Asclépio

Biblioteca de Nag-Hammadi
O Asclépio (copta) (VI,8)
Tradução de J. P. Mahé, in BCNH, n. 7, 1982. (trad. em português de Álvaro Campos)

Este escrito representa fragmento de texto destacado de conjunto maior, que parece ter sido o Discurso Perfeito, documento hermético grego mais antigo, redigido provavelmente antes de fins do século III, mas que se perdeu. Esse discurso explanava todos os temas do hermetismo. O Asclépio (latino) é versão latina do Pseudo-Apuleio, ao passo que o Códice VI de Nag Hammadi apresenta a versão copta das páginas 21-29 do texto latino. Entretanto, o fragmento copta possui certa unidade e responde às reflexões encráticas e escatológicas dos textos de Nag Hammadi.

Asclépio, aspirante à iniciação, interroga-se junto ao mestre Hermes Trismegisto a propósito da gnose e da atitude por ela exigida. Hermes Trismegisto toma como exemplo a relação sexual para insistir na experiência de Deus e no mistério da comunicação da gnose. A discussão volta-se então para o dom da ciência e da gnose, que é reservado a uns poucos eleitos:

As pessoas desse tipo são também blasfemadoras, ateias e ímpias. Quanto àquelas do (outro) tipo, elas não são numerosas, mas bem poucas que se (possam) contar, os homens piedosos. É por isso que encontramos em muitos a malícia, quando eles não têm a ciência das (coisas) que existem realmente. Pois a gnose das (coisas) que existem realmente, na verdade, é o remédio para as paixões da matéria. Por essa razão, a ciência saiu da gnose. Mas, quando há ignorância e não há nenhuma ciência na alma do homem, as paixões persistem nela, sem remédio, ao passo que a malícia as acompanha como se fosse ferida irremediável. E essa ferida devora a alma, que é roída como por vermes por essa (chaga) da malícia. Mas Deus não é responsável por esses (males), pois ele enviou para os homens a gnose e a ciência (p. 66,1-25).

Para explicar a natureza do homem, mescla de substância divina e de substância corruptível, bem como sua predominância sobre os deuses-astros, Hermes Trismegisto desenvolve ideia audaciosa: ps deuses são produtos do homem.

p. 67,22-68,12: (Deus) distinguiu o homem: estabeleceu-o em uma ciência e uma gnose. Quanto às (faculdades) de que falamos no início, ele levou-as à sua perfeição para que, graças a elas, (o homem) afastasse as paixões e as malícias daqui de baixo, segundo a sua vontade (a de Deus). (Deus) levou à imortalidade a natureza mortal do (homem). (O homem) tornou-se bom e imortal, como já o disse. Com efeito, (Deus) criou-lhe duas naturezas, a imortal e a mortal. E assim, segundo a vontade de Deus, aconteceu que o homem é superior aos deuses, pois os deuses, por seu turno, são imortais, ao passo que os homens são imortais e mortais. É por isso que o homem tornou-se parente dos deuses e eles têm conhecimento mútuo de seus assuntos, com certeza. Por seu lado, os deuses conhecem o que é dos deuses.

(…)

p. 68,20-34: Como acabamos falando da comunhão entre os deuses e os homens, reconhece, ó Asclépio, o que o homem terá de força graças a isso. Com efeito, da mesma forma que o Pai,’ Senhor do Todo, faz (deuses), o homem, este ser que vive sobre esta terra, (esse) mortal, ele, que não se iguala a Deus, por seu turno, também faz deuses. E ele não apenas dá uma força, mas também recebe (uma) força. Não apenas ele é divinizado, mas também faz deuses. Estás surpreso, ó Asclépio? Tu também (és) incrédulo como a maioria?

Em seguida, o texto passa à predição do castigo do Egito, à imagem dos céus, à enumeração dos pecados dos homens e a descrição do julga-mento das almas:

Escuta, ó Asclépio: há um grande demônio (que) o grande Deus determinou para ser inspetor ou juiz das almas humanas. Ora, Deus o instalou no meio do ar, entre a terra e o céu. E, quando a alma sair do corpo, necessariamente ela encontrará esse demônio. Então, ele fará esse homem dar meia-volta, examinando-o quanto ao modo como ele agiu durante sua vida. E, se achar que ele cumpriu piedosamente todas as obras para as quais ele veio ao mundo, então ele colocará esse homem (na região que lhe assenta…). Mas, se ele (vê) que tal homem passou sua vida em obras más, apodera-se dele no momento em que ele sobe às alturas e precipita-o para baixo, de modo que ele fica suspenso no céu, por debaixo, enquanto lhe é infligido grande castigo1). E a esse acontecerá de ser privado de sua esperança, encontrando-se em grande aflição. E essa alma não encontra assento, nem sobre a terra, nem no céu, mas permanece no mar aéreo dos espaços celestes, (no) lugar onde há grande fogo e água congelada, bem como chispas de chamas e grande tormento, onde os corpos se veem atormentados, mas jamais de modo semelhante entre si: ora eles são precipitados em águas correntes, ora são precipitados no fundo do fogo que deve aniquilá-los (p. 76,22-77,24).

Definitivamente, este texto copta, fragmento parcial do Discurso Perfeito, endurece o ensinamento de Ogdoade e Eneade por seu dualismo gnóstico. A descrição do pecado e da sorte final da alma não deixa muita esperança para aqueles que não possuem a gnose.


Notas
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  1. Trata-se do inferno aéreo (cf. Livro de Tomé, p. 142,19-143,7