CLEMENTE DE ALEXANDRIA TIXERONT

Tixeront — A Handbook of Patrology (1923)

As origens e o contexto institucional da Escola de Alexandria

  • A fundação da Igreja de Alexandria, segundo a tradição historiográfica preservada por Eusebio, é atribuída ao apostolado de Marcos, sendo que a sucessão episcopal registrada por Julio Africano enumera dez bispos entre o fundador e Demetrio, cujo governo se estendeu até o ano duzentos e vinte e um, período em que a efervescência intelectual da região já se manifestava pela emergência de seitas dissidentes fundadas por Valentino, Carpocrates e Basilides, o que pressupõe uma atividade acadêmica intensificada já em meados do segundo século.
  • A Escola Catequética de Alexandria estabeleceu-se como uma instituição vinculada, em certa medida, à autoridade oficial, embora não fosse precisamente seu órgão formal, servindo como um espaço onde não apenas se explicavam os elementos fundamentais da fé aos catecúmenos, mas também se provia um ensino teológico substancial aos cristãos desejosos de instrução profunda, permitindo que as bases da crença católica fossem discutidas e defendidas inclusive perante interlocutores pagãos.
  • Embora a evidência documental mais explícita da escola surja apenas por volta do ano cento e oitenta, com a atuação de seus primeiros presidentes conhecidos, Panteno e Clemente, a existência dessa estrutura pedagógica deve remontar ao início do segundo século, refletindo a necessidade precoce de uma síntese entre a revelação cristã e a cultura intelectual helênica predominante no Egito.
  • Panteno, cognominado a Abelha Siciliana, exerceu a presidência da escola após sua atuação como missionário e foi o mentor direto de Clemente, dedicando-se à explicação oral e escrita dos tesouros contidos nas Escrituras Divinas, conquanto a afirmação de Eusebio sobre sua produção literária seja passível de dúvida, restando Clemente como o mais antigo escritor ortodoxo alexandrino de cuja autoria se tem plena certeza histórica.

Trajetória intelectual e biográfica de Clemente de Alexandria

  • Clemente nasceu provavelmente por volta de cento e cinquenta em Atenas, originário de uma linhagem pagã, e embora as circunstâncias exatas de sua conversão permaneçam desconhecidas, supõe-se que ele tenha sido inquietado, tal como Justino, pelo problema da natureza de Deus e atraído ao cristianismo pela nobreza e pureza intrínsecas às doutrinas evangélicas e aos seus preceitos morais.
  • A busca incessante por mestres cristãos levou Clemente a percorrer a Itália meridional, a Palestina e, finalmente, o Egito, onde encontrou Panteno em Alexandria por volta de cento e oitenta, fixando residência permanente naquela cidade, sendo ali ordenado presbítero e evoluindo de discípulo a associado e co-instrutor de seu mestre a partir de cento e noventa.
  • O fechamento da escola cristã em Alexandria, decorrente da perseguição movida por Septimio Severo em duzentos e dois ou duzentos e três, forçou Clemente a suspender suas lições e retirar-se para a Capadocia, onde residiu com seu antigo discípulo, o bispo Alexandre, vindo a falecer entre duzentos e onze e duzentos e dezesseis, conforme se depreende das correspondências de Alexandre para Antioquia e para Origenes.
  • Dotado de uma mente nobre e generosa, Clemente possuía uma erudição prodigiosa que superava até mesmo a de Origenes em termos de volume de citações de autores pagãos e cristãos, indicando que, embora parte de seu conhecimento proviesse de coleções de extratos e florilegios, ele detinha uma capacidade de leitura e memória vasta, aliada a um estilo fluente, florido e agradável.

Avaliação estilística, teológica e metodológica da obra clementina

  • A qualidade literária de Clemente é prejudicada por defeitos estruturais consideráveis, uma vez que ele abdica de analisar os temas de modo ordenado, expondo os assuntos de forma simultânea e assistemática, o que resulta em uma prolixidade cansativa agravada por excesso de digressões e uma ausência de plano deliberada, perceptível sobretudo na obra Stromata.
  • O estilo de escrita de Clemente, embora fácil, carece de acabamento gramatical e sintático conforme os padrões áticos clássicos, refletindo tanto a rapidez de sua composição quanto a decadência da pureza da língua grega ao final do segundo século, período em que o helenismo já demonstrava o afastamento de sua elegância estrutural originária.
  • O objetivo teológico central de Clemente consistia em determinar as relações harmônicas entre a fé e a razão, demonstrando como a filosofia atuou como uma propedêutica para preparar o mundo para a revelação cristã e como ela deve ser instrumentalizada para transformar os dados dessa revelação em uma teologia científica rigorosa.
  • A solução proposta por Clemente quanto à integração entre o pensamento filosófico e o dogma cristão é, em sua essência, exata, e as acusações de erros detalhados em sua obra nem sempre são provadas, sendo compreensível que, em um campo tão vasto e inovador, pudessem ocorrer variações na precisão terminológica absoluta.

A grande trilogia: Protreptikos, Paidagogos e Stromata

  • A produção principal de Clemente organiza-se em uma trilogia que visava constituir uma teologia completa, abrangendo as dimensões apologética, moral e dogmática, conforme o plano delineado no Paidagogos que previa uma progressão do convencimento inicial à instrução especulativa final.
  • O Protreptikos pros Ellenas, ou Exortação aos Gregos, constitui uma apologia em doze capítulos que expõe a falsidade das crenças pagãs e a impotência da filosofia em fornecer um ensinamento suficiente sobre Deus, concluindo que a verdade integral deve ser buscada nos profetas e em Jesus Cristo através de uma forma literária refinada.
  • O Paidagogos, dividido em três livros, inicia-se com uma disputa contra os falsos gnosticos que tratavam os católicos comuns como nepioi, ou crianças incapazes de perfeição, ao que Clemente argumenta que, pelo batismo, todos são filhos de Cristo e que tal iluminação contém o germe da perfeição, sendo a verdadeira gnosis apenas o desenvolvimento da fé sob a influência educativa do logos.
  • Nos livros subsequentes do Paidagogos, Clemente assume o papel de moralista prático, analisando as circunstâncias da vida cotidiana e oferecendo conselhos sobre virtude, higiene e polidez, distanciando-se de teorias morais abstratas em favor de ilustrações realistas destinadas a guiar a conduta cristã em um mundo secular.
  • Stromata, cujo título completo remete a tapeçarias de memórias gnosticas sobre a verdadeira filosofia, não apresenta uma exposição didática dogmática conforme o esperado de um tratado intitulado O didaskalos, mas funciona como uma coleção de miscelâneas e esboços que buscam retratar a perfeição cristã personificada no verdadeiro gnostico.
  • Os sete livros remanescentes de Stromata, e os materiais de um possível oitavo, abordam desde a permissividade do estudo da filosofia grega e das ciências pelos cristãos até as relações entre fé e gnosis cristã, tratando ainda do matrimônio, do martírio, do uso de símbolos e alegorias e, de modo mais belo e interessante, da vida religiosa do cristão perfeito.

Exegese, homilética e fragmentos menores

  • A obra Hipotiposes consistia em um comentário alegórico em oito livros sobre passagens selecionadas do Antigo e do Novo Testamento, incluindo as epístolas de Paulo e as católicas, e embora Focio tenha julgado severamente seu ensinamento teológico, fragmentos em grego e latim preservados como Adumbrationes atestam a profundidade de sua interpretação bíblica.
  • O tratado Quem e o rico que se salva? funciona como uma homilia sobre o evangelho de Marcos que defende que o desapego ordenado por Cristo é prioritariamente afetivo e interior, não sendo as riquezas um obstáculo intransponível à salvação se forem utilizadas como meios para o exercício da misericórdia e da caridade.
  • Nesta homilia sobre a riqueza, preserva-se a narrativa pastoral do ladrão convertido pelo apóstolo Joao, um relato amplamente valorizado na antiguidade e reproduzido por Eusebio em sua história eclesiástica por sua unção e piedade, embora a data exata de sua composição permaneça indeterminada.
  • Entre os remanescentes da produção de Clemente, encontram-se notas e extratos destinados a composições futuras, como o fragmento editado por Potter sobre lógica e definição, além dos oitenta e seis fragmentos de obras gnosticas valentinianas conhecidos como Excerpta ex Scriptis Teodoti e as cinquenta e três notas das Eclogae ex Scripturis Propheticis.
  • Outros escritos atribuídos a Clemente por Eusebio incluem tratados sobre a Páscoa, o jejum, a calúnia, a exortação à perseverança voltada aos recém-batizados e um cânone eclesiástico direcionado contra os judaizantes, restando atualmente apenas fragmentos esparsos dessas composições que complementariam seu vasto projeto intelectual.