Agostinho de Hipona — SOBRE A PAIXÃO DO SENHOR Traduzido do latim pelo Padre António Fazenda. Este sermão faz parte da coleção manuscrita do Homiliário de Wolfenbüttel (em latim, codex Gulferbytanus).
Assim pôde morrer o imortal, assim quis dar a vida aos mortais, para fazer depois participantes de Si aqueles de quem antes Se fizera participante.
Pois assim como nós não tínhamos de nosso de que vivêssemos, também Ele não tinha do seu de que morresse; por isso estabeleceu connosco um comércio admirável de comunicação recíproca: era nosso aquilo de que morreu, era d'Ele aquilo de que vivemos.
Contudo a carne que tomou de nós, para nela morrer, também essa, como criador, Ele a deu: porém, a vida em que n'Ele e com Ele havemos de viver, de nós não a podia receber. E pelo que pertence à nossa natureza pela qual somos homens, morreu não do seu, mas do nosso; pois a sua natureza, pela qual é Deus, de nenhum modo pode morrer; mas pelo que pertence ao que n'Ele é criatura, e que como Deus Ele criou, também morreu do seu, pois Ele é que fez a carne em que morreu.
Confessemos, pois, irmãos, com toda a intrepidez ou mesmo proclamemos que Cristo foi por amor de nós crucificado. Digamo-lo não com medo mas com alegria, não com vergonha mas com orgulho. Viu o Apóstolo Paulo este título de glória e como tal no-lo recomendou. Tendo muito que celebrar na grandeza e da divindade de Cristo, não disse que se gloriava das maravilhas de Cristo, o qual como Deus junto do Pai, criou o mundo, e sendo homem como nós o somos imperou ao mundo; mas «longe, porém, de mim, disse, gloriarme senão na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo» (Ga 6, 14). Via o Apóstolo por quem, e onde estivera pendurado e de tamanha humildade de Deus imaginava a nossa elevação divina.