Basilio Ascetica 11

Basílio Magno — Pequena Ascética
Tradução de Antonio Carneiro, que dá uma explicação para a divergência na numeração das questões (vide Basílio Pequena Ascética)
Questão 11
Pergunta: Qual é a veste digna e decorosa para o cristão ?
Resposta:
1 Dado que o discurso precedente ensinou que é necessário a humildade, de modo que quem quer viver religiosa e piedosamente procure sempre o que é simples e de menor preço, quer dizer o que se pode adquirir com pouco gasto, 2 penso que isto se deve observar a respeito das necessidades do corpo, de maneira que este não nos cause maiores preocupações. Penso que também tem que aplicar isto em relação às vestes. 3 Se devemos esforçarmos para ser os menores e os últimos de todos. 4 Porque os que amam a glória procuram obtê-la pelo esplendor de suas vestes, a ambicionar ser admirados ao mostrar-se vestidos com roupas preciosas e magníficas, 5 segue-se daqui que quem pretender agradar por sua condição de menor e último, quer dizer, por sua grande humildade, deve escolher aquilo que o faça parecer como o último e o menor de todos, 6 do mesmo modo que, pelo contrário, aquele outro procura parecer como ilustre e nobre pelas (vestes) luxuosas e preciosas (que porta).

7 Se para os Coríntios (1Cor 11,22) foi motivo de reprovação aqueles que em cena pública envergonhassem com sua abundância aos que nada tinham, 8 igualmente no modo de vestir simples e comum para todos — correspondente ao uso e ao costume gerais — , um hábito se diferencia do outro ou parece mais precioso, pela mesma confrontação envergonhamos aos indigentes. 9 Sobre os ditos usos o Apóstolo estabeleceu uma regra breve e satisfatória, dizendo: “Tendo alimento e veste , estamos contente com isso” (1Tm 6,8), 10 mostrando que necessitamos o hábito tão somente para cobrir-nos e não para jactar-nos com a variedade, o enfeite e a beleza das vestes1. 11 Estas coisas são aquisições posteriores da vida humana, conseguidas pelo engenho artificial do luxo.2 12 Aquela primitiva utilidade da veste se indica quando se diz que “Deus fez túnicas de peles para os primeiros homens” (Gn 3,21), já que para cobrir as partes indecorosas tais túnicas eram suficientes.

13 Certamente que para nós a finalidade da veste é também a de aquecer-nos e proteger-nos, sendo necessário que esta sirva para ambos usos, 14 tanto para cobrir a nudez quanto para se defender do rigor do frio e das inclemências do clima3. 15 Mas como algumas veste são melhores e outras piores, segue-se que devemos escolher as que permitem um uso mais amplo, mas de tal maneira que em nada se veja quebrada a regra da pobreza voluntária, 16 quer dizer, que não tenhamos vestes especiais para sair e outras para estar em casa, e tampouco outras para um tempo diferente e outras para noite; 17 mas sim que a veste deve ser única e apropriada para toda ocasião, de maneira que de dia a veste seja decorosa, e de noite satisfaça as necessidades. 18 daqui se depreende que nosso hábito deve ser comum e igual e de uma mesma forma para todos, e que basta vê-lo se reconheça o cristão, 19 porque as coisas que tendem para um só fim e para um propósito único devem ser semelhantes, mais ainda, iguais para todos4.

20 Também é útil que cada um seja reconhecido pelo mesmo teor de sua veste e hábito, ficando patente sua profissão pela vida que vive de acordo com Deus, 21 de modo que saiba que inclusive seus atos devem ter a mesma natureza, de modo que até aqueles que nos veem (revestidos) de nosso hábito, nos vejam coerentes nos atos. 22 Não é igualmente vergonhoso que um qualquer faça algo desonesto como o que realize alguém que, com seu mesmo hábito, professe levar uma vida sóbria. 23 Se alguém vê na rua que um homem golpeia a outro, ou o castiga em público, ou grita grosseiramente, ou leva uma vida vergonhosa nas tabernas ou em outros lugares, 24 não olhará tal homem nem lhe prestará atenção alguma, sabendo que age de acordo com seu gênero de vida. 25 Mas se trata-se de um que professa uma vida religiosa e se o vê fazer algo minimamente inconveniente, todos o observam e reprovam-lhe, e o consideram um opróbrio para a religião. 26 Portanto, este hábito mais apropriado aos religiosos é como um pedagogo para os mais fracos, de modo que o protege contra as ações desonestas e pouco decentes, ainda que contra sua vontade5.

27 Finalmente o Apóstolo indica qual deve ser o decoro do bispo, e isto se refere principalmente ao hábito, e acerca das mulheres, diz que devem ter um traje decoroso6; 28 chama-se decorosa a veste do cristão que se reconhece como adaptado a seu propósito e sua profissão. 29 Assim como o soldado tem algo característico em seu modo de vestir, o senador tem algo diferente e por isso se distingue o que é senador daquele que é soldado, 30 igualmente o cristão deve ter algo característico em seu modo de vestir. 31 O mesmo será observado no calçado, de modo que se escolha o que é mais simples, mais fácil de obter, apto ao nosso propósito e suficiente para nossas necessidades.

32 A necessidade do uso do cinturão a demonstram também os santos que nos precederam: 33 diz-se que “João cingia sua cintura com um cinturão de pele” (Mt 3,4 e Mc 1,6), e (assim fez) Elias, já antes dele, pois se designa ao cinturão como hábito próprio seu ao dizer: “Era um homem hirsuto e com um cinturão de pele na cintura (2R 1,8)” . 34 E também Pedro mostra que usava cinturão, segundo coligimos pelas palavras do anjo quando lhe disse: “Cinge-te e calça-te tuas sandálias” (At 12,8). 35 E mostra-se que também Paulo usava cinturão, pela profecia de Agabo, que disse: “Assim atarão em Jerusalém ao homem a quem pertence este cinturão” (At 21,11); escutou do Senhor:“Cinge-te como um herói a cintura” ( 38,3; 40,2) 7 . 36 Porque o uso do cinturão é considerado como signo de certa coragem e de um ânimo preparado para a ação; e vemos que os discípulos costumavam usar cinturão, pois se lhes proíbe levar dinheiro em seus cinturões.

37 Em verdade considera-se necessário que quem deve empregar as mãos em algum trabalho se ache cingido e preparado para todas as coisas sem nenhum impedimento, para cumprir qualquer ação boa, 38 para o qual necessita um cinturão, de modo que a túnica esteja presa ao corpo, e assim ao mesmo tempo que abriga mais, ao estar totalmente cingida, não lhe impedirá a liberdade de movimentos em tudo que se dispuser realizar. 39 Em quanto ao número das vestes nada devemos dizer, porque já está prescrito com manifesta precisão quando disse: 40 “O que tem duas túnicas, dê uma ao que não tem nenhuma (Lc 3,11; Mt 10, 9-10; Mc 6,9); do qual se deduz sem sombra de dúvida que é ilícito ter várias.

41 E aos que não lhes estão permitido ter duas túnicas, como se lhes poderão dar preceitos acerca da diversidade das vestes ?


  1. Ver J.Geibomont, “Histoire du texte des Ascétiques de S.Basile” , Louvain, 1953, “Bibliothèque du Muséon” , 3p.251, onde se apresenta que Rufino “duplica” , em relação ao siríaco, ao traduzir: “com a variedade, o enfeite ou a beleza das vestes” ( o destacado é a duplicação de Rufino). 

  2. O texto latino não é de fácil tradução; para sua correta compreensão deve-se recorrer ao grego, como o fez Zelzer no aparato crítico, das GR 22: “Estas coisas, com efeito, foram introduzidas depois da vida humana, por meio de artifícios inúteis e vãos” (col.977C, até o final). Rufino, aliás, não usa a palavra “luxúria” mas sim aqui e na Questão 9,9. Nos dois casos, segundo o contexto, não deve ser entendido dito vocábulo no sentido “sensual” , mas sim no de luxo. Assim, em 9,9 traduzimos “intemperança” , dado o contexto. Agora, no presente caso, a tratar-se de vestes, “luxo” nos parece uma versão apropriada. 

  3. “Das inclemências do clima” é a tradução de “omne quod extrinsecus laedit” . Basílio se refere, pois, aos danos ocasionados pelo clima. Ver GR 22, col.980 A. 

  4. O texto latino diz: “similia immo eadem esse omnibus debent”, uma tradução menos literal seria: “se apresentem como semelhantes diante todos”. 

  5. “Ainda que contra sua vontade” é a tradução de “ut etiam invitos” (que também poderia ser traduzido como: “ainda para os que não querem” ). 

  6. Ver 1Tm 3,2; 2,9.“kosmion e kosmein” (de “kosmios” : decente) somente nestas duas passagens aparecem no NT. Rufino as traduziu por “ordinatus” . A Vulgata prefere “ornatus” (para 1Tm 3,2 alguns manuscritos da Vulgata trazem “pudicum” ).