AGOSTINHO CRUCIFICAÇÃO
Agostinho de Hipona — SOBRE A PAIXÃO DO SENHOR
Traduzido do latim pelo Padre António Fazenda. Este sermão faz parte da colecção manuscrita do Homiliário de Wolfenbüttel (em latim, codex Gulferbytanus).
- Ora os que nos atiram como insulto que adoramos um Senhor crucificado quanto mais sensatos imaginam ser tanto mais insanável e desesperada é a insensatez que sofrem, porque não entendem absolutamente nada do que cremos nem do que dizemos. Pois não dizemos que em Cristo morreu o que era Deus, mas o que era homem.
Na verdade, se quando morre um homem, aquilo que essencialmente o constitui homem, isto é, aquilo que o distancia dos brutos, que o faz inteligente, capaz de discernir o humano e o divino, o temporal e o eterno, o verdadeiro e o falso, isto é, a alma racional, não sofre a morte com o seu corpo, mas, ao morrer o corpo, ela se retira viva, contudo se diz morreu um homem, porque é que não se poderá também dizer morreu Deus, entendendo não que pudesse morrer aquilo que é Deus, mas aquilo que é mortal e que Deus tomara pelos mortais? Pois assim como quando morre um homem, não morre a alma que ele tem na sua carne, assim também quando Cristo morreu, não morreu a sua divindade no homem.
Mas Deus, dizem, não pôde unir-Se ao homem e com ele fazer um só Cristo. Segundo esta sentença carnal e vã e os pensamentos humanos, muito mais difícil seria crer que um espírito se pudesse unir à carne, do que Deus a uma natureza humana, e contudo nenhum homem seria homem se não se unisse um espírito de homem a um corpo humano. Quando, pois, um espírito e um corpo constituem uma associação mais difícil e estupenda que a de espírito com espírito, se o espírito do homem, não sendo corpo, e o corpo do homem, não sendo espírito, contudo um e outro se juntam para constituir um homem, quanto mais, para de um e de outro constar um só Cristo, pôde Deus, que é espírito, unir-Se com comunicação espiritual, não a um corpo sem alma mas a uma natureza humana que a tinha?
- Gloriemo-nos, pois, também nós, na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, pelo qual o mundo é para nós um crucificado e nós para ele; para não corarmos desta cruz é que a colocamos na fronte, isto é, na própria sede da vergonha.
Já, porém, se quisermos explicar que lição de paciência e quão salutar se encontra nesta cruz, quais poderão ser as palavras capazes de tal matéria e o tempo suficiente para tais palavras? Pois qual seria o homem que, crendo em Cristo com toda a firmeza e com toda a alma, se atrevesse a ter soberba, quando Deus não de palavra mas de exemplo lhe ensina a humildade? Ora qual seja a utilidade desta lição brevemente o adverte aquela sentença da Sagrada Escritura: Antes da ruína exalta-se o coração e antes da glória é humilhado (Pr 18, 12). Diz no mesmo sentido o seguinte: Deus resiste aos soberbos, e aos humildes dá a sua graça (Tm 4, 6); e mais isto: Quem se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado (Lc 14, 11; 18, 14). Além disto, como nos adverte o Apóstolo que não nos deixemos seduzir pelo gosto das grandezas mas nos acomodemos à humildade, pense, o homem, se o pode, a que precipício de soberba se despenha se não quiser ter os sentimentos de seu Deus humilhado, e que pernicioso não é que o homem leve com impaciência o que lhe impuser o seu justo Senhor, quando Deus sofreu com paciência o que quis o seu injusto ofensor. Ámen.
Notas: