Basílio Grande Ascética

Basílio o Grande — Ascética
Excertos da tradução da Ir. Hildegardis Pasch e da Ir. Helena Nagem Assad
PRÓLOGO
1. Uma vez que, pela graça de Deus, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo, aqui nos encontramos reunidos, nós que nos propusemos um só e mesmo escopo de vida, e vós mostrais evidente desejo de aprender alguma coisa referente à salvação, sinto-me no dever de anunciar os juízos de Deus, lembrado dia e noite da palavra do Apóstolo: Por três anos não cessei, noite e dia, de admoestar, com, lágrimas, a cada um de vós (At 20,31). A oportunidade é excelente; o lugar, silencioso, livre de agitações vindas de fora. Façamos, pois, reciprocamente, um pedido. No tempo devido, distribuamos nós a nossos companheiros a sua medida de trigo; e vós, acolhendo a palavra, qual terra boa, produzais, conforme está escrito (Mt 13,23), frutos perfeitos e múltiplos de justiça.

Exorto-vos pelo amor de Nosso Senhor Jesus Cristo, que se deu a si mesmo pelos nossos pecados (Tt 2,14). Sejamos, enfim, solícitos por nossas almas. Lastimemos a vaidade de nossa vida passada. Lutemos em vista dos bens vindouros, para a glória de Deus e de seu Cristo e do santo e adorável Espírito. Não fiquemos na indiferença e no relaxamento. Não desperdicemos o tempo em permanente desídia, diferindo sempre o início das boas obras, para não acontecer que, apanhados desprevenidos de boas obras por quem há de pedir contas de nossas almas, sejamos excluídos das alegrias das núpcias, e então inutilmente chorarmos e lamentarmos o tempo mal empregado, quando isto de nada servirá aos que se arrependerem.

Nós estamos agora no tempo favorável, agora é o dia da salvação (2Cor 6,2). Agora é o tempo da penitência, então será o da recompensa; agora, o do labor, então, o da remuneração; agora, o da paciência, então, o da consolação. Deus é agora o auxílio dos que se convertem do mau caminho; então, será o examinador temível, e que se não deixa enganar, das ações, das palavras e dos sentimentos humanos. Usufruímos, agora, de sua longanimidade, mas conheceremos, então, seu justo juízo, ao ressuscitarmos uns para o suplício eterno, outros para a vida eterna e recebermos, cada um de nós, segundo as nossas próprias obras.

Até quando adiaremos a obediência a Cristo, que nos chama a seu reino celeste? Não despertaremos de nossa embriaguez? Não nos converteremos de uma vida vulgar ao rigor do Evangelho? Como não representar, diante de nossos olhos, o dia do Senhor, terrível e manifesto, no qual obterão o reino dos céus os que, por meio de suas ações, tiveram acesso à direita do Senhor, enquanto os que, pela carência de boas obras, tiverem sido rejeitados à esquerda, serão envolvidos pela geena do fogo e pelas trevas eternas? Ali haverá choro e ranger de dentes (Mt 25,30).

2. Dizemos que desejamos o reino dos céus; contudo, não cuidamos dos meios de obtê-lo. Nenhum esforço empregamos para cumprir o mandamento do Senhor e supomos, na vaidade de nosso espírito, que alcançaremos honras iguais às daqueles que resistirem ao pecado até à morte.

Alguém, acaso, ficaria em casa sentado ou dormindo no tempo da sementeira e por ocasião da messe encheria de feixes a dobra do manto? Quem colherá uvas de uma vinha que não plantou, nem cultivou? Os frutos correspondem ao labor. As honras e as coroas são para os vencedores. Quem haveria de coroar aquele que nem ao menos se cingiu perante o adversário? Não se trata apenas de vencer, mas também de lutar segundo as regras, conforme diz o Apóstolo (2Tm 2,5), isto é, de não negligenciar nem a menor das prescrições, mas de tudo realizar de acordo com os preceitos. Feliz daquele servo que o Senhor achar procedendo assim, não ao acaso, quando vier (Lc 12,43). E ainda: Se ofereceres bem, mas não dividires bem, pecas (Gn 4,7, seg. LXX).

Nós, no entanto, imaginamos cumprir um mandamento isoladamente e não contamos com a ira por causa das transgressões, mas esperamos recompensa pelo único mandamento que praticamos! Entretanto, diria que não o cumprimos. Todos os mandamentos de tal modo se compenetram, segundo o verdadeiro entendimento da Palavra que, menosprezado um, transgridem-se necessariamente os demais. Quem. sonega um ou dois dos dez talentos sob sua guarda e devolve os restantes, não será considerado honesto, por causa da devolução da soma maior, e sim convencido de ser injusto e avaro por ter furtado a quantia menor. E por que falar de espoliação? Pois, será condenado até aquele a quem fora confiado um talento e o devolva todo e na íntegra, como recebera, mas sem rendimentos. Quem honrar seu pai por dez anos e depois lhe infligir um só ferimento, não será honrado como benemérito e sim condenado como parricida.

Ide, pois, diz o Senhor, ensinai a todas as nações. Ensinai a observar não apenas algumas coisas e a negligenciar outras, mas a observar tudo o que vos mandei (Mt 28,19.20). E o Apóstolo, em consequência, escreve: A ninguém damos qualquer motivo de escândalo, para que o nosso ministério não seja criticado. Mas em todas as coisas nos apresentamos como ministros de Deus (2Cor 6,3.4).

Se nem tudo fosse necessário ao escopo da salvação, não haveriam sido escritos todos os mandamentos, nem fora determinado se observassem obrigatoriamente todos eles. De que me serve o exato cumprimento do dever se, por ter chamado louco a um irmão, for réu da geena? Que vantagem alcança quem se liberta de muitos, se um só o sujeita à escravidão? Pois todo o homem que se entrega ao pecado, é seu escravo (Jo 8,34). De que adianta a alguém a imunidade de muitas doenças, se uma só já lhe consome o corpo?

3. Então, dirá alguém, será inútil à multidão de cristãos, que não guarda a totalidade dos mandamentos, a observância apenas de alguns? Seria oportuno relembrar o que, por um só motivo, foi dito a São Pedro, após tantas ações perfeitas e depois de ter sido chamado bem-aventurado: Se eu não te lavar, não terás parte comigo (Jo 13,8). É ocioso asseverar que não denotava com isso negligência ou desprezo, mas reafirmava, ao invés, honra e reverência.

E se alguém disser estar escrito: Todo o que invocar o nome do Senhor será salvo (J1 2,32), bastando, portanto, a invocação do nome do Senhor para salvar quem o invoca, ouça o Apóstolo: Como, pois, invocarão aquele em quem não têm fé? (Rm 10,14). Se crês escuta o Senhor: Nem todo aquele que me diz: Senhor, Senhor, entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus (Mt 7,21). Certamente, quem faz a vontade do Senhor, não, porém, como Deus o quer, nem por amor a Deus, não lhe aproveita o zelo pelas obras, conforme a palavra de Nosso Senhor Jesus Cristo: Fazem para serem vistos pelos homens. Em verdade, eu vos digo: já receberam sua recompensa (Mt 6,5). Por esta razão, o Apóstolo Paulo soube dizer: Ainda que distribuísse todos os meus bens, e entregasse o meu corpo para ser queimado, se não tiver caridade, isto nada me aproveita (ICor 13,3).

Em resumo, vejo três atitudes diferentes a nos impelirem de modo quase inevitável à obediência. Ou desviamo-nos do mal por temor do castigo: é a atitude servil. Ou cumprimos os preceitos, ambicionando a recompensa, o proveito próprio, e assemelhamo-nos aos mercenários. Ou, por causa do bem em si e por amor a nosso legislador, alegramo-nos em servir a um Deus tão glorioso e tão bom: nossa atitude, então, é a filial. Nem mesmo quem cumpre os mandamentos só por temor, receando sempre a pena da negligência, ousa praticar apenas alguns preceitos e descuidar dos outros; mas prevê igualmente um castigo temível para qualquer desobediência. Por isto, declara-se ser feliz quem vive em temor reverenciai contínuo (Pr 28,14); ficará firme na verdade, podendo dizer: Ponho sempre o Senhor diante dos olhos; pois que ele está à minha direita, não vacilarei (SI 15,8). Nada quer omitir do dever. E feliz o homem que teme o Senhor. Por que motivo? Porque nos seus mandamentos põe o seu prazer (SI 111,1). Não é próprio de quem teme transgredir as prescrições, agir com negligência. Nem mesmo o mercenário quer violar alguns preceitos. Como haveria de obter salário pelo cultivo da vinha, se não fizer tudo o que combinou? Se faltar uma só coisa indispensável, torna-la-á inútil para o seu proprietário. Quem ainda oferecerá recompensa àquele que agiu mal, em troca do prejuízo causado? A terceira atitude é a do serviço na caridade. Qual o filho que, movido pelo desejo de agradar ao pai, procura contrariá-lo nas coisas pequenas e alegrá-lo nas grandes? Fá-lo-á tanto mais, se estiver lembrado da palavra do Apóstolo: Não entristeçais o Espírito Santo de Deus, com o qual estais selados (Ef 4,30).

4. De que lado querem ser colocados os transgressores da maior parte dos mandamentos? Não assistem a Deus como Pai, não lhe dão crédito quando faz promessas tão grandiosas, não o servem como a seu Senhor. Ora, se eu sou pai, diz ele, onde estão as honras que me são devidas? E se eu sou Senhor, onde está o temor que se me deve? (Ml 1,6). Porque o homem que teme o Senhor, nos seus mandamentos põe o seu prazer (SI 111,1). Foi dito: Desonrou a Deus pela transgressão da Lei (Rm 2,23).

Se preferimos a vida de prazeres à vida segundo os mandamentos, como podemos esperar a vida bem-aventurada, a cidadania igual à dos santos, as alegrias na companhia dos anjos, em presença de Cristo? Seria pueril imaginar tal coisa.

Serei associado a , se não sei suportar a menor tribulação com ações de graças? A Davi, se não me porto com longanimidade para com o adversário? A Daniel, se não procuro a Deus em contínua abstinência e laboriosa prece? A cada um dos santos, se não sigo a suas pegadas? Haverá em algum certame árbitro tão sem critério que sentencie merecerem coroas idênticas o vencedor e quem não combateu? Haverá general que distribua aos vitoriosos e aos que não comparecerem no combate partes iguais dos despojos?

Deus é bom. É justo também. Justo, remunera de acordo com os merecimentos, conforme está escrito: Sede bom, Senhor, para os que são bons e para os homens de reto coração. Mas aqueles que se desviam por caminhos tortuosos, que o Senhor os expulse com os malfeitores (SI 124,4.5). É misericordioso, mas é também juiz. O Senhor ama a misericórdia e a justiça (SI 32,5). Diz-se por isso: Cantarei a bondade e a justiça, a vós, Senhor (SI 100,1). Sabemos quais os que obterão misericórdia: Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia (Mt 5,7). Vês com que discernimento usa de misericórdia? É misericordioso sem prescindir do julgamento; julga sem prescindir da misericórdia. O Senhor é misericordioso e justo (SI 114,5). Não encaremos só um dos aspectos. Seu amor ao homem não nos sirva de pretexto para desleixo. Para que não fosse desprezada a sua bondade é que houve trovões e relâmpagos. Paz ele nascer o sol (Mt 5,45), mas também castiga com a cegueira (2Rs 6,18). Dá a chuva (Zc 10,1), mas também faz chover fogo (Gn 19,24). As primeiras coisas indicam a sua bondade, as segundas a sua severidade. Amemo-lo por causa das primeiras, temamo-lo em consequência das segundas, a fim de que não nos seja dito, também a nós: Ou desprezas as riquezas da sua bondade, tolerância e longanimidade, desconhecendo que a bondade te convida ao arrependimento? Mas, pela tua dureza e coração impenitente, ajuntas para ti reservas de ira para o dia da cólera (Rm 2,4.5).

Não pode salvar-se quem não pratica obras conforme o mandamento de Deus, e é perigosa a omissão de algumas das prescrições, porque seria péssima arrogância constituir-se em juiz do legislador, aceitando algumas leis e rejeitando outras.

Nós, portanto, lutadores na arena da piedade — cuja vida é silenciosa e afastada dos negócios, o que contribui muito para a observância dos preceitos evangélicos — empreguemos conjuntos esforços e conselhos mútuos, para que nenhuma prescrição nos escape. Se o homem de Deus deve ser perfeito (como está escrito e as palavras acima demonstram), forçoso é se aperfeiçoe em cada mandamento até à estatura da maturidade de Cristo (Ef 4,13). Pois, também de acordo com a lei divina, o animal mutilado, puro embora, não é vítima aceitável a Deus. Assim, se reconhecermos que nos falta alguma coisa, proponhamos a questão a exame em comum. Uma pesquisa laboriosa de muitos fará descobrir com maior facilidade a solução oculta, porque Deus mesmo, segundo a promessa de Nosso Senhor Jesus Cristo (Jo 14,26), dar-nos-á achar o que buscamos, pelo ensinamento e pelas inspirações do Espírito Santo.

Do mesmo modo que é uma obrigação que se me impõe e ai de mim se eu não anunciar o Evangelho (ICor 9,16), assim ameaça-vos perigo semelhante, se procurardes com negligência ou vos portardes com frouxidão e indolência na observância e execução dos ensinamentos transmitidos. Por isso diz o Senhor: A palavra que anunciei julgá-lo-á no último dia (Jo 12,48). E o servo que, ignorando a vontade de seu Senhor, fizer coisas repreensíveis, será açoitado com poucos golpes; mas o que, apesar de conhecer (a vontade de seu Senhor), nada preparou e lhe desobedeceu, será açoitado com numerosos golpes (Lc 12,47-48).

Rezemos, pois, a fim de que eu vos dispense a palavra de modo irrepreensível e o ensino vos seja frutuoso. Cientes de que as palavras das Escrituras divinas defrontar-se-vos-ão no tribunal de Cristo — Vou te repreender e te lançar em rosto os teus pecados (SI 49,21) — atendamos, vigilantes, ao que foi dito e apliquemo-nos zelosamente à prática das divinas exortações, porque não sabemos o dia e a hora em que Nosso Senhor há de vir (Mt 24,42).

Grande Ascética
1. Ordem e sequência dos mandamentos do Senhor

2. A caridade para com Deus. Há, por natureza, nos homens inclinação e força para a prática dos mandamentos do Senhor

3. A caridade para com o próximo. Seria lógico dissertar agora sobre o segundo mandamento, em ordem e valor

4. O temor de Deus

5. Como evitar a divagação

6. Necessidade da vida retirada

7. A conveniência de se conviver com os que unanimemente tencionam agradar a Deus. É tão difícil quão perigoso viver isolado

8. A renúncia

9. Se convém àquele que se une aos que se dedicam ao Senhor confiar seus bens de maneira indiscriminada a parentes ímprobos

10. Se devem ser recebidos todos quantos se apresentam. Ou quais? Devem ser logo admitidos? Ou só depois de experimentados? E como?

11. Os escravos

12. Como devem ser recebidos os casados

13. Utilidade da prática do silêncio para os recém-vindos

14. Dos que se dedicaram a Deus e depois tentam anular sua profissão

15. Qual a idade conveniente para a entrega a Deus e quando se torna irrevogável a profissão

16. Se é necessária a temperança para os que desejam viver piamente

17. Importa também conter o riso

18. Se convém provar de tudo que põem diante de nós

19. Qual a medida da continência

20. Como há de ser a refeição dos hóspedes

21. Como nos sentamos ou nos reclinamos por ocasião do jantar ou da ceia

22. Qual a veste conveniente para o cristão

23. O cinto

24. Tudo isso nos foi bem transmitido. Conviria agora aprendermos como conviver

25. Terrível o juízo do superior que não repreender os que pecam

26. De que tudo, até mesmo os segredos do coração, deve ser manifestado ao superior

27. O próprio superior, se errar, seja advertido pelos irmãos mais antigos da comunidade

28. Como se comportarão todos em relação a um desobediente

29. Orgulho ou murmuração no trabalho

30. Qual deve ser a atitude dos superiores ao cuidarem dos irmãos

31. Deve ser recebido o serviço prestado pelo superior

32. Relações com os parentes

33. Relações com as irmãs

34. Como devem ser os que dispensam o necessário à comunidade

35. Se convém estabelecer numa aldeia mais de uma comunidade de irmãos

36. Os que se retiram da comunidade dos irmãos

37. Se é lícito, sob pretexto de oração e de salmodia, descuidar-se do trabalho. Qual o tempo apropriado para as orações? Em primeiro lugar é dever trabalhar?

38. A explicação nos mostrou suficientemente que a oração não pode ser omitida e que o trabalho é indispensável. Seria lógico aprendermos agora quais os ofícios adequados a nossa profissão

39. Como vender os produtos e como viajar

40. Das transações feitas com assembleias religiosas

41. Autoridade e obediência

42. Qual o fim e a atitude dos que trabalham

43. Foi suficientemente explicado o modo de trabalhar. Se algo faltar, aprenderemos pela praxe a encontrar a boa solução. Pedimos agora nos seja exposto como devem ser os superiores da comunidade dos irmãos e de que maneira hão de governar os discípulos

44. A quem se deve permitir as viagens e como será interrogado, à volta

45. Haja, quando o superior estiver ausente ou ocupado, outra pessoa para cuidar dos irmãos

46. Não se ocultem os pecados de um irmão ou os seus próprios

47. Os que não aceitam o que o superior estabeleceu

48. Não se deve investigar curiosamente o governo do superior, mas antes estar atento a seu próprio dever

49. Controvérsias entre os irmãos

50. De que modo deve o superior corrigir

51. A maneira de corrigir as faltas de quem pecou

52. Com que disposição serão recebidos os castigos

53. Como os mestres dos ofícios hão de corrigir as faltas dos meninos

54. Conveniência de terem os superiores das comunidades diálogos a respeito dos respectivos interesses

55. Se o uso da medicina convém às finalidades da piedade