Bem-aventurados quando vos injuriarem (Mt 5,11-12; Lc VI, 22-23)
Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem e perseguiram e, mentindo, disserem todo mal contra vós por minha causa. Alegrai-vos e exultai, porque é grande o vosso galardão nos céus; porque assim perseguiram aos profetas que foram antes de vós. (Mt 5:11-12)
Bem-aventurados sereis quando os homens vos odiarem, e quando vos expulsarem da sua companhia, e vos injuriarem, e rejeitarem o vosso nome como indigno, por causa do Filho do homem. Regozijai-vos nesse dia e exultai, porque eis que é grande o vosso galardão no céu; pois assim faziam os seus pais aos profetas. (Lc 6:22-23)
Agostinho de Hipona: SERMÃO DA MONTANHA))
Eis aí as oito bem-aventuranças (anteriores). Quanto ao que segue, o Senhor dirige-se diretamente aos que se encontram ali presentes, e lhes diz: “Bem-aventurados sois, quando vos injuriarem e vos perseguirem” (((Mt 5,11).
As sentenças precedentes estavam expressas de modo geral, pois o Senhornão declarou: “Bem-aventurados os pobres emespírito”, porque vosso é o Reino dos Céus, mas: “porque deles é o Reino dos Céus”. Tampouco disse: “Bem-aventurados os mansos”, porque vós herdareis a terra, mas: “porque eles herdarão a terra”.
Da mesma maneira continua até a oitava bem-aventurança, quando diz: “Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus”. Contudo, daí por diante, começa adirigir-se diretamente aos presentes. Não obstante, todas aquelas coisas já afirmadas, igualmente convêm aos que ali o escutavam. E ao que diz em seguida, embora sejam especialmente dirigidas aos que o ouviam, atingem também aos ausentes e a quantos vierem a existir.
Gnosticismo
Roberto Pla: Evangelho de Tomé – Logion 68
A bem-aventurança que traz o logion não se subtrai a essa qualidade de ser via para o Reino, mas possui a particularidade de constituir-se em culminação e resumo de todas as bem-aventuranças. É a mesma que com um redação algo diferente figura como última nas séries proporcionadas por Mateus (oito, mais esta) e por Lucas (três mais esta). Sua colocação como “última” se dá obrigada, posto que serve para expressar o sentido fundamental de todas as vias, embora em realidade o que nesta bem-aventurança se peça não é o último, senão o primeiro que é necessário cumprir em ordem a efetuar as bodas sagradas com o Espírito de Deus.
Com as expressões ódio, injúria, expulsão, perseguição…, que aparecem no conjunto das três versões de que dispomos para esta bem-aventurança, parece que querem referir-se os redatores evangélicos à formosa solidão com que ao final se enfrenta todo aquele que por sua fé no Cristo interior, no Ungido oculto, no si mesmo — em quem poucos creem — está no mundo sem ser do mundo. Todo o que crê, chega a viver na unidade e na luz sem deixar de estar no mundo; vive no mundo, mas sem ser já um hóspede da separação e das sombras que conformam o mundo cego cotidiano dos que não creem.
Para quem não discerniu ainda em sua lâmpada a luz do Filho do Homem, ocorre que os andamentos daqueles que caminham até sua definitiva conversão nessa luz, resultam, por força, muito enojosas e inclusive aborrecíveis. O que é humildade e juízo costuma lhes aparecer como alienação e loucura, e o mundo real da luz é tido por aparência inútil sem contato com o tempo e o espaço que julga verdadeiros.
Aqueles que ainda não percebem a luz pensam que há um mundo “aqui” e outro na luz, mas este é um pensamento muito imaturo pois o mundo de sombras pelo qual muitos perambulam, é o mesmo mundo que é possível contemplar e viver na luz com gozo verdadeiro. O que é do mundo e o que não o é se diferenciam nisto, em que este último percebe e vive a luz na mesma morada em que outros olham e sofrem a sombra.
Esse é o sentido completo que depreende das explicações dadas por Jesus a seus discípulos quando estes, sem mover-se de seu lugar no mundo, mas atentos à luz do mestre, começavam a contemplar o mundo como luz: “Se fosses do mundo, o mundo amaria o seu, mas, como não sois do mundo, porque eu ao elegê-los (eklektos) os saquei do mudo, por isso os odeia o mundo” (Jo 15,19).
O que pretende Jesus — ele, que é luz — é que todos os homens que vêm a este mundo compreendam que cada um, cada homem, é a luz do mundo. Assim anunciou: “Vós sois a luz do mundo” (Mt 5,14); mas ocorre que aqueles que só olham a aparência, a estreiteza do mundo, não veem a luz, a realidade, e a negam. Em seu olhar ignorante, superficial, tomam por luz verdadeira os fogos fátuos.
Na versão lucana da bem-aventurança que nos ocupa se diz que os não crentes proscrevem o nome dos que creem (vide Nome). Lucas faz aqui uso de um conhecido semitismo para definir a coisa pelo nome, pois na realidade se refere ao nome divino, o que em verdade corresponde a todos os que seguem ao Filho do Homem, pois está dito: “Os deu poder de se fazerem filhos de Deus aos que creem em seu nome” (Jo 1,12).