Biblioteca de Nag Hammadi
Os Atos de Pedro e dos Doze Apóstolos (VI,1)
Litargoel domina este texto. E Litargoel é Cristo, a pérola, “o deus da pedra chamejante”, que talvez evoque Ap 2,17. Disfarçado sucessivamente de comerciante de pérolas e depois de médico, Litargoel convida Pedro e os apóstolos a irem em sua cidade adquirir pérolas. Mas a viagem é difícil, pois para tanto precisam renunciar aos alimentos e aos apegos materiais:
Pedro respondeu, dizendo o que ouviu sobre as (penas) do caminho: “Certos (homens) penam, a saber, em seu ministério”. E disse ao homem que oferecia essa pérola: “Eu quero conhecer teu nome e as penas do caminho (que leva) à tua cidade, pois nós somos estrangeiros e servos de Deus. Nós devemos propagar a palavra de Deus com alegria em cada cidade”. Ele respondeu: “Já que pedes meu nome, Litargoel é meu nome, que se traduz como ‘pedra de gazela rápida’1. Como também perguntaste sobre o caminho da cidade, mostrar-to-ei. Não é qualquer que pode tomar esse caminho, a não ser que renuncie a tudo o que possui e jejue todo dia, de um lugar de repouso ao outro. Com efeito, são numerosos os ladrões e as feras selvagens2 nesse caminho. Quem levar pão consigo no caminho, os cães negros matá-lo-ão por causa do pão. Quem levar sobre si um precioso manto do mundo3 os ladrões matá-lo-ão por causa do manto. Quem (tiver) água (consigo, os) lobos (o irão o matar por) causa (da água), pois estão sedentos (dela). (Quem) se preocupar com a (carne) e (com os) legumes, os leões matarão por causa da carne. E, se ele escapa dos leões, os touros o devorarão por causa dos legumes” (p. 5,3-6,8).
Ameaçados pelos ladrões, Pedro e os seus reveem Litargoel em vestes de médico, seguido de um discípulo com o estojo medicinal. A cena do reconhecimento permite-nos valorizar o papel de Pedro e identificar Litargoel a Cristo:
Eis que Litargoel saiu: ele se havia disfarçado para nós, estando sob o aspecto de médico. Tinha medicamento de nardo sob o braço e um jovem aluno o seguia, levando uma caixa cheia de medicamentos. Nós não o reconhecemos. Pedro tomou a palavra e disse-lhe: “Por favor, presta-nos hospitalidade, pois somos estrangeiros, e faz com que sejamos recebidos na casa de Litargoel antes que caia a noite”. Ele disse: “De bom grado a mostrarei a vós, mas surpreende-me de que conheceis esse homem de bem. Com efeito, ele não tem o hábito de se manifestar a qualquer, já que ele próprio é filho de grande rei. Repousai um pouco, apenas o tempo de procurar esse homem e voltar”. Ele se afasta e volta rapidamente. E diz a Pedro: “Pedro!” Pedro ficou atônito: como sabia ele que seu nome era Pedro? Pedro respondeu ao Salvador: “De onde me conheces, para que me tenhas chamado por meu nome?” Litargoel respondeu: “Quero perguntar-te quem te deu o nome de Pedro”. Ele lhe disse: “Jesus Cristo, o Filho de Deus vivo: foi ele quem me deu este nome” (Cf. Mt 16, 16-18). Litargoel retomou a palavra, dizendo: “Sou eu. Reconhece-me, Pedro”. Tirou o manto que levava sobre ele, graças ao qual se havia disfarçado para nós, manifestando-nos (agora) verdadeiramente quem era ele. Nós nos lançamos por terra e o adoramos, nós, os onze discípulos. Ele estendeu a mão, levantou-nos e nós falamos humildemente com ele. Nossas cabeças estavam modestamente inclinadas quando lhe dizíamos: “Faremos aquilo que quiseres, mas dá-nos força que nos permita fazer o que desejas a qualquer tempo”. E ele lhes dá o nardo medicinal e a caixa que estava na mão do discípulo (p. 8,13-9,32).
O Senhor enviou-os a serviço dos doentes e dos pobres, alertando-os quanto a frequentar os ricos:
Pedro tomou a palavra e disse-lhe: “Senhor, foste tu que nos ensinaste a renunciar ao mundo e a todas as coisas que lhe pertencem. Nós as abandonamos por tua causa. Preocupa-mo-nos unicamente com o alimento para um dia. Onde poderemos encontrar o necessário que tu nos pedes para dá-lo aos pobres?” Respondendo, disse o Senhor: “Ó, Pedro, será conveniente que conheças (o sentido) da parábola que eu disse. Tu não sabes que meu nome, que tu ensinas, é superior a toda riqueza? E que a sabedoria de Deus é superior ao ouro, ao dinheiro, à pedra de grande valor?” E deu-lhes a caixa de medicamentos, dizendo-lhes: “Curai todos os doentes da cidade que creem em meu nome” (p. 10,14-11,1).
“Quanto aos ricos desta cidade, eles que não se julgaram dignos sequer de me interrogar, mas que se comprazem em sua riqueza e em seu desprezo pelos homens, portanto, não comais com as pessoas desse tipo em suas casas. E também não façais amizade com elas. Não vos deixeis influenciar por sua parcialidade, pois uma multidão tomou o partido dos ricos. São aqueles que cometem pecados nas assembleias e levam outros a fazê-lo. Mas julgai-os com equidade, para que vosso ministério seja honrado e eu também e para que meu nome seja honrado nas assembleias” (p. 11,26-12,13).
Assim, o leitor toma conhecimento de que a revelação do Senhor a Pedro e aos apóstolos é parábola construída sobre simbolismo conhecido do Novo Testamento, ou seja, o pobre, o rico, o doente, a pedra preciosa, a viagem, o Cristo curador. O texto visa essencialmente a clarificar a atitude apostólica dos ministros itinerantes do Evangelho, na perspectiva de Mt 10,5-15 e paralelos. Deve-se notar também a insistência no respeito ao pobre na assembleia cristã, o que lembra a reação de Paulo em 1Cor 11,17-22.
Este escrito remete a uma Igreja que procura situar-se diante do gnosticismo nascente. O vocabulário gnóstico já é perceptível em termos como mundo, médico, pérola e abstenção, mas os apotegmas dos Padres também parecem ter inspirado este vademécum apostólico.