BOAVENTURA — ITINERÁRIO DA MENTE A DEUS
A ELEVAÇÃO A DEUS POR MEIO DO UNIVERSO (cont.)
15 Cego é, por conseguinte, quem não é iluminado por tantos e tão vivos resplendores espalbados na Criação. É surdo quem não acorda por tão fortes vozes. É mudo quem em presença de tantas maravilhas não louva o Senhor. É insensato, enfim, quem com tantos e tão luminosos sinais não reconhece o primeiro Princípio.
Abre, pois, os olhos e inclina o ouvido de teu espírito, desata teus lábios e dispõe teu coração (cf. Prov 22,17), para que em todas as criaturas vejas, ouças, louves e ames a teu Deus, se não quiseres que todo o Universo se levante contra ti. Um dia, “toda a Criação se erguerá contra os insensatos” (Sab 5,21), ao passo que será motivo de glória aos sensatos, os quais podem dizer com o Profeta:
“Senhor,
a visão de tuas criaturas me encheu de gozo.
Exulto perante o espetáculo de tuas mãos” (Sl 91,5).
“Como são grandiosas, Senhor, as tuas obras!
Tudo fizeste com sabedoria.
Toda a terra está cheia de teus bens” (Sl 103,24).”
NOTA: O leitor poderá comprovar, neste cap. I e no subsequente cap. II do Itinerário, como a visão franciscana do cosmo acentua vigorosamente a sacra-mentalidade da matéria — ou, para expressá-lo em termos teilhardianos, “a diafania crística da matéria”. Cristoforo Cecci, O.F.M., La Fede, prospettiva e critério nella visione francescana delle cose, em Quaderni di Spiritualitá francescana 9 (1965) pp.83-95, mostra bem “por que a visão franciscana da natureza aparece como uma luminosa visão cósmica. ‘Todo o mundo é como um espelho cheio de luzes’ — escreve o Seráfico Doutor (In Hexaèmeron, Coll. II, n. 27). Ou, o que é o mesmo, o mundo aparece a S. Boaventura como um livro, do qual as coisas não são senão as páginas ou as letras com as quais êle é escrito (cf. In Hexaëmeron, Coll XII, n. 14)” (pp.90-91). Ora, de acordo com esta visão, “se, vistas de cima, as coisas estão já harmônicamente dispostas em unidade, porque única a sua fonte; considerando-as desde baixo, a unidade piú che fatta é de farsi, não tanto classificando quanto descobrindo a trama sobre a qual tem sido tecida a sua variedade” (p.91). Trata-se, pois, de sublinhar a cristoftnatlzacão das realidades do cosmo. “Porque disto se trata na visão franciscana: tudo tem sido feito para Cristo, o todo deve coordenar-se para construir o seu trono de glória; n’Ele todas as coisas, segundo a expressão paulina, encontram o próprio fim e o próprio significado. Nas coisas todas deve poder-se, pois, descobrir este sublime elã de finalidade para Cristo, centro dos desígnios de Deus e da vida do mundo. Na visão franciscana, Cristo conduz tudo o que é criado ao próprio cumprimento: por isso se pode falar dum significado cósmico d’Ele. A teoria bonaventuriana de Cristo ‘medium omnium’, através do qual toda coisa toma o seu significado, justifica — parece-nos — o que estamos a asserir (cf. In Hexaëmeron, Coll. I, n. 1)” (pp.91-92). Nesta perspectiva cristológica, “aparece óbvio que as coisas tenham um valor não determinado pelo emprego que delas se pode fazer, mas que se identifica com a sua espessura ontológica, com a sua estrutura. As coisas são aquilo que são com um ‘a mais’ que elas sacramentalmente escondera” (p.92). Isso S. Boaventura faz ver nos cap. I e II desta obra — e em outras. A razão desta sacramentalidade da matéria é — sabe-se — a sua teoria do exemplarismo: “As coisas refletem a Deus porque Deus de algum modo escondeu-se nelas. O que são de resto as coisas criadas na sua rica individualidade, se não a tradução concreta das ideias de Deus?” (p.93). “É o motivo platônico-agostiniano que retorna no pensamento franciscano, depurado, porém, daquele certo pessimismo com relação á matéria que parece estar presente sobretudo no dualismo do pensador grego. A matéria aparece, antes, na visão franciscana da realidade criada, elevada a nobre tarefa de sacramento de Deus” (ibíd.). Cf. infra, cap. II, 11.