Clemente de Alexandria — Protrético
(Excertos do Cap. 12; P.G. 8, 237-245 — tradução Cirilo Folch Gomes)
Fujamos do costume, como de um promontório difícil, como da ameaça de Caribdes ou das Sereias da fábula. Ele sufoca o homem, desvia-o da verdade, afasta-o da Vida, é uma rede, um abismo, um precipício, um mal devorador:
"Para longe dessa fumaça, para longe dessas vagas afasta teu navio".
Fujamos, marujos companheiros meus, fujamos das ondas que vomitam fogo: há nelas um ilha do mal onde se amontoam ossos e cadáveres; há nelas uma cortesã a cantar voluptuosamente, tentando seduzir-vos com sua música:
"Vem até cá, célebre Ulisses, orgulho dos helenos, para teu navio a fim de ouvires uma divina voz".
Ela te atrai, ó navegante! e recordando teu renome, procura, como prostituta, encantar aquele que é o orgulho de gregos. Deixa-a fazer sua presa entre os cadáveres! O Sopro celeste te auxilia! Passa ao largo da volúpia enganadora:
"Que uma mulher não vá, com seus atavios no corpo, fazer-te desfalecer; seu palavreado adulador nada quer mais que tua riqueza".
Impele o navio para além desse canto, que gera a morte. Basta desejares e vencerás a ameaça que paira sobre ti. Preso ao lenho, estarás livre da corrupção; o Logos de Deus será teu piloto, o Espírito Santo te fará aportar nos ancoradouros dos céus, lá onde tu contemplarás meu Deus, lá onde serás iniciado em seus santos mistérios e gozarás de bens celestes e arcanos, desses bens que nos são reservados e dos quais "o ouvido não ouviu, o desejo não ascendeu ao coração do homem".
"Parece-me estar vendo dois sóis e duas Tebas", diz um personagem arrebatado, em transe idolátrico e inebriado por simples quimera.
Quanto a mim, inspira-me pena tua embriaguez, e não posso senão exortar um espírito, assim transviado, a que peça a temperança da razão à doutrina da Salvação; pois o Senhor quer a conversão do pecador e não sua morte.
Vem, pois, ó insensato, e não mais com o tirso na mão, nem coroado de hera! Larga tua mitra, deixa tua pele de cabra e retoma a razão! Eu te mostrarei o Logos e os mistérios do Logos, valendo-me de tuas próprias imagens.
Eis a montanha querida de Deus e que não serve de teatro a fábulas trágicas como o Citeron, mas está consagrada aos dramas da Verdade. É uma montanha onde reside a temperança, suas florestas abrigam a pureza; nela não se vêem os transes das irmãs de Sêmele outrora batidas pelo raio, essas mênades, que recebem sua impura iniciação na participação das carnes; nela se acham as filhas de Deus, puras ovelhas que revelam os veneráveis mistérios do Logos, unidas em coro ressoante de sabedoria. Esse coro é o dos justos, o canto é o hino do Rei universal, as virgens são as que dedilham a lira, os anjos os que cantam — e à glória divina — os profetas os que falam... E o sem da música se difunde, o cortejo segue, os eleitos se mão até a Verdade! Vem, eu te dou o lenho para te apoiares nele, apressa-te, Tiresias, crê! Tu verás! O Cristo brilha mais que o sol, ele que faz os cegos verem! A noite fugirá de ti, o fogo te temerá, a morte partirá, verás os céus, ó ancião, tu que não vês a Tebas!
Ó mistérios verdadeiramente santos! Ó luz sem mistura! As tochas me iluminam para contemplar os céus e a Deus; santifico-me pela iniciação, o Senhor é meu Hierofante, que assinala com seu selo o iniciado, iluminando-o; que apresenta a seu Pai o crente, para que o guarde eternamente. Tais são as festas e os transes de meus mistérios. Se queres, recebe, também tu, a iniciação; tomaras parte no coro dos anjos ao redor de Deus, "o qual não teve nascimento nem terá morte", ele, o único Deus verdadeiro! E enquanto isso, o Logos divino se unirá a vossos hinos. Eis o eterno Jesus, o único nobre e sumo sacerdote do único Deus, seu Pai! Ele ora por todos os homens e os impele: "Escutai, tribos inumeráveis" li, eu antes, escutai vós todos que sois racionais entre os homens, bárbaros ou gregos! Eu convoco a toda a humana estirpe, que eu mesmo criei, por vontade do Pai. Vinde a mim, a fim de receberdes vosso lugar sob as ordens do único Deus e do único Logos de Deus! Não ultrapassareis os animais apenas por vossa razão: recebereis — apenas vós entre todos os mortais — o gozo da imortalidade! Porque desejo ver-vos também participar dessa graça, quero conceder-vos todo este benefício: a incorruptibilidade. E dou-vos o Logos, isto é, o conhecimento de Deus, dou-me a mim mesmo perfeitamente. É o que eu sou, é o que Deus quer, é a sinfonia, é a harmonia do Pai, é o Filho, é o Cristo, é o Logos divino, é o braço do Senhor, é o poder universal, é a vontade do Pai. Ó vós que sois imagens, mas que não sois todos semelhantes uns aos outros, eu quero reconduzir-vos ao Arquétipo, a fim de que me sejais semelhantes. Ungir-vos-ei com o unguento da fé, para livrar-vos da corrupção, e mostrar-vos-ei a imagem da Justiça, que vos conduzirá até a excelsitude de Deus. "Vinde a mim, todos vós fatigados e sobrecarregados e eu vos aliviarei: tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração, e achareis o repouso para vossas almas, pois meu jugo é suave e meu peso leve".
Apressemo-nos, corramos, porque somos retratos do Logos, retratos que a Deus amam e se lhe assemelham; apressemo-nos, corramos, tomemos seu jugo, persigamos a incorruptibilidade; amemos o Cristo, esse belo condutor da carruagem humana! Ele uniu o jumento ao velho corredor, e depois de ter assim atrelado o gênero humano, dirige a carruagem para a imortalidade, apressando-se em ir até seu Pai e realizar em plena luz o que já anunciou obscuramente: outrora entrava em Jerusalém, hoje ingressa no céu, oferecendo ao Pai o magnífico espetáculo de um filho vencedor para todo o sempre. Sejamos, pois, ambiciosos de todas as coisas belas, sejamos homens que amam a Deus e conquistemos os bens mais excelentes de todos: Deus e a Vida. O Logos nos dá assistência, tenhamos confiança nele! Jamais desejemos prata, ouro ou glória tanto quanto ao próprio Logos da Verdade! Não, Deus mesmo não se agradaria se preferíssemos o que tem menos valor, se preferíssemos a ignorância, a baixeza, a leviandade, a idolatria, a impiedade.
Sim, pensam certo os filósofos que consideram as ações dos insensatos como faltas, como atos de impiedade e que, tendo a ignorância como uma imagem da loucura, reconhecem simplesmente serem loucos os homens, em sua maior parte. Ora, a razão mostra não se dever hesitar a respeito do que é melhor, entre ser sensato ou louco. Portanto, devemos seguir a Deus com todas as forças, seguindo nisso o bom senso, devemos crer que tudo lhe pertence, como ocorre de fato. E, reconhecendo-nos a nós mesmos como sua mais preciosa propriedade, entreguemo-nos a Deus como a nosso Senhor, tenhamos isso como a grande obra de nossa vida.
E se os amigos têm tudo em comum, sendo o homem amigo de Deus (ele o é, realmente, sendo o Logos o Mediador dessa amizade), tudo então se torna propriedade do homem, ao mesmo tempo que pertencendo a Deus, tudo se torna comum aos dois amigos, a Deus e ao homem. Podemos, pois, dizer que só o cristão é verdadeiramente piedoso, rico, sensato, nobre, e imagem semelhante a Deus; podemos dizer e crer que, feito pelo Cristo Jesus "justo e santo com inteligência", ele se faz também, na mesma medida, semelhante a Deus.
Aliás, o profeta não esconde essa graça quando diz: "Declarei serdes todos vós deuses e filhos do Altíssimo". Com efeito, Deus nos atou e quer ser chamado nosso Pai: nosso, não dos que não creem. Eis então o que acontece a nós que seguimos ao Cristo: a nossos pensamentos correspondem nossas palavras, a nossas palavras nossos atos, a nosso ato nossa vida, de sorte que se torna boa toda a vida dos homens que conheceram a Cristo.
Penso ter dito o bastante. Talvez mesmo, por amor aos homens, tenha sido demasiado longo na exposição daquilo que recebi de Deus. Mas no fundo é porque desejava incitar-vos ao máximo dentre os bens: à salvação. Realmente, quando se trata da vida sem ocaso, as próprias palavras não querem deixar de ser hierofantes. Quanto a vós, resta-vos ainda uma coisa a fazer, e é escolher o que vos convém: o julgamento ou a graça. Quanto a mim, não me parece que se possa hesitar sobre a preferência: não vejo como seja possível comparar a vida com a perdição.