Biblioteca de Nag Hammadi
O Authentikos Logos (VI,3)
Tradução de J.-E. Ménard BNH (KDNH)
O que quer dizer esse título, que o tratado se dá a si mesmo na última linha? Sem dúvida, ele abarca ao mesmo tempo a noção de discurso de autoridade no grupo e a noção do Logos que salva. Pelo conteúdo, é tratado da alma que expõe sua origem, sua situação atual e seu destino último. Não há dúvida sobre o contorno gnóstico do texto: a alma, de origem divina, caiu sob o domínio da matéria e só pode ser salva pela gnose revelada, nutrindo-se do Logos e colocando-ó sob os olhos como bálsamo:
(p. 22,15-34): Embora ela (a alma) seja companheira dos membros ao mesmo tempo que do corpo e do espírito, esteja aqui em baixo ou no Pleroma, ela não está separada deles (= os mundos). Mas eles a veem e ela os contempla no Logos invisível. Em segredo, seu noivo trouxe-o para ela. Deu-lho na boca, para que ela o coma como se fosse alimento. E colocou o Logos sobre seus olhos como bálsamo para que, através de seu espírito, ela veja e reconheça os que são do seu tipo e tome consciência de sua raiz1 para que ela seja reunida ao ramo de onde ela emanou inicialmente, para que ela receba o que é seu e deixe a matéria.
(…)
(p. 24,14-34): Mas essa (alma) feita assim se abandona à embriaguez e ao vício. Com efeito, o vício é a embriaguez. Ela também não pensa em seus irmãos e em seu pai, porque os prazeres e a doçura a enganam. Quando renunciou ao nascimento, ela caiu na animalidade. Pois um insensato está em estado animal. Ele não sabe o que é conveniente dizer e o que não é conveniente dizer. Mas o filho refletiu, ele que é herdeiro de seu pai na alegria, e seu pai rejubila-se nele porque ele é glorificado graças a ele para cada um. E ele também procura saber como fazer frutificar os bens que recebeu.
Uma série de metáforas, que evocam imagens bíblicas, traduz a prova por que passa a alma. Dentre as metáforas da prostituta, do grão, do atleta, do peixe ou da mulher casada, fiquemos com a metáfora mais desenvolvida, a do pescador:
É também por isso que nós não dormimos, nem esquecemos (as) redes estendidas em segredo, armando seus embustes para nos pegar. Pois se nós nos deixarmos colher em uma só rede, ela nos engolirá em sua abertura, enquanto a água nos submergirá, batendo-nos no rosto. E nós seremos puxados para o fundo da rede e não poderemos sair, porque as águas nos submergirão, derramando-se do alto para baixo e mergulhando nossa razão no lodo sujo. E nós não poderemos escapar. Pois aqueles que nos pegarão e nos engolirão com alegria são , devoradores de homens2. É desse modo que o pescador, lançando seu anzol à água, lança à água vários tipos de iscas. Pois cada peixe tem isca própria para ele: quando a sente, apressa-se, guiado pelo cheiro, e, quando a engole, o anzol oculto na isca o aferra e o puxa à força para fora das águas profundas. Ora, não seria possível ao homem agarrar esse peixe nas águas profundas se não fosse pelo engodo realizado pelo pescador. Sob o artifício da isca, ele atraiu o peixe para o anzol. E o mesmo ocorre conosco neste mundo, como se fôssemos peixes. O adversário nos vigia, emboscando-se como o pescador que quer nos pegar e que se rejubila quando nos devora. Pois ele coloca sob nossos olhos diversas iscas, que são as coisas deste mundo. Ele quer que desejemos uma delas e que a provemos um pouco, para depois nos capturar com seu veneno oculto e nos fazer sair da liberdade para nos arrastar para a escravidão. Pois se ele nos pega por meio de uma só isca, com efeito, fatalmente ele nos fará desejar também o resto. No fim das contas, esse tipo de coisa torna-se isca mortal. E eis as iscas graças às quais o diabo nos arma embustes. Primeiro, ele lança desgosto em teu coração, até que te atormentes por pequena coisa desta vida; depois, ele nos aferra com seus venenos. Em seguida, vêm o desejo de roupa de que te orgulhas e o desejo de dinheiro, a jactância, o orgulho, o ciúme invejoso de outro ciúme, o amor do corpo, a depravação3. De todos esses vícios, o maior é a ignorância, juntamente com a fraqueza. Ora, todas as armadilhas desse tipo são cuidadosamente armadas pelo adversário, que as apresenta ao corpo porque deseja que o instinto da alma o oriente para uma delas, dominando-o. Como anzol, ele a puxa à força para a ignorância e abusa dela até que ela engravide do mal, gere frutos da matéria e viva na mácula, perseguindo imensidade de desejos e cobiças, através do que a doçura da carne a atrai para a ignorância (p. 29,3-31,24).
Em suma, este tratado apresenta o mito gnóstico da queda aplicando-o à alma, em alegoria que pôde ser exposta no quadro de homilia. Não há nada que nos leve a suspeitar de origem cristã do escrito. Até as metáforas empregadas não são especificamente bíblicas: elas pertencem ao mundo sincretista da época helenística.