SÃO BASÍLIO MAGNO — MONASTICISMO
VIDE: CENOBITAS
QUESTÃO 7 — A CONVENIÊNCIA DE SE CONVIVER COM OS QUE UNANIMEMENTE TENCIONAM AGRADAR A DEUS. É TÃO DIFÍCIL QUÃO PERIGOSO VIVER ISOLADO
Uma vez que vossas palavras nos persuadiram de que é perigoso passar a vida em companhia dos que desprezam os mandamentos do Senhor, queremos agora saber se quem deles se afasta deve viver sozinho ou conviver com irmãos que tenham o mesmo modo de pensar e escolheram idêntico escopo de piedade.
Resposta
1. Estou convicto de que a vida em comum dos que têm idêntico escopo é a mais adequada à obtenção de muitas vantagens. Primeiramente, porque nenhum de nós é auto-suficiente para prover às suas necessidades corporais; para adquirirmos o indispensável precisamos uns dos outros.
Os pés têm algumas capacidades, porém para algumas coisas são incapazes. Privados do auxílio dos outros membros não têm em si força bastante, nem continuamente são auto-suficientes; não podem suprir as próprias deficiências. Assim também a vida eremítica torna inútil o que possuímos e não nos possibilita adquirirmos o que nos falta. Deus, nosso Criador, quis que precisássemos uns dos outros, e, como está escrito, que o homem se associasse a seu semelhante (Eclo 13,20). Além disso, a caridade de Cristo impede que cada um considere apenas o que é seu. A caridade, diz-se, não busca os seus próprios interesses (1Cor 13,5).
A vida eremítica, porém, tem um só escopo: o de atender às próprias necessidades. Evidentemente, isso é oposto à lei da caridade, que o Apóstolo praticou, porque não buscava o interesse próprio, mas o de muitos, para que fossem salvos (1Cor 10,33).
Em seguida, quem vive isolado não reconhecerá facilmente seus pecados, pois não há quem o repreenda e corrija com mansidão e misericórdia. A repreensão, mesmo se parte de um inimigo, muitas vezes desperta nos bons o desejo de correção. A purificação, porém, do pecado é realizada conscientemente por aquele que ama de coração sincero: Quem ama (seu filho), foi dito, corrige-o continuamente (Pr 13,24). É dificílimo encontrar um tal na solidão, se não houver antes vivido em comum. Acontece-lhe o que foi dito: Ai do homem solitário. Se ele cair não há ninguém para o levantar (Ecl 4,10).
Muitos preceitos são facilmente cumpridos, quando o são por muitos reunidos; por um sozinho, não, porque uma obra impede outra. A visita de um enfermo, por exemplo, obsta à recepção de um hóspede e a doação e distribuição do necessário (principalmente quando esses serviços tomam muito tempo) tolhe o zelo na prática de boas obras. Com isso cai no esquecimento o preceito máximo e mais condizente com a salvação: não é nutrido o faminto, nem vestido o nu.
Quem pretenderia dar precedência à vida inerte e infrutífera e não à vida frutuosa, segundo o mandamento do Senhor?
2. Se todos nós que fomos assumidos numa só esperança da vocação (Ef 4,4) somos um só corpo, tendo a Cristo por Cabeça (1Cor 12,12), e somos membros uns dos outros, se não nos unirmos na harmonia do Espírito Santo, na constituição de um só corpo, mas ao contrário escolher cada um viver isolado, sem servir, como é agradável a Deus, à utilidade comum na dispensação dos bens, seguindo, como lhe apraz, os próprios apetites, como conservaremos, separados e divididos, a mútua relação de membros e o serviço ou a obediência devidos a nossa Cabeça, que é Cristo?
Não poderemos, vivendo separados, alegrar-nos com quem é glorificado, nem sofrer com quem sofre (ibid. 26), não nos sendo possível, como se vê, conhecer as condições do próximo.
Além disso, como ninguém é capaz de receber todos os carismas espirituais, mas segundo a proporção da fé (Rm 12,6) de cada um é dado o Espírito, o dom peculiar a um transmite-se aos seus concidadãos. A um é dada uma palavra de sabedoria, a outro a palavra de ciência, a outro a fé, a outro a profecia, a outro a graça de curar as doenças, etc. (1Cor 12,8.10). Recebe-os cada um, não tanto para si, mas para os outros.
Na vida em comunidade, necessariamente a força do Espírito Santo concedida a um transmite-se simultaneamente a todos. Quem vive sozinho, talvez possua um dom; mas enterra-o em si mesmo por preguiça e torna-o inútil. Quão grande é esse perigo, sabeis vós todos que lestes os Evangelhos. Na convivência com muitos, porém, goza do que lhe é próprio, multiplica-o ao comunicá-lo e colhe frutos dos dons alheios, como dos próprios.
3. Possui ainda a vida em comum outras vantagens, difíceis de enumerar em sua totalidade.
É mais proveitosa para a conservação dos bens que Deus nos deu do que a solidão. Também para a preservação das ciladas externas do inimigo é mais seguro ter alguns vigias que o despertem no caso de adormecer naquele sono mortal, que Davi nos preveniu pedirmos se afaste de nós: Iluminai meus olhos com vossa luz, para eu não adormecer na morte (SI 12,4). É mais fácil ao pecador abandonar o pecado, se receia a condenação unânime de muitos, de maneira a convir-lhe a palavra: Basta a esse homem o castigo que a maioria lhe infligiu (2Cor 2,6).
Mais forte será a convicção daquele que age bem, sendo muitos os que o aprovam e concordam com a sua atuação. Se toda questão deve se resolver pela decisão de duas ou três testemunhas (Mt 18,6), é claro que há de se sentir muito mais seguro quem fez uma boa obra, atestada por muitos.
Além dos supracitados, há outros perigos que acompanham a vida isolada. O primeiro e o maior é o da auto-complacência. Não tendo quem examine suas obras, julgará ter atingido a perfeição do mandamento. Em segundo lugar, deixando inertes os bons hábitos, não conhecerá seus próprios vícios, nem o progresso realizado em obras, estando suprimida a matéria para a prática dos mandamentos.
4. Como demonstrará humildade, se ninguém houver em comparação do qual se mostre mais humilde? Para com quem usará de comiseração, se está longe da companhia dos demais? Como se exercitará na paciência, se ninguém se opõe às suas vontades? Se disser alguém bastar-lhe o ensinamento das divinas Escrituras para a emenda dos costumes, age à semelhança de quem aprende a construir, mas nunca edifica, ou como quem aprende a forjar metais, mas não quer aplicar as normas de sua arte. O Apóstolo poderia lhe dizer: Diante de Deus não são justos os que ouvem a lei, mas serão tidos por justos os que praticam a lei (Rm 2,13).
E eis que o Senhor, no excesso de seu amor aos homens, não se contentou com ensinar só por palavras. A fim de nos dar exemplo claro e expresso de humildade, na perfeição do amor, cingiu-se e lavou os pés dos discípulos. De quem os lavarás tu? A quem servirás? Como serás o último, se moras sozinho? Sendo bom e agradável para irmãos unidos viverem juntos (SI 132,1), o que o Espírito compara ao óleo puríssimo que exala da cabeça do sumo pontífice, como se realizará isso para quem mora isolado?
A vida em comum de irmãos é estádio de atletismo, caminho excelente de progresso, exercício perpétuo e meditação dos mandamentos do Senhor. Tem por escopo a glória de Deus, segundo o mandamento de Nosso Senhor Jesus Cristo, que disse: Assim, brilhe vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem vosso Pai que está nos céus (Mt 5,16). Esta vida comum conserva o caráter da vida dos santos, mencionada nos Atos, onde está escrito: Todos os fiéis viviam unidos e tinham tudo em comum (At 2,44). E ainda: A multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma. Ninguém dizia que eram suas as coisas que possuía; mas tudo entre eles era comum (At 4,32).