Boaventura — Itinerário da mente a Deus
A CONTEMPLAÇÃO DE DEUS NOS SEUS VESTÍGIOS IMPRESSOS NO MUNDO SENSÍVEL
1 No espelho do mundo sensível podemos considerar a Deus de dois modos: ou elevando-nos a Ele por meio dos seres que compõem o Universo e que são como que vestígios do Criador, ou contemplando-O existente nos mesmos seres pela Sua essência, pela Sua potência e pela Sua presença. Esta segunda contemplação é superior à primeira. Ela ocupa, pois, o segundo lugar e forma o segundo degrau de ascensão que nos conduz à visão de Deus em cada criatura que entra na nossa alma pelos sentidos corporais.
2 Deve-se notar, em primeiro lugar, que este mundo sensível, chamado “macrocosmo” — isto é, grande mundo — penetra em nossa alma, denominada “microcosmo” — ou seja, pequeno mundo — pela porta dos cinco sentidos, de três maneiras: pela percepção das coisas sensíveis, pelo prazer que a alma experimenta nesta percepção e pelo juízo que destas coisas ela faz.
Vejamos agora como.
O mundo externo se compõe de substâncias que geram, de substâncias geradas e de substâncias que regem a estas e àquelas.
As substâncias que geram são os corpos simples, isto é, os corpos celestes e os quatro elementos fundamentais.
NOTA: Aqui S. Boaventura, historicamente condicionado, reflete o substrato cosmológico medieval, segundo o qual “o mundo sensível se compunha de dupla natureza: a natureza celeste e a natureza elementar. A natureza celeste compreendia três céus: o empíreo, o cristalino e o firmamento, com sete planetas que se moviam debaixo do firmamento: Saturno, Júpiter, Marte, o Sol, Mercúrio e a Lua. A natureza elementar compreendia quatro elementos: o fogo, o ar, a água e a terra. Estes elementos tinham quatro propriedades contrárias: o quente, o frio, o úmido e o seco. Os corpos celestes e os elementos eram corpos simples; concorriam na geração e na produção dos seres compostos. Os quatro elementos entravam na formação dos corpos mistos, mas, para se unirem, tinham necessidade do influxo dos corpos celestes, que por sua luz, seu calor e sua energia os atraíam, os relacionavam e temperavam suas qualidades contrárias”. Ch. de Bordeaux, op. cit., PP.187-188, nota 8. Hoje — é claro — esta visão ptolomaica do cosmo está completamente ultrapassada. Isso, porém, em nada diminui a exposição de S. Boaventura. O valor perdurável de sua lição radica naquilo que este capítulo e o anterior intencionam: “redescobrir” a sacramentalidade da matéria — a diafania de Deus nos seus vestígios que impregnam a Criação. Cf. cap. I, nota 10.
Com efeito, a luz, tendo a virtude de unir os elementos pela conciliação de suas propriedades contrárias, fá-los produzir e gerar tudo aquilo que nos corpos mistos se gera e se produz pela ação das forças naturais.
As substâncias geradas são os corpos compostos de diversos elementos, como os minerais, os vegetais, os corpos dos animais e os corpos humanos.
As substâncias que movem e regem as precedentes são as substâncias espirituais, quer inseparavelmente unidas ao corpo — como, por exemplo, a alma dos brutos — quer separavelmente unidas — como as almas racionais — quer totalmente separadas — como é o caso dos espíritos celestiais, que os filósofos chamam “Inteligências” e nós denominamos Anjos.
Segundo os filósofos, a função dos Anjos seria a de moverem os corpos celestes e a de governarem o Cosmo, recebendo, porém, da Causa primeira a potência de ação da qual se serviriam para manter as coisas no seu estado natural. Segundo os teólogos, ao invés, Deus confiou-lhes o governo do Universo, mas no respeitante à obra de nossa salvação. Por isso, são também chamados “espíritos administradores enviados para ajudarem aos que devem ser um dia herdeiros da salvação” (Heb 1,14).
3 O homem, que é um “pequeno mundo”, tem cinco sentidos que são como as portas por meio das quais o conhecimento (gnosis) das realidades sensíveis entra em sua alma. Com efeito, pela vista entram os corpos celestes e luminosos e os corpos coloridos. Pelo tato entram os corpos sólidos e terrestres. Pelos outros três sentidos entram os corpos intermédios. Assim, pelo gosto entram os corpos líquidos; pelo ouvido, os aeriformes; pelo olfato, os vaporáveis (os quais participam da natureza da água, do ar e do fogo, como se pode ver no perfume que se exala dos aromas). Em resumo, os corpos simples e os corpos compostos entram em nossa alma por meio dos sentidos.
Pelo sentido, porém, não percebemos apenas as coisas sensíveis que são objeto próprio de certos sentidos, tais como a luz, o som, o odor, o sabor e as quatro qualidades primárias que o tacto apreende. Pelo contrário, percebemos também as coisas sensíveis que são o objeto comum a muitos sentidos, tais como o número, a grandeza, a figura, o repouso, o movimento. Descobrimos igualmente que “tudo o que se move é movido por outrem” (Aristóteles, VII Phys., Text. 1 ss. Ibid., VIII, Text. 27 ss (cap. 4)) e que certos seres — os animais, por exemplo — têm em si mesmos a causa de seu movimento e seu repouso. Daí segue-se que, quando nós percebemos por meio dos sentidos o movimento dos corpos, somos induzidos ao conhecimento (gnosis) das substâncias espirituais que os movem, assim como o efeito nos conduz ao conhecimento (gnosis) de sua causa.
*CONTEMPLAÇÃO DE DEUS NOS SEUS VESTÍGIOS 4-6
*CONTEMPLAÇÃO DE DEUS NOS SEUS VESTÍGIOS 7-9
*CONTEMPLAÇÃO DE DEUS NOS SEUS VESTÍGIOS 10-13