Boaventura Mente Deus I

BOAVENTURA — ITINERÁRIO DA MENTE A DEUS

A ELEVAÇÃO A DEUS POR MEIO DO UNIVERSO (cont.)

4 Segundo esta tríplice maneira de nos elevarmos progressivamente a Deus (isto é: pelas criaturas, pela alma e por Deus), a nossa alma possui três principais vias para perceber. Na primeira, olha sobre as coisas corporais e exteriores — pelo que se chama “animalidade” ou sensitividade. Na segunda, olha sobre si mesma e dentro de si mesma — e se chama, por isso, espírito. Na terceira, olha acima de si mesma — e se denomina então mente. Estas três faculdades devem servir-nos para elevarmo-nos a Deus, para amá-l’O “com toda nossa mente, com todo nosso coração, com toda nossa alma” (Mc 12,30). Nisto consiste a observância perfeita da Lei e toda sabedoria cristã.

5 Assim, pois, cada um dos três mencionados modos é duplo, segundo considerarmos a Deus como o Alfa e Omega de tudo (ef. Apoc 1,8), segundo O contemplarmos em cada um desses modos como por meio dum espelho ou como dentro dum espelho, ou, enfim, segundo considerarmos cada grau em si mesmo, separadamente, ou em relação a outro. É necessário, portanto, elevar ao número de seis os degraus de nossa elevação a Deus. Como Deus criou o Universo em seis dias e ao sétimo repousou, assim também esse pequeno mundo que é o homem há de ser conduzido com perfeitíssima ordem ao repouso da contemplação passando pelos seis degraus das iluminações progressivas.

Estes seis degraus estão simbolizados na Escritura. De fato, por seis degraus subia-se até o trono de Salomão (cf. 3 Rs 10,19). Os Serafins que viu Isaías eram seis (cf. Is 6,2). Deus “chamou a Moisés do meio da nuvem”, após seis dias (cf. Ex 24,16). Igualmente Cristo, “depois de seis dias, conduziu seus discípulos a uma montanha e se transfigurou na presença deles” (Mt 17,1 ss).

6 A estes seis degraus de elevação a Deus correspondem as seis potências da alma, pelas quais ascendemos das coisas inferiores às superiores, das exteriores às interiores, das temporais às eternas. São elas: os sentidos, a imaginação, a razão, o entendimento, a inteligência e a consciência.

Estas faculdades, formadas em nós pela natureza, desfiguradas pelo pecado e reformadas pela Graça, devem ser purificadas pela justiça, exercitadas pela ciência, aperfeiçoadas pela sabedoria.

7 Na disposição original de nossa natureza, Deus criou o homem apto ao repouso da contemplação. É por isso que “foi colocado no paraíso das delícias” (Gn 2,15). Tendo-se o homem, porém, apartado da verdadeira luz e tendo-se voltado para um bem perecível, encontrou-se inclinado por própria culpa para a terra e, com o pecado original, inclinou todo o gênero humano com uma dupla miséria: a ignorância do espírito e a concupiscência (pleonexia, epithymia) da carne. O homem, assim cegado e inclinado para a terra, encontra-se atado nas trevas e é incapaz de ver a luz do Céu, se a graça e a justiça não o ajudarem contra a concupiscência (pleonexia, epithymia) , se a ciência e a sabedoria não dissiparem a sua ignorância.

Tal reparação se faz por meio de Jesus Cristo, “o qual foi feito por Deus para ser nossa sabedoria, nossa justiça, nossa santificação e nossa redenção” (1 Cor 1,30). E Cristo, sendo “a virtude e a sabedoria de Deus” (1 Cor 1,24), o Verbo humanado “cheio de graça e de verdade”, “espalhou sobre nós a graça e a verdade” (Jo 1,14-17). Ele nos deu a graça da caridade, a qual, “partindo dum coração puro, duma consciência reta e duma fé sincera” (1 Tim 1,5), retifica toda a alma de acordo com o tríplice modo de ver de que já falamos. Ele nos deu a ciência da verdade ensinando-nos com as três formas da teologia, isto é, a simbólica, a própria e a mística. Com a teologia simbólica nos ensina a usarmos bem das coisas sensíveis, com a própria a usarmos bem das coisas intelectuais, com a mística a transportarmo-nos aos arrebatamentos superiores do espírito.

NOTA: O conceito bonaventuriano de Teologia implica tríplice divisão — simbólica, própria e mística. “A teologia simbólica parece ser a aplicação da Sagrada Escritura às criaturas com o propósito de chegar a seu significado simbólico. (…) A teologia própria é, naturalmente, a teologia em geral; a teologia mística tem a conotação usual moderna”. Ph. Boehner, op. cit., p.l 13, nota 13. Cf. também E. Longprè, op. cit., cols. 1772-1773.

8 Portanto, aquele que quer elevar-se a Deus deve evitar o pecado que desfigura a natureza e aplicar as faculdades naturais acima mencionadas, para adquirir pela oração a graça que reforma, por uma vida santa a justiça que purifica, pela meditação a ciência que ilumina, pela contemplação a sabedoria que aperfeiçoa. E, como ninguém chega à sabedoria sem a graça, sem a justiça e sem a ciência, assim também ninguém pode chegar a contemplação sem uma meditação profunda, sem uma vida pura e sem uma oração fervorosa. Ora, a graça é o principio da retidão, da vontade e da iluminação da inteligência. Por conseguinte, devemos antes de tudo orar, depois viver santamente e, enfim, aplicar nosso espírito às belezas da verdade e nos elevar gradativamente, contemplando-as, até chegarmos “à montanha excelsa, onde se vê o sumo Deus no esplendor de sua glória” (Sl 83,8).