Basilio Profissão de Fé

Basílio de Cesaréia
PROFISSÃO DE FÉ
(P.G. 31, 675-692 — tradução Cirilo Folchs Gomes)

Quando conheci, por graça do bom Deus, a obrigação que me impunha vossa piedade, aliás bem conforme ao amor (agape ou eros) de Deus no Cristo, de vos fazer por escrito uma profissão da santa fé, inicialmente pensei em minha pequenez e fraqueza, hesitando em corresponder a vosso pedido. Mas lembrando-me das palavras do Apóstolo: “sustentai-vos mutuamente na caridade” e: “é crendo no coração que se obtém a justiça e professando em palavras que se obtém a salvação”, julguei perigoso resistir-vos e calar minha profissão de fé. Pus então minha confiança em Deus, segundo a palavra: “não que sejamos capazes por nós mesmos de conceber alguma coisa como procedente de nós, mas nossa capacidade vem de Deus”. Ele nos fez capazes — e per causa de vós — de sermos ministros da Nova Aliança, “não da letra, mas do espírito (pneuma)”.

Ora, bem o sabeis, é próprio do ministro guardar íntegro e intato o depósito que lhe confiou o bom Mestre, em favor de seus companheiros. Por conseguinte, o que aprendi da Escritura inspirada devo igualmente comunicar-vos, procurando atender a vossas necessidades e agradar a Deus. Entretanto, se o próprio Senhor, em quem o Pai pôs seu agrade, em quem estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e da ciência, e que, após ter recebido do Pai todo poder (dynamis) e julgamento, afirma: “Ele me prescreveu o que devo dizer e ensinar”, e também: “o Espírito não fala de si mesmo, mas diz o que ouviu”, com muito mais razão devo eu pensar e agir em nome de nosso Senhor Jesus Cristo.

Durante longo tempo (aion) em que precisei combater as heresias, à medida que brotavam — o que fazia seguindo o exemplo de meus predecessores — achei preferível adaptar-me ao desvio provocado pelo demônio e usar, para reprimir eu confundir as blasfêmias proferidas, expressões correspondentes a elas, ora umas, ora outras, segundo as necessidades dos fracos, e às vezes mesmo expressões que não eram bíblicas, embora não estranhas ao sentido correto das Escrituras.

Mas agora, para atingir nosso objetivo presente, o meu e o vosso, achei conveniente ficar na simplicidade da pura fé, e dizer-vos — cedendo à vossa exigência no Cristo — o que aprendi da Escritura divinamente inspirada. Evitarei, pois, termos e palavras que não estiverem literalmente na Escritura, ainda que exprimissem o mesmo pensamento dela. O que for alheio à letra e ainda contiver um sentido diverso do que se acha na pregação dos santos, afastaremos totalmente come estranho e incompatível com a sadia fé.

A fé é, pois, um assentimento dado sem reserva ao que se ouve dizer, na convicção de ser verdadeiro tudo o que foi proclamado na graça de Cristo.

Abraão a possuía, segundo está atestado: “ele não hesitou em sua fé, mas manteve-se firme nela e deu graças a Deus, persuadido de que é poderoso para cumprir o que prometeu”. Se pois o Senhor é digno de fé em suas palavras, se todos os mandamentos são seguros, confirmados nos séculos dos séculos, realizados na verdade (aletheia) e na justiça, é manifestamente uma fraqueza da fé e prova de orgulho rejeitar qualquer ponto do que está escrito, ou introduzir o que não está. Com efeito, nosso Senhor disse: “minhas ovelhas conhecem minha voz”, e o disse depois de ter afirmado: “elas não seguem ao estranho, mas dele fogem pois não conhecem a voz do estranho”. E o Apóstolo, estabelecendo confronto com as coisas humanas, proíbe o acréscimo às Escrituras inspiradas, dizendo: “quando um testamento está em forma boa e conveniente, ninguém deve anulá-lo ou acrescentar-lhe algo”.

Resolvemos, pois, evitar sempre, e sobretudo agora, qualquer “expressão ou pensamento alheies ao ensino do Senhor, porque nosso objetivo, o vosso e o meu, difere muito dessas proposições sobre as quais fui levado a falar ora de um modo, ora de outro. O que importava então, com efeito, era refutar uma heresia ou anular os artifícios do demônio, ao passo que no momento se trata apenas de confessar a verdadeira fé e pô-la em evidência. Não podemos então, falar agora nos mesmos termos. Ninguém se utilizaria dos mesmos meios para cultivar o solo e para ir à guerra, uns sendo instrumentos de trabalho e outros armas de combate. Ninguém usaria a mesma linguagem, com a qual refuta os adversários, para a exortação na sã doutrina. Um é o modo de persuadir, outro o de exortar; uma a simplicidade de professar em paz e piedade, outra a dificuldade de resistir a uma doutrina enganadora.

Assim, usando de discernimento, empregaremos as expressões úteis à manutenção e edificação da fé.

Mas antes de vir a minha profissão de fé, será preciso deixar bem claro não me ser possível exprimir pela palavra nem captar pela inteligência a grandeza e a glória de Deus, nem designá-la ou concebê-la numa só palavra ou num só pensamento.

É por uma multidão de palavras, adaptadas a nosso uso, que a Escritura inspirada mal a esboça, como através de um espelho, para aqueles que têm um coração puro. O conhecimento (gnosis) face a face e perfeito será concedido, conforme a promessa, apenas no século vindouro para os que forem dignos. No tempo (aion) presente, seja Paulo ou seja Pedro, dizemos que ele vê realmente o que vê e não se engana nem se ilude, mas vê através de um espelho e confusamente. Aceitando com gratidão o conhecimento (gnosis) imperfeito, aguarda na alegria o conhecimento (gnosis) perfeito. O apóstolo Paulo atesta isso quando introduz sua afirmação por estas palavras: “quando eu era menino, (recém-instruído com os primeiros elementos dos oráculos divinos) falava como menino, pensava como menino; agora que sou homem (e me apresso a chegar à estatura da plenitude de Cristo) libertei-me das coisas de minha meninice” e tais foram meu progresso e meu avanço na ciência das coisas de Deus, que minha instrução no culto judaico corresponde à atividade (energeia) intelectual do menino, enquanto meu conhecimento (gnosis) no Evangelho convém antes ao homem adulto.

Da mesma forma, se ao conhecimento (gnosis) que será revelado no século vindouro aos dignos se compara o que agora se julga ser o conhecimento (gnosis) perfeito, este parecerá curto e indistinto e tão mais distante da caridade futura quanto é distante da visão face a face a que se tem através do espelho.

Não será menor a superioridade do conhecimento (gnosis) futuro em relação ao desta vida: demonstram-no os discípulos do Senhor, com Paulo e João. Quando eles pareceram dignos de ser chamados pelo Senhor para viver em sua companhia, ser por ele enviados em missão e receber os carismas espirituais, então aconteceu que depois de lhe ter dito: “a vós é dado conhecer os mistérios do reino dos céus”, depois de lhes ter sido outorgado tal conhecimento (gnosis) daquilo que a outros era ocultado, ainda ao aproximar-se a paixão, ouviram do Senhor as palavras: “tenho muitas coisas a dizer-vos, mas não as podeis suportar agora”.

Resulta deste e de outros semelhantes textos que não se termina jamais de perscrutar a Escritura inspirada e é impossível penetrar nos mistérios divinos, ficando sempre à frente um progresso a se fazer, de sorte que a perfeição dista de nós até o momento em que “o perfeito aparece, quando o imperfeito for abolido”.

Eis porque não nos podemos contentar com uma só palavra para designar simultaneamente todas as glórias de Deus, e nenhuma palavra pode ser empregada sem risco, em seu sentido integral. Assim, se alguém diz: “Deus”, não está indicando o “Pai”, e se diz “Pai”, ainda não está indicando: “Criador”, precisando acrescentar depois: “Bondade”, “Sabedoria”, “Poder” e todos os demais atributos mencionados na Sagrada Escritura. Prosseguindo: a palavra “Pai”, se a empregamos para Deus absolutamente no mesmo sentido que tem entre nós, estaremos faltando ao respeito, pois ela envolve a paixão, o sêmen, a ignorância (agnoia), a fraqueza e todas as outras coisas desse gênero. O mesmo se dirá da palavra “Criador”: nós, para criarmos alguma coisa, precisamos de tempo (aion), de materiais, de instrumentos, de auxílios, e tudo isso é o que temos de expurgar ao máximo da idéia de Deus.

Se todas as inteligências se reunissem para compreendê-lo e todas as línguas se juntassem para proclamá-lo, ainda assim nada se conseguiria de condigno. Salomão, o sábio, expõe esse pensamento com toda clareza: “eu disse: tornar-me-ei sábio; eis que a sabedoria se retirou longe de mim, mais ainda do que já estava”, não que fugisse, mas porque ela aparece mais incompreensível aos que Deus faz conhecê-la melhor. A Sagrada Escritura deve, assim, servir-se de vários termos ou expressões para nos dar uma idéia, ao menos parcial e confusa da glória de Deus.

Nós cremes, pois, e confessamos nossa fé no único Deus verdadeiro e bom, Pai todo-poderoso, criador de todas as coisas, Deus e Pai de nosso Deus e Senhor Jesus Cristo; no único Filho do Pai, nosso Deus e Senhor Jesus Cristo, único verdadeiro, por quem tudo foi feito, tanto as coisas visíveis como as invisíveis, e em quem tudo subsiste; que estava no princípio junto de Deus e era Deus, e em seguida, conforme as Escrituras, apareceu sobre a terra e habitou com os homens, que sendo de condição divina não reteve avidamente sua igualdade com Deus, mas aniquilou-se a si mesmo, assumindo, per seu nascimento da Virgem, a condição de servo e manifestando-se sob o aspecto de homem, quando então cumpria, segundo a ordem do Pai, tudo o que estava escrito dele e sobre ele, tornando-se obediente até a morte (thanatos), e morte (thanatos) de cruz; ressuscitando dentre os mortos ao terceiro dia, conforme as Escrituras, mostrou-se aos santos apóstolos e a outros, como está escrito; subiu aos céus e está assentado à direita do Pai, de onde voltará, no fim dos tempos, para ressuscitar todos os homens e dar a cada um a retribuição de seus atos, indo os justos para a vida eterna e o Reino celeste, enquanto os pecadores serão condenados ao eterno castigo, lá onde o verme não morre e o fogo não se extingue. Creio igualmente no único Espírito Santo, o Paráclito, cujo selo recebemos para o dia da redenção; Espírito de verdade (aletheia), Espírito de adoção, no qual clamamos Abba, Pai; que distribui e opera os dons de Deus em cada um conforme convém, conforme lhe apraz; que ensina e sugere tudo o que ouviu do Filho; que é bom, guiando cada um em toda a verdade (aletheia) e fortificando os fiéis na fé segura, na confissão exata, no culto santo e na adoração em espírito (pneuma) e verdade (aletheia), de Deus Pai, de seu Filho único, nosso Deus e Senhor Jesus Cristo, e dele mesmo.

O nome dado a cada um indica claramente um atributo que lhe é próprio e, de cada um se predicam, com toda piedade, diversas propriedades particulares. O Pai existe em seu caráter próprio de Pai, o Filho em seu caráter próprio de Filho e o Espírito Santo em seu caráter pessoal, mas nem o Espírito Santo fala por si mesmo, nem o Filho faz algo per si mesmo; o Pai enviou o Filho e o Filho enviou o Espírito Santo.

Assim pensamos e assim nos batizamos na Trindade consubstanciai, segundo a ordem do Senhor Jesus Cristo: “Ide, ensinai todas as nações, batizai-as em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, fazendo-as observar todos os mandamentos que vos dei”. É observando esses mandamentos que lhe manifestamos nosso amor (agape ou eros)” e merecemos nele permanecer, como está escrito; se não os observamos, manifestamos o contrário, pois: “aquele que não ama, diz o Senhor, não guarda meus mandamentos” e ainda: “aquele que tem meus mandamentos e os guarda, esse me ama”.

Admira-me grandemente ouvir palavras como a do Senhor: “não vos alegreis per expulsardes os demônios, mas porque vossos nomes estão escritos no céu”, e ainda: “nisso reconhecerão serdes meus discípulos: se vos amardes uns aos outros”. Donde, o Apóstolo, para mostrar a necessidade da caridade em tudo, acrescenta este testemunho: “ainda que eu fale todas as línguas, dos homens e dos anjos, se não tiver a caridade, serei como um bronze que soa e como um címbalo que retine; se tiver o dom da profecia e conhecer todos os mistérios e ciências, se tiver uma fé tal que transporte montanhas, se não tiver a caridade, nada serei”. E pouco depois: “as profecias desaparecerão, o dom das línguas cessará, o dom da ciência se extinguira”; “atualmente três coisas permanecem: a fé, a esperança e a caridade, mas a maior das três é a caridade”. Ora, admira-me ouvir tantas declarações (e ainda outras semelhantes) do Senhor e do Apóstolo, e no entanto ver os homens mostrar solicitude e inclinação pelas coisas perecíveis, não se preocupando pelas que permanecem e caracterizam o cristão; ver até cs homens oporem-se aos que as procuram, dando cumprimento à palavra: “eles não entrarão nem deixarão os outros entrarem”.

Eis por que vos peço que ponhais fim a toda pretensão supérflua e a todo palavreado importuno, que vos contenteis com as palavras do Senhor e dos santos, e tenhais pensamentos dignos de vossa vocação celeste, a fim de levardes uma vida digna do Evangelho de Cristo e do reino do céu, preparado para todos os que guardam os mandamentos de Deus Pai, segundo o Evangelho de Jesus Cristo, Deus e Senhor nosso, no Espírito de santidade (hagiasmos) e de verdade (aletheia).

Ante a insistência de vossa piedade, temos crido necessário e oportuno repetir tudo isso e manifestar claramente nosso pensamento a vós todos e, por vós, aos nossos irmãos no Cristo, a fim de vos dar uma garantia plena no nome de nosso Senhor Jesus Cristo. Não deve ocorrer, com efeito, que o espírito (pneuma) de alguns seja levado à dúvida por causa do que poderíamos ter dito diversamente ou em outros termos, sempre na medida em que estávamos obrigados a refutar os argumentos alegados pelos adversários da verdade (aletheia); ou por causa das atribuições de erros, que nos fazem os que nos atribuem suas próprias fraquezas, no intento de seduzir os simples. Dessa gente deveis acautelar-vos, como gente estranha à fé evangélica e apostólica, e também à caridade, lembrados da palavra do Apóstolo: “se alguém, dentre nós mesmos ou até um anjo do céu, vos anunciasse um evangelho diferente do que vos temos anunciado, seja anátema”. Lembrai-vos igualmente da palavra: “guardai-vos dos falsos profetas” e desta outra: “mantende-vos à distância de todo irmão que vive de modo irregular e não seguindo a tradição recebida de nós”. Conformai-vos à regra dos antigos, pois estais “edificados sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas, com nosso Senhor Jesus Cristo como pedra angular, ele, em quem o edifício, perfeitamente coordenado, se eleva para formar um templo santo no Senhor.

“Que o Deus de paz vos santifique totalmente. Que todo o vosso ser: espírito (pneuma), alma e corpo sejam conservados irrepreensíveis para a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo. Deus, que vos chama, é fiel e tudo aperfeiçoará”.

Julgando ter-vos exposto com suficiente clareza o que diz respeito à verdadeira fé, vamos, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo, apressar-nos a cumprir a promessa no tocante à moral. Tudo o que, até agora, encontramos proibido eu aprovado no correr do Novo Testamento, esforçar-nos-emos por condensar em regras sumárias para o fácil entendimento de todos, notando para cada regra o número dos capitules correspondentes da Escritura, seja do Evangelho, seja do Apóstolo, seja dos Atos, a fim de que o leitor de cada regra, percebendo per acaso o número inscrito ao lado, procure pessoalmente a Escritura e encontre o texto sobre o qual está baseada a regra escrita.

Na verdade (aletheia), teria gostado de colocar também ao lado as referências correspondentes ao Antigo Testamento, mas premido pela necessidade — pois os irmãos me urgem o cumprimento de uma velha promessa — lembrei-me do que foi dite: “Dai ocasião ao sábio e ele será mais sábio”. Assim, cada qual terá uma boa ocasião de ir ao Antigo Testamento e certificar-se por si mesmo da concordância dos textos da Escritura inspirada, mesmo se, para aqueles que têm fé e estão convencidos da verdade (aletheia) das palavras do Senhor, uma só dentre elas já bastasse. Eis por que também pensamos não ser necessário, mesmo para o Novo Testamento, citar todos os textos, mas apenas alguns.