Ernst Benz — Descrição do Cristianismo
Jesus Cristo
Excertos de “Descrição do Cristianismo”
Também as doutrinas dogmáticas sobre Jesus Cristo remontam diretamente às experiências de fé da comunidade primitiva. O encontro marcante com a pessoa de Jesus Cristo colocou a reflexão diante de um difícil problema. Os fiéis da igreja primitiva experienciaram Jesus e reconheceram nele o Filho de Deus feito homem e ressuscitado. O testemunho de seus discípulos, a quem o ressuscitado apareceu, valeu para eles como a confirmação de que Jesus era na realidade o Senhor glorificado e o Filho de Deus que está sentado à direita do Pai e que há de vir para levar o seu Reino à perfeição.
Desde o início coexistem lado a lado vários tipos de interpretação da pessoa de Jesus. O Evangelho de Marcos vê Jesus como o homem sobre o qual o Espírito Santo desceu no momento do batismo no Jordão, e que pela voz de Deus vinda das nuvens foi declarado Filho de Deus. Situam-se na mesma linha desta concepção todas aquelas tentativas cristológicas posteriores que surgiram com o apoio sobretudo da escola teológica de Antioquia, tentativas que partem do ser-homem de Jesus e que veem sua divindade na consciência que ele tem de Deus, na determinação que lhe foi imposta por Deus pela efusão do Espírito Santo.
Uma concepção diferente é apresentada pelo Evangelho de João, que vê em Jesus Cristo o Logos divino que se fez carne. A divindade da pessoa de Jesus não é entendida como o estar-investido, do homem Jesus, com o poder divino, mas como a consequência da vinda ao mundo do Logos divino, um ser celeste preexistente; o Logos assume um corpo humano a fim de realizar-se na história — uma concepção que se impôs sobretudo na teologia alexandrina. Desta forma, a discussão em torno da cristologia se desenrolou em grande parte numa criativa rivalidade entre as teologias antioquena e alexandrina, as duas escolas que exerceram uma ampla influência não apenas em todo o clero contemporâneo como também no monaquismo e no mundo leigo. Como era de se esperar, o nestorianismo, com seu enfoque mais forte sobre o lado humano de Jesus Cristo, surgiu da escola antioquena, enquanto que o monofisitismo, com seu realce unilateral da natureza divina de Cristo, brotou da escola teológica alexandrina.
Não é possível apresentar aqui as numerosas propostas de solução para o problema cristológico, com as quais a história do dogma ocupa-se exaustivamente, ainda mais que entre as duas posições extremas surgiram sempre novas soluções intermediárias. Da mesma forma que no terreno da doutrina trinitária, o desenvolvimento geral caracteriza-se por inicialmente se haver desenvolvido lado a lado uma espantosa pluralidade de concepções e de formulações. Isto se manifesta também pelo fato de as profissões de fé das grandes comunidades não coincidirem textualmente umas com as outras. Só com a elevação da igreja cristã à condição de igreja imperial, sob Constantino, foi que se tornou necessário unificá-las e reuni-las numa fórmula universalmente aceita. Os grandes sínodos ecumênicos ocuparam-se, no essencial, com a tarefa de em sempre novos esboços criar uma formulação obrigatória para toda a igreja do império.
Também as fórmulas cristológicas não visam estabelecer uma clareza racional e conceituai, mas elas pretendem pelo menos realçar, no mistério da filiação divina, os três fatos de importância para a Igreja: que o Filho de Deus Jesus Cristo é plenamente Deus, que ele é plenamente homem, e que estas duas “naturezas” não estão sem conexão uma ao lado da outra mas que unem-se nele numa unidade pessoal. Mais uma vez foi a metafísica substancial neoplatônica que forneceu as categorias para a fixação conceituai destas diversas exigências teológicas. Desta forma o conceito da unidade de essência — homousia — do Logos divino com Deus Pai garantiu a plena divindade de Jesus Cristo. O mistério da pessoa de Jesus Cristo pôde então ser resumido nesta fórmula: duas naturezas numa só pessoa. O conceito de pessoa, tomado do direito romano, serviu para designar a ligação, numa unidade individual, da plena natureza divina com a plena natureza humana.
Para os diferentes esboços cristológicos vale, em medida ainda mais intensa, o que se afirmou do evoluir da doutrina trinitária: eles não resultam de operações lógicas abstratas, mas procedem do terreno litúrgico e carismático da oração, da meditação e da ascese. Também este dogma não pretende ser uma doutrina abstrata, antes ele aparece na liturgia em sempre novas formas, em inúmeros hinos de adoração, como por exemplo na liturgia da Páscoa: “Em sua amabilidade o rei do céu apareceu na terra e conviveu com os homens. Pois de uma virgem pura ele tomou carne e dela saiu ao encarnar-se. Dúplice na essência mas uno na pessoa, o Filho é um. Por isso o anunciamos como Deus perfeito e homem perfeito na verdade, professamos Cristo nosso Deus”.
A fé em Jesus Cristo está intimamente ligada à fé no Reino de Deus, cuja vinda ele anuncia e inaugura. As expectativas escatológicas cristãs, por sua vez, ligam-se a promessas messiânicas que no judaísmo tardio, sobretudo nos dois últimos séculos antes de Cristo, haviam passado por uma decisiva transformação e diferenciação. Podemos distinguir aqui dois modelos fundamentais, que influíram na autocompreensão messiânica de Jesus e na fé de seus discípulos.
1. A concepção do judaísmo antigo sobre o cumprimento da história da salvação parte da ideia de que, no final da história do povo judeu, o Messias da tribo de Davi virá instaurar o Reino de Deus, um reino terreno onde o ungido do Senhor reunirá as tribos do povo eleito e, partindo de Jerusalém, estabelecerá um reino de paz universal a que também os outros povos serão incorporados, em parte por sujeição e em parte por adesão voluntária. A esperança do reino tem, assim, um caráter eminentemente político e imanente ao mundo. A expectativa de um Messias terreno como fundador de um reino judeu veio a ser o mais forte impulso para revoluções políticas, sobretudo contra a dominação grega e romana. A época que antecedeu a vinda de Jesus é cheia de revoltas messiânicas, onde sempre de novo surgem vultos que se apresentam como messias e que reclamam para si e para sua luta de libertação a força milagrosa do Reino de Deus. Formaram-se grupos de voluntários especialmente na Galileia, onde a esperança de um futuro melhor afirmava-se com tanto mais intensidade quanto mais sem perspectivas era o presente. O último destes grupos de voluntários foi massacrado em Massada no ano de 73 dC.
Jesus decepcionou as expectativas políticas destas camadas da população; ele não quis deixar-se transformar num messias político. Ao invés, foram justamente seus adversários que se aproveitaram da falsa interpretação política de sua pessoa para dar cabo dele. Pois foi como golpista judeu, que se teria rebelado contra a soberania do estado romano, que a autoridade romana competente o condenou e o executou. A inscrição na cruz, “Jesus Nazareno Rei dos Judeus”, indica, como o motivo de sua condenação e execução, a insurreição política de um messias-rei judeu.
2. Ao lado desta expectativa de um messias político encontra-se também uma segunda forma de expectativa do final dos tempos. Seus portadores são os grupos dos piedosos no país, os conspiradores pietistas tipo comunidade de Enoque, Essênios ou comunidade de Qumran, próximo ao Mar Morto. Seus anseios voltam-se não para um messias terreno mas para alguém ungido pelo céu, que irá trazer não um reino terrestre mas um reino celestial. Nestes círculos campeia um clima de fim de mundo. O antigo éon está terminando, um novo éon irá surgir. O cumprimento das promessas não está no mundo velho mas no mundo futuro que há de vir, para o qual é preciso preparar-se pela penitência. De espada e batalha, de golpe e rebelião, nada querem saber estes religiosos. O nascimento do novo éon será precedido por um tremendo juízo sobre os ímpios, sobre os povos pagãos e Satã, com suas forças infernais. O messias não virá como um rei terreno da tribo de Davi, mas como uma figura celestial, como o Filho de Deus que desce ao reino do maligno e aí reúne os seus para levá-los de volta ao reino das luzes, que assumirá a soberania do mundo e que, depois de superar todos os poderes demoníacos terrestres e supraterrestres, deporá o universo aos pés de Deus.
Como um segundo traço novo, a este transcender da antiga expectativa está ligada a esperança da ressurreição. De acordo com as esperanças escatológicas mais antigas do judaísmo, os beneficiários da transformação do mundo por Deus haveriam de ser unicamente os membros da última geração da humanidade, os que aqui na terra tivessem a felicidade de presenciar a chegada do Messias. As gerações anteriores ter-se-iam consumido todas no anseio da realização das promessas,..mas elas morreram sem que o chegassem a ver. O judaísmo antigo não conhecia uma esperança da ressurreição. Mas agora, em conexão com a transcendência da espera do Reino de Deus, também a expectativa persa da ressurreição se manifesta; o Reino de Deus incluirá todos os fiéis de todas as gerações da humanidade, como ressuscitados, também os das gerações anteriores da humanidade haverão de encontrar na ressurreição o cumprimento de sua fé. No novo éon o Messias Filho do Homem reinará sobre os fiéis ressuscitados de todos os tempos e de todos os povos. Com isto dá-se um peculiar alargamento das fronteiras da esperança escatológica: ela não se refere mais unicamente aos judeus, com o transcender das barreiras penetra nela um traço universalista.
Jesus mesmo surgiu na Galileia como um pregador ambulante, pregando a penitência. Uma figura deste tipo não constituía novidade no quadro da piedade do judaísmo tardio: pouco antes havia surgido uma figura sob muitos aspectos semelhante: João Batista. Vistos exteriormente os dois eram muito parecidos. Ambos pregavam que o Reino de Deus estava próximo; ambos associavam a este anúncio a necessidade da penitência; ambos dirigiram sua pregação às camadas do povo fiel que em sua fé e esperança estavam inteiramente voltadas para a vinda do Reino de Deus, e isto no sentido da chegada maravilhosa do Reino dos céus, que haveria de transformar a terra, e em que o futuro já iniciado haveria de reunir os cidadãos eleitos do reino, um reino de milagres, um reino de manifestação da força divina, um reino da verdade e da justiça de Deus. Para este reino é preciso desde já estar preparado, varrer desde agora a injustiça de sua vida, para que o inaugurador do Reino encontre corações preparados e discípulos santificados.
E no entanto, existe uma diferença intransponível entre Jesus e João. João é o pregador da penitência que aponta para o Messias e o Reino vindouro e que exige penitência, mas ele mesmo não traz a sua realização. Jesus, ao invés, se compreende como aquele que traz o cumprimento das promessas, uma vez que nele já atuam as forças miraculosas do Reino de Deus. Ele anuncia a Boa-Nova de que o Reino há tanto tempo prometido já vem surgindo, que a realização está aí. E esta a novidade: o reino prometido que há de vir e que é superior a este mundo, o novo éon vindo do além, já manifesta no aquém seus efeitos de salvação, como uma realidade carismática que reúne os homens numa nova comunidade.
Mas Jesus não simplesmente aplicou a si próprio a promessa do Filho do homem que vem do céu, como enunciada em Enoque, mas a esta espera do Filho do homem ele também dá uma interpretação inteiramente nova. Os círculos judeus piedosos tipo comunidade de Enoque e outros grupos pietistas esperavam no Filho do Homem que haveria de vir uma figura luminosa, um triunfador celeste, com todos os sinais do poder e da glória divina. Mas Jesus associa a espera do Filho do Homem à figura do Servo sofredor (Is 53). O Filho do Homem passa pela terra como o servo sofredor, na humildade e na pobreza, entrega-se a si próprio como vítima de expiação pelos pecados dos homens, sofre até a morte, para só então ser estabelecido na glória, ser elevado a Deus, transfigurado na figura luminosa do Filho do Homem, para depois voltar na glória como aquele que irá levar o Reino à sua perfeição. A esta visão que Jesus tinha a respeito de si próprio também a cristologia do Logos podia unir-se.