Ernst Benz — Descrição do Cristianismo
Excertos do livro “Descrição do Cristianismo” de Ernst Benz, publicado pela Vozes (1995).
Prefácio
Em face do grau de especialização das pesquisas, que se manifesta hoje no campo da História do Cristianismo com não menos intensidade que nas outras ciências do espírito — para não falar das ciências naturais -, o leitor não pode deixar de considerar uma temeridade o fato de um historiador querer enfrentar a tarefa de esboçar uma visão global do Cristianismo. E uma temeridade de que tenho plena consciência. Se não obstante aceito o desafio, faço-o pelas seguintes razões:
1. Porque foi precisamente a fragmentação da minha especialidade em numerosas disciplinas isoladas que fez com que me sentisse particularmente atraído pelo desafio de apresentar uma visão global.
2. Porque vejo pelo menos um vislumbre de justificativa no fato de haver me dedicado a atividades de ensino e pesquisa ao longo de oitenta semestres, durante os quais, tanto em palestras como em seminários normais e especializados, pude, por assim dizer, mexer com toda a história do cristianismo. Na última semana da II Guerra Mundial minha casa em Marburg foi derrubada por bombas, que destruíram a minha biblioteca e todos os manuscritos de minhas preleções. Este fato constituiu um ensejo para que desde então de tempos em tempos eu mesmo queimasse minhas preleções, a fim de conservar-me sempre ao nível das últimas pesquisas, evitando a tentação de tornar a andar por rotas já trilhadas.
3. As viagens de estudos que me levaram a todos os países da Europa e a um grande número de países da América do Sul e do Norte, do Próximo, Médio e Extremo Oriente, bem como minhas atividades de ensino como professor visitante em universidades dos vários continentes, possibilitaram-me que nos encontros com os líderes espirituais e com as formas de vida e de culto de seus grupos eu conhecesse de perto as diferentes formas de vida cristã de muitas igrejas, seitas e movimentos e desta forma submetesse minhas pesquisas científicas ao crivo da observação prática e da experiência. Um sexto sentido para as diferentes formas de experiência carismática cristã, que, graças ao meu mestre Ernesto Buonaiuti, pude desenvolver durante o tempo de meus estudos universitários em Roma, fez com que me voltasse não apenas para a interpretação teológica e ideológica teóricas dos grupos cristãos, mas também para o conjunto de sua vida de piedade e para o poder de irradiação dessa piedade cristã sobre sua vida cultural, política e individual.
4. O motivo externo para este esboço literário de uma visão global do cristianismo nasceu do honroso convite para escrever o artigo “CHRISTIANITY” para a 15s edição da ‘Encyclopaedia Britannica’ (1974). A necessidade de observar os prazos, inerente a uma tarefa como esta, contribuiu de forma decisiva para que essa árdua tarefa fosse enfrentada com ajuda de um minucioso programa de trabalho.
Mas a presente obra não se identifica com o mencionado artigo, pois aquele tinha que ser incluído no contexto de uma enciclopédia em que numerosos temas pertencentes a este amplo terreno da “CHRISTIANITY” eram desenvolvidos por outros autores em artigos separados. A tradução do manuscrito alemão para o inglês e a revisão redacional da tradução inglesa por diversos colaboradores implicaram também em novas mudanças da versão alemã original, modificando-lhe não apenas a extensão como também o estilo.
Ao editor da ‘Encyclopaedia Britannica’, Mr. Warren E. Preece, considero-me devedor de um sincero agradecimento pela permissão de publicar o presente texto para os leitores de língua alemã, texto que representa uma ampla revisão e ampliação do original alemão escrito para a ‘Encyclopaedia Britannica’. A bibliografia também foi revisada e complementada sob este ponto de vista, com o objetivo de tornar acessível aos leitores alemães o que, em língua alemã, existe de mais importante sobre os temas abordados. Em face da riqueza e abundância da literatura recente não me foi possível apresentar mais que uma parcimoniosa seleção, o que constitui uma das inevitáveis limitações de tão temerário empreendimento.
Consola-me a profunda verdade reconhecida por Leibniz, de que Deus, o “deus summe historicus”, é o único que conhece perfeitamente a história do mundo e a história do cristianismo, e o único que sabe como realmente foi, como realmente é e ainda como realmente deveria ter sido e haverá de ser. Se Jesus disse: “Ninguém é bom senão Deus somente” (Mt 19,17), e se isto vale de maneira especial para o “deus summe historicus”, como haveria este pobre professor de História da Igreja, vivendo numa época em que o carrossel das ideologias, sobretudo nas universidades, gira cada vez mais vertiginosamente e em que o cristianismo é atacado por todos os lados, como poderia ele, em sua temeridade e ousadia, pretender ainda que seus contemporâneos o considerassem bom?
Excertos