Tal explicação, porém, da vida intratrinitária não deve levar-nos a introduzir em Deus nossos modos de exprimir — o que seria reduzi-lo a categorias coisais. “Quando dizemos ser Deus absolutamente necessário, quer em seu ser, quer em seu ato — uno na natureza e trino nas Pessoas — não se deve entender como se fora necessidade de algum modo. Tudo em Deus permanece infinitamente livre, consciente, voluntário, substancial, eterno”. As categorias criaturais, como liberdade e necessidade, transpostas a Deus não podem ter o sentido estrito e contingente, tal qual se realizam no criado. “As expressões dos teólogos, empregados para designar as duas processões imanentes, significam tão-somente que Deus, que não pode deixar de se conhecer e de se amar, se conhece espontaneamente e se ama deliberadamente, em razão da absoluta cognoscibilidade e amabilidade de sua natureza”. Id., ibid. pp.148-149. ↩
Dá-se o nome de Dom ao Espírito Santo, porque, “como o Filho é a manifestação de Deus em Deus e nos homens, o Espírito é o Dom de Deus em Deus e nos homens, pois o Espírito nos é dado e por Ele se derrama o amor de Deus em nossos corações (Rom 5,5)” V.-M. Breton, op. cit., p.162. ↩
É claro e S. Boaventura não ignora isso: cf. cap. VI, n. 3 — que estas reflexões são apenas esclarecimentos analógicos do mistério impenetrável da Trindade. A existência de três Pessoas só pode ser conhecida por Revelação. E, mesmo após a Revelação, a razão “natural” não tem capacidade para penetrar no mistério indizível da Trindade. Mas, de acordo com o ensinamento da Igreja, os teólogos concedem que a fé tem pelo menos “o poder de apreeder e de apresentar exatamente o verdadeiro sentido do dogma. Ela pode, além disso, mediante analogias tiradas das coisas criadas, notadamente pela comparação das processões divinas com o autoconhecimento e o amor de si mesmo (…), ilustrar o mistério e conseguir alguma compreensão dele”. Ludwig Ott, Précis de Théologie dogmatique (Editions Salvador, Mulhouse 1955), p.115. ↩