Bernardo de Clairvaux — Sermões
Sermão LII — Do arrebatamento que se chama contemplação…
Excertos traduzidos por Antonio Carneiro
3. Então, digamos, se pudermos, qual é esse sono, que o esposo deseja que sua bem-amada durma, que não a desperte, ninguém senão seu arbítrio, agitado por vir quem leu no Apóstolo: “É hora de deixar o sono”(Rom. XIII, 11), assim como no Profeta: ore à Deus para iluminar seus olhos para que nunca adormeça na morte (Sal XII, 4), perturbado por palavras equívocas, possa aventar que o adormecimento da esposa mencionado aqui seja indigno. Não é similar como o de Lázaro quando o Senhor diz no Evangelho: “Nosso amigo Lázaro dormiu; vamos e despertemo-lo deste sono.”(Jo XI, 11) Se dizia da sua morte corporal, que os discípulos consideraram como dormida. Não é como esse sono plácido da esposa do corpo adormecido, os sentidos da carne mergulhados em suave sopor, nem nesse sono horrível que tirou a vida por inteira, ainda bem mais distante desse outro sono, que adormeceu na morte, permanecido no pecado, que é perseverado na morte irreversível. Ao contrário, este é um sopor vital e vigilante que ilumina os sentidos interiores, e, preservando da morte, infunde uma vida sempiterna. Em realidade é uma dormida, ainda que não adormece os sentidos, mas os arrebata. E é uma morte, sem dúvida de dizer, como o Apóstolo exortando aqueles que ainda viviam na carne, assim disse: “Estais mortos, e vossa vida está escondida com Cristo em Deus.”(Col 3, 3)
4. Por isso, não é absurdo algum, se chamo de morte o êxtase da esposa, ainda que não seja vida, mas vida liberada dos laços, assim pode-se dizer: “Nossa alma é como pássaro escapado dos laços dos caçadores.” (Sal CXXIII, 7) Caminha-se nesta vida como no meio de laços, e a alma não lhes receia, todas as vezes que estiver radiante fora dela mesma por um justo e santo pensamento, se, no entanto, se retirar e se separar disso de maneira que vá para além do modo ordinário de pensar, pois “se frusta quem estende a rede diante da vista das aves” (Prov I, 17) Como temer a luxúria se nem a vida é sentida ? Quando a alma deixa senão a vida, mas o sentido da vida, é óbvio que ela não sente mais as tentações da vida. “Quem me daria asas como pombo para voo e descanso?” (Sal LIV, 7) Quem me dera tivesse essa morte com frequência, assim escaparia das redes da morte, não sentir os agrados mortais da vida luxuriosa, não se aturdir com sentimentos libidinosos, nem ânsias de avareza, nem estímulos de ira e impaciência, nem angústias de inquietudes e de curas de doenças! Morra minha alma com a morte dos justos, que nenhuma injustiça lhe envolva , nenhuma iniquidade lhe atinja. Boa morte, que não tira vida, e sim transfere para melhor, que o corpo não caia, mas sim eleve a alma.
5. Mas isto é próprio dos homens. Morra também minha alma, se assim se pode falar, com a morte própria dos anjos, para perder a memória do presente, não mais cobiçar as coisas inferiores e corporais, mas também de suas próprias imagens, teria com eles uma pura conversação os quais possuem pureza semelhante.
III. Diz-se da contemplação, creio, residir parcial ou totalmente neste arrebatamento. É da virtude humana não deixar-se levar pela cobiça das coisas terrenas; é da pureza angélica não se envolver nem especular com semelhanças corporais. Um e outro portanto são um dom de Deus, um e outro extasiam, um e outro fazem transcender; mas um vai mais longe, e o outro nem tanto. Ditoso o que pode dizer: “Fugi para longe, e permaneci na solidão”.(Sal LIV, 8) Não contente de fugir de si-mesmo, foge para bem longe, para poder descansar. Passastes por cima pelos prazeres da carne, para não obedecer mais à suas concupiscências, nem se deter nestes atrativos; avançaste, te separaste, mas ainda não te distanciaste, se não puderes elevar-te com a pureza de tua mente acima das fantasias das imagens corporais, que surgem de qualquer lugar. Não te as prometas com teu descanso. Erras, se consideras achar junto a ti o lugar quieto, o segredo da solidão, a serenidade da luz, a morada da paz. Mas dai-me quem tenha chegado lá, confessarei logo que está em descanso, que pode dizer com razão: “Voltai, minh’alma, ao teu repouso, pois o Senhor te fez bem.” (Sal CXVI, 7) Este o lugar verdadeiro da solidão e da morada luminosa, como disse o Profeta (Is IV, 6): uma tenda que dará abrigo do calor do dia, segurança e refúgio na tormenta e na chuva, e de quem o santo David disse:”Esconda-me, em sua tenda nos dias maus, proteja-me no oculto de sua tenda” ( Sal XXVI, 5)
6.Foi nesta solidão que a esposa se retirou, nesse lugar frondoso entre abraços do esposo que suavemente dormiu, quer dizer, arrebatada em espírito. Proibiu-se às adolescentes despertá-la, até que volte a si. Como se proibiu ?