Boaventura Mente Deus III

BOAVENTURA — ITINERÁRIO DA MENTE A DEUS

A ELEVAÇÃO A DEUS POR MEIO DO UNIVERSO (cont.)

14 Tal consideração alarga-se ainda mais se meditarmos nas sete condições ou propriedades das criaturas, que fornecem à inteligência sete testemunhos do poder, da sabedoria e da bondade de Deus — ou seja, se considerarmos atentamente a origem, a grandeza, a multiplicidade, a beleza, a plenitude, a atividade e a ordem de todas as coisas criadas.

A origem das coisas — considerada na obra dos seis dias do tríplice ponto de vista da criação, da separação e do ornamento — proclama o poder de Deus que produziu tudo do nada, a sua sabedoria que tão perfeitamente separou todos os seres, e a sua bondade que generosamente ornou todos os seres de beleza.

A grandeza das coisas pode ser considerada quer na sua vasta extensão, largura e profundeza, quer no seu imenso poder que age em todas essas dimensões — como se vê na propagação da luz — quer na eficiência de sua ação interior, contínua e difusiva — tal como se observa na ação do fogo. Também esta grandeza dos seres nos manifesta claramente a imensidade do poder, da sabedoria e da bondade de Deus trino, que existe em todas as criaturas com seu poder, sua essência e sua presença, sem ser, porém, circunscrito por nenhuma delas.

A multiplicidade das coisas com as suas diferenças genéricas, específicas e individuais em sua substância, em sua forma ou figura e em sua atividade, que escapa a toda apreciação humana, revela igualmente com clareza a imensidade dos três atributos divinos acima referidos.

A beleza das criaturas com a variedade de suas luzes, de suas figuras e de suas cores, considerada nos corpos simples, mistos e orgânicos — como são os astros e os minerais, as pedras e os metais, as plantas e os animais — proclama altamente as mesmas perfeições de Deus.

Fala-nos igualmente da perfeição de Deus a plenitude das coisas, porquanto a matéria está cheia de formas por causa de seus princípios de desenvolvimento latentes “, a forma está cheia de atividades potenciais, e a potência está cheia de efeitos segundo o exercício de sua atividade.

NOTA: No original S. Boaventura emprega uma fórmula consagrada na Idade Média: “rationes seminales”, isto é, literalmente, princípios seminais — expressão que é, por sua vez, a transposição latina dos “Logoi spermatikoi” do estoicismo grego. Com ela faz-se referência a uma teoria que S. Boaventura recebeu desses filósofos, através da adoção — e adaptação — de S. Agostinho. Dela trata expressamente no II Sententiarium (II Livro do seu Comentário às Sentenças), Dist. 7, Pars II, Art. 2, Quaest. 1 e Dist. 18, Art. 1, Quaest. 2 ss. Nossa tradução pode parecer um tanto livre, mas talvez seja a única maneira de exprimir a qualidade dinâmica ai envolvida. No pensamento de S. Boaventura, “as rationes seminales são potencialidades ativas e positivas que o Criador inseriu e encobriu no seminarium deste mundo. Elas são as essências ou formas das coisas a serem produzidas. Produção e geração, porém, são apenas o despertar desta potencialidade positiva e o estimulo para o seu desenvolvimento até o estado completo e visível. (…) Os dois estados de implicação (potencialidade ativa) e de explicação (a criatura visível) são semelhantes a i:m botão de rosa e a uma rosa”. Ph. Boehner, op. cit., p. 115. nota 23. Para uma exposição mais técnica, cf. E. Gilson, op. cit., pp.236-253.

A múltipla atividade das criaturas — seja natural, seja cultural, seja moral — mostra-nos, na sua riquíssima variedade, quão imenso é aquele poder, aquela sabedoria, aquela bondade, que de todas as coisas é “a causa de sua existência, a luz de sua razão e a regra de sua vida”. (A frase é de S. Agostinho, VIII De Civitate Dei, cap. 4)

A ordem que discernimos nas coisas com respeito à sua duração, à sua posição e ao seu influxo — isto é, na relação entre o antes e o depois, entre o mais alto e o mais baixo, entre o mais nobre e o mais ignóbil — nos faz descobrir no livro da Criação o primado, a sublimidade, a dignidade do primeiro Princípio na Infinidade de seu poder.

A ordem das leis divinas, dos preceitos e dos juízos no livro da Sagrada Escritura nos faz ver a imensidade de sua sabedoria.

A ordem dos Sacramentos, das graças e das recompensas no corpo da Igreja nos leva a admirar a sua imensa bondade.

A ordem, pois, nos conduz como pela mão dum modo muito evidente Àquele que é soberanamente poderoso, soberanamente sapiente e soberanamente bom.