Mais profundo ainda que o esquecimento da relação do ego consigo mesmo é o que habita sua relação com a Vida. Em sua relação consigo, com efeito, o ego pode esquecer o Si verdadeiro que o instala nele mesmo – fora do mundo, independentemente de todo e qualquer pensamento, de toda e qualquer lembrança, de toda e qualquer preocupação. Na noite dessa ausência de pensamento, o ego não é menos dado a ele mesmo, experienciando-se pateticamente no Eu Posso que se exerce constantemente. Assim ele permanece imerso em si mesmo involuntariamente, quando só se preocupa com o mundo. Completamente diferente, parece, é a relação que o une já não [213] a ele mesmo, mas à Vida. Se o ego só advém a si mesmo na vinda a si da Vida absoluta e no processo de sua autogeração eterna, este processo não se cumpriu desde sempre, a Vida não veio a si em sua Ipseidade de antes do mundo, se nesta um ego qualquer deve poder, ele próprio, vir a si? A Vida absoluta não precede a todo vivente como sua pressuposição insuperável, como um “já” a que ele jamais poderá voltar, como um passado a que ele não poderá retornar – um passado absoluto? A esta antecedência da Vida com respeito a todo e qualquer vivente e, do mesmo modo, à antecedência do Primeiro Si com respeito a todo e qualquer Si particular corresponde o esquecimento mais radical. O esquecimento já não diz respeito aqui ao que se é sem o saber, mas ao que adveio antes que se seja – ao sistema da fruição autárquica constituído pela interioridade recíproca do pai e do Filho, ali onde não há ainda nenhum eu nem nenhum ego tal como o nosso. O já absoluto da fruição autárquica da Vida, aí está o Imemorial, o Arqui-Antigo que se furta a todo e qualquer pensamento – o sempre já esquecido, o que se encontra num Arqui-Esquecimento.
E, no entanto, o cristianismo afirma a possibilidade para o homem de superar esse Esquecimento radical, de encontrar a Vida absoluta de Deus – esta Vida que precedeu ao mundo e seu tempo, a Vida eterna. Tal possibilidade significa para ele a própria salvação. Encontrar esta Vida absoluta, que não tem começo nem fim, seria unir-se a ela, identificar-se com ela, viver novamente desta Vida que não nasce nem morre – viver como ela, do modo como ela vive e não morre.
Encontrar a Vida absoluta de Deus não seria também, todavia, para aquele que a esqueceu, reencontrar uma condição que foi sua, se é verdade que em seu nascimento transcendental ele só veio a si na própria vinda a si da Vida absoluta – não seria nascer uma segunda vez? Mas o homem pode nascer uma segunda vez? E a pergunta angustiada de Nicodemos por ocasião de seu colóquio noturno com Cristo: “Como pode um homem nascer, sendo já velho? Poderá entrar segunda vez no seio de sua mãe e nascer?” (João 3,4). [214]