Boaventura — Itinerário da mente para Deus
Capítulo IV A CONTEMPLAÇÃO DE DEUS NA SUA IMAGEM: A ALMA RENOVADA PELOS DONS DA GRAÇA
1 Podemos contemplar o primeiro Princípio não só passando pela nossa alma, mas também na nossa alma. Esta maneira de contemplar, sendo superior à precedente, formará o quarto degrau de nossa elevação a Deus.
Parece estranho que, estando Deus tão próximo de nossas almas — como acabamos de demonstrar no capítulo anterior — poucos sejam os homens que contemplem em si mesmos o primeiro Princípio. A razão, porém, é fácil de se compreender. A alma humana distraída pelas preocupações da vida, não entra em si mesma pela memória. Obscurecida pelos fantasmas da imaginação, não se recolhe em si mesma por meio da inteligência. Seduzida pelas paixões, não volta mais a si mesma pelo desejo da doçura interior e da alegria espiritual. Assim, toda imersa nas coisas sensíveis, torna-se impotente para encontrar em si mesma a imagem de Deus.
2 Ora, quando alguém caiu, seguramente há de ficar onde está, caso um outro não “lhe der a mão e não o ajudar a se levantar” (Is 24,20). Assim, a nossa alma, caída nas coisas sensíveis, não teria podido reerguer-se perfeitamente para contemplar-se a si mesma e admirar em si mesma a Verdade eterna, se a própria Verdade, tomando forma humana em Cristo, não se houvesse tornado a escada que repara a antiga escada quebrada pelo pecado de Adão.
Por isso, ninguém, por mais iluminado que esteja pelas luzes da razão e pelo estudo das ciências, pode entrar em si mesmo para “deleitar-se no Senhor” (Sl 36,4), se não fôr por meio de Jesus Cristo que disse: “Eu sou a porta. Se alguém por mim entrar, salvar-se-á. Entrará, sairá e encontrará pastagem” (Jo 10,9). Mas não podemos aproximar-nos desta porta sem crer n’Ele, sem esperar n’Ele e sem O amar. Se, portanto, queremos entrar na fruição da Verdade como num outro paraíso, é preciso que ingressemos pela fé, pela esperança e pela caridade de Jesus Cristo, mediador entre Deus e os homens” (1 Tim 2,5), o qual é como a “árvore da vida plantada no meio do paraíso” (Gn 2,9).
3 Revistamos, pois, nossa alma — imagem de Deus — das três virtudes teologais que a purificam, a iluminam e a aperfeiçoam. É por meio destas virtudes que a imagem divina se reforma, se restaura e se torna conforme à Jerusalém celeste e membro da Igreja peregrinante — que é a filha da Jerusalém celeste, segundo a palavra do Apóstolo: “A Jerusalém do Alto é livre. É ela que é nossa Mãe” (Gál 4,26).
A alma deve, pois, antes de tudo, crer em Jesus Cristo, esperar n’Ele e amá-l’O. Ele é o Verbo encarnado, in-criado e inspirado1, isto é, “o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,6). Crendo pela Fé n’Ele como no Verbo incriado, “Verbo e esplendor do Pai” (Jo 1,1 e Heb 1,3), a alma recupera o ouvido e a vista espirituais: o ouvido para escutar os ensinamentos de Cristo e a vista para considerar os esplendores de sua luz. Suspirando pela Esperança acolher o Verbo inspirado, o desejo e o amor fazem-lhe adquirir o olfato espiritual. Abraçando pela Caridade ao Verbo encarnado — que a enche de delícias e a quem passa pelo amor extático — recobra o gosto e o tacto espirituais.
Depois de ter recuperado estes sentidos2 a alma vê, escuta, respira, degusta e abraça o seu Esposo. Ela pode então cantar como a Esposa do livro do Cântico dos Cânticos, composto precisamente para o exercício da contemplação deste quarto degrau — que “ninguém compreende senão quem o recebe” (Apoc 2,17), porque a experiência do coração o faz conhecer melhor que as considerações da razão.
Efetivamente, neste degrau é que a alma restaura seus sentidos interiores para receber a suprema beleza, para escutar a suprema harmonia, para respirar a suprema fragrância, para degustar a suprema doçura e para possuir esta beleza soberanamente deliciosa. Está então preparada para os arrebatamentos do êxtase pela devoção, pela admiração e pela exultação, segundo três exclamações do Cântico dos Cânticos.
A primeira destas exclamações prorrompe na superabundância da devoção, a qual torna à alma “como uma coluna de fumo que exala perfumes de mirra e de incenso (Cânt 3,6).
A segunda nasce da grandeza da admiração, pela qual a alma se torna “como a aurora, a lua e o sol” (Cânt 6,9), segundo o grau das iluminações que a arrebatam à admiração do Esposo, a quem contempla (Cânt 6,3).
A terceira prorrompe pela exuberância do júbilo que inebria a alma — totalmente apoiada sobre seu Amado — do mais suave deleite (Cânt 8,5).
4 O nosso espírito se torna então hierárquico nas suas elevações, em conformidade à Jerusalém celeste, na qual ninguém pode entrar se ela própria não desceu primeiro ao coração pela Graça — segundo a viu descer S. João no seu Apocalipse (cf. 21,2). Ora, ela desce no nosso coração, quando, pela restauração da imagem de Deus nele com a ajuda das virtudes teologais, pelas deleitações dos sentidos espirituais e pelos arrebatamentos extáticos, nosso espírito se torna hierárquico — isto é, purificado, iluminado e perfeito.
Assim, nosso espírito fica também adornado de nove graus — correspondentes gradativamente aos nove coros angélicos — ao tornar-se ordenado e interiormente disposto para o anúncio, o ditado e a direção, para a boa ordem, o vigor e o império sobre si mesmo, para o acolhimento, a revelação e a união. Os três primeiros destes graus consideram na alma humana a natureza, os três seguintes a atividade, os três últimos a graça divina.3
Enriquecida destes dons, a alma, entrando em si mesma, penetra na Jerusalém celeste, onde, ao considerar os coros dos Anjos, vê que Deus reside neles e opera em todas as suas obras. Por isso, S. Bernardo, escrevendo ao Papa Eugênio, diz que “Deus nos Serafins ama como caridade, nos Querubins conhece como verdade, nos Tronos reside como justiça, nas Dominações reina como majestade, nos Principados governa como princípio, nas Potestades defende como salvação, nas Virtudes age como força, nos Arcanjos revela-se como luz e nos Anjos assiste como bondade” (V De Consideratione ad Eugenium III, cap. 5, n. 12)
Nós vemos assim que “Deus é tudo em todas as coisas” (1 Cor 15,28), quando O contemplamos nas nossas almas, nas quais habita pelos dons de sua superabundante caridade.
5 No degrau precedente a alma era ajudada pela filosofia. Neste degrau, ao invés, ela é especial e preferencialmente ajudada pela Sagrada Escritura divinamente inspirada.
A Sagrada Escritura tem por objeto principal as obras da Salvação. Eis por que ela nos fala frequentemente da fé, da esperança e da caridade — virtudes que transformam nossa alma. Fala-nos, porém, mais particularmente da caridade, que é — segundo o Apóstolo — “o fim dos preceitos” e “a plenitude da Lei” (Rom 13,10), enquanto vier “dum coração puro, duma consciência reta e duma fé sincera” (1 Tim 1,5). E o próprio Salvador nosso diz que a Lei e os Profetas se resumem no duplo preceito do amor de Deus e do amor do próximo (cf. Mt 22,40). Ora, este duplo preceito encontra sua concretização no amor de Jesus Cristo, o Esposo da Igreja. Ele é, com efeito, ao mesmo tempo, nosso Deus e nosso próximo, nosso irmão e nosso Senhor, nosso Rei e nosso amigo, o Verbo encarnado e o Verbo incriado, nosso Criador e nosso Redentor, nosso Alfa e nosso Ômega (cf. Apoc 1,8 e 21,6). Ele é também o sumo Hierarca que purifica, ilumina e aperfeiçoa a sua Esposa — isto é, toda a Igreja e toda alma santa.
6 É deste Hierarca e da hierarquia da Igreja que fala toda a Sagrada Escritura. É também a Sagrada Escritura quem nos ensina a via da purificação, da iluminação e da perfeição. E isto se realiza segundo a tríplice lei que ela nos comunica: a lei da natureza, a lei escrita e a lei da graça. Ou, antes, segundo as três partes principais da mesma: a lei de Moisés que purifica, a revelação profética que revela e a doutrina evangélica que aperfeiçoa. Ou, melhor ainda, segundo seus três sentidos espirituais: o sentido moral — o qual nos purifica, ensinando-nos a viver honestamente — o sentido alegórico — que nos ilumina, esclarecendo nossa inteligência — e o sentido anagógico — que aperfeiçoa nossa alma, impulsionando-a para sair de si mesma e para degustar as suaves delícias da sabedoria divina. Ora, é com a ajuda das três virtudes teologais, é com os sentidos espirituais assim reformados, é mediante esses três arrebatamentos já explicados e é com esses atos hierárquicos que a nossa alma entra de novo em si mesma, para ali contemplar a Deus “nos esplendores dos santos” (Sl 109,3) e neles, como num leito, “dormir em paz e repousar” (Sl 4,9), enquanto o Esposo conjura para não a despertarem até que ela queira acordar por própria vontade (cf. Cânt 2,7).
7 Estes dois degraus intermédios, mediante os quais entramos em nós para contemplarmos a Deus em nossa alma como nos espelhos das imagens criadas, são como as duas asas do Serafim, as quais, ocupando o lugar do meio, estendia para voar (cf. Is 6,2). Os mesmos degraus fazem-nos compreender que as potências naturais de nossa alma, consideradas nas suas operações, nas suas mútuas relações e na sua posse de ciências, nos conduzem pela mão até às realidades divinas. Nós já vimos isto no terceiro degrau.
Elevamo-nos a Deus também por meio das faculdades da alma reformadas pelos dons da graça. Isto se realiza por meio das virtudes teologais gratuitas, dos sentidos espirituais e dos arrebatamentos. Acabamos de ver isso no quarto degrau.
Conduzem-nos ainda a Deus os atos hierárquicos realizados em nós — a purificação, a iluminação e o aperfeiçoamento de nossas almas — e as revelações hierárquicas da Sagrada Escritura — a qual, segundo a palavra do Apóstolo, temos recebido pelos Anjos: “A Lei nos foi dada pelos Anjos e por intermédio dum mediador” (Gál 3,19). Finalmente, as hierarquias e as ordens hierárquicas, que se dispõem na nossa alma como na Jerusalém celeste, nos levam também pela mão a Deus.
8 Uma vez que repletou nossa alma com todas essas luzes espirituais, a sabedoria divina habita-a como casa de Deus. Ela se torna sua filha, sua esposa e sua amiga. Torna-se membro, irmã e co-herdeira de Jesus Cristo, sua Cabeça. Torna-se, enfim, templo do Espírito Santo — templo fundado pela fé, levantado pela esperança e consagrado a Deus pela santidade da alma e do corpo. Tudo isto é obra da transparentissima caridade de Jesus Cristo4, “derramada em nossos corações por virtude do Espírito Santo que nos foi dado” (Rom 5,5) e sem este Espírito não é possível penetrar nos mistérios divinos (cf. 1 Cor 2,10). Porque ninguém “conhece o que está no homem senão o espírito do homem, que nele está. Assim também as coisas de Deus ninguém as conhece senão o Espírito de Deus” (1 Cor 2,11).
Estejamos, pois, enraizados na caridade, a fim de que possamos compreender com todos os santos a largura da eternidade, o comprimento da liberalidade, a altura da majestade e a profundeza da sabedoria discernente de Deus (cf. Ef 3,18-19).
NOTAS
“O verbo inspirado é o Verbo que ilumina nosso espírito e inflama nosso coração pelas luzes da razão, da Fé, das Sagradas Escrituras, das revelações da contemplação. Inspirado vem da palavra spirare, soprar, porque o Verbo sopra luz e amor em nosso espírito e em nosso coração”. Ch. de Bordeaux, op. cit., p.193. ↩
“A estrutura sobrenatural da graça confere à alma humana algo semelhante a novos poderes para a compreensão da experiência imediata. Mediante a atividade dos mesmos, a animação interior do Espírito Santo é aperfeiçoada numa compreensão amante de Deus e numa dedicação a Ele. Estes poderes são os sensus spirituales, análogos aos cinco sentidos externos, dos quais falam S. Boaventura e os místicos. Por meio deles, a mente humana, de maneira correspondente à sua nova vida, torna-se imediatamente presente à atividade vivificadora da graça divina, pois a alma, de modo análogo às experiências dos sentidos externos, agora vê, ouve, cheira, degusta e apalpa. Assim, mediante a estrutura sobrenatural da graça, o mais elevado gozo espiritual que é possível no presente estado de peregrinação atinge sua perfeição através duma experiência imediata e espiritual semelhante à experiência dos sentidos”. Ph. Boehner, op. cit., p.125, nota 2. Este autor sublinha, ainda, que a expressão sentidos espirituais tem, estritamente, esse último significado — experiências espirituais — porque “não são novos hábitos da graça, mas só a perfeita ativação dos hábitos infusos da graça já presente”. Ibid. Além disso, como se vê pela exposição, “o objeto dos sentidos espirituais é o Cristo da trilogia bonaventuriana: o Verbo incriado, o Verbo inspirado, o Verbo encarnado”. E. Longpré, op. cit., col. 1833 ↩
Para preparar a alma à união definitiva com Deus, S. Boaventura — influído, mais uma vez, pela mística do Pseudo-Dionisio Areopagita — faz intervir uma tríplice hierarquização, que assimila analogicamente a alma aos nove coros angélicos. Estas hierarquias interiores — obra da graça e das virtudes teologais — dispõem a alma de três modos, segundo a façam elevar-se a Deus (secundum ascensum), receber as iluminações vindas do alto (secundum descensum) e retornar a Deus partindo do criado (secundum regressum). A primeira hierarquia interior — dela aqui se trata — está constituída de nove atos: três dependem da atividade ou esforço próprio (indústria) e da natureza; três, da indústria e da graça; três, da graça que age além das forças da natureza da indústria. E. Longpré, op. cit., col. 1816. “Os três primeiros atos são o anúncio (nuntiatio), o ditado (dictatio) ou a deliberação (deliberatio), a direção (ductio): a nuntiatio opera um discernimento entre os objetos que se oferecem aos sentidos, a dictatio delibera sobre a sua liceidade, a ductio decide o que é mister fazer. Por meio destes atos a alma é assimilada as ordens dos Anjos, dos Arcanjos e dos Principados. Os três atos que seguem derivam da indústria e da graça: são a boa ordem (ordinatio), o vigor (roboratio) e o domínio sobre si mesmo (imperatio). O primeiro ordena em direção a Deus, como a seu fim último, o que foi deliberado e descarta o que não tende à meta; por ser difícil afastar o que é desordenado, intervém a força ou a roboratio ou o comando, para facilitar o primeiro e o segundo ato. Esta hierarquia interior corresponde aos coros das Potestades, das Virtudes e das Dominações. Os três últimos atos dependem da atividade dominadora da graça: são o acolhimento (susceptio), a revelação (revelatio), a umao (unitio). Pela susceptio, a alma recebe as iluminações divinas; pela revelatio, conhece os segredos de Deus; na unitio é elevada ao êxtase. Estes degraus da hierarquia interior correspondem aos Tronos, aos Querubins e aos Serafins” ld., ibid., cols. 1816-1817. ↩
O erudito E. Longpré afirma que “a doutrina bonaventuriana conserva o pleno sentido das palavras de Cristo: Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Num elã de amor, estabelece a espiritualidade sobre seu fundamento: Jesus Cristo. Não há etapa em que o Verbo Encarnado não apareça como o princípio, o modelo e o fim. A Cruz torna-se a árvore da vida e a soma das iluminações divinas”. E — como se verá mais adiante — “Cristo Crucificado constitui o único ponto de passagem para o êxtase e a contemplação da Trindade”. Loc. cit., col. 1843. Cristo é, segundo confessa, o Alfa e o omega no seu itinerário do cosmo para Deus. ↩