Excertos da tradução em português de José Antoino Ceschin do livro de Joan O’Grady, “Heresy: Heretical Truth or Orthodox Error? a Study of Early Christian Heresies”
As disputas sobre a Trindade e sobre o relacionamento entre Cristo e o Pai vinham crescendo em intensidade durante o ano inicial do século. As tentativas para explicar a divindade de Cristo, segundo alguns, estavam levando ao perigo de esquecer sua humanidade: Cristo passaria a ser tratado apenas como um aspecto de Deus. Foi este medo que levou Árrio, um sacerdote de Alexandria, no começo do século IV, a protestar contra o que considerava ser sabelianismo de seu bispo, Alexandre, que dissera que “Deus é sempre; o Filho é sempre; e o Filho estava presente no Pai sem nascimento”. Uma das metas de Árrio era estabelecer a unidade e a simplicidade de Deus que, como Espírito puro, não podia manter contato direto com o mundo material. Portanto, segundo Árrio, era preciso que houvesse um intermediário. E este era o Filho, um Ser criado, apesar de formado antes do começo dos tempos. Cristo era Divino apenas por causa da participação na divindade do Pai, que era transcendente a tudo e estava acima de todas as coisas. Enquanto Orígenes explicava que a divindade do Filho estava dentro de Deus, Árrio o via como intermediário — um ser separado do Pai.
O bispo de Alexandria pediu a excomunhão de Árrio e anatematização de todos os seus textos. Árrio reuniu ao seu redor as pessoas que davam apoio a seus ensinamentos, e assim começaram a se formar grupos rivais. Foi desse modo que tiveram início as disputas que levaram ao grande movimento de ruptura chamado de heresia arriana, que acabaria por dividir a Igreja cristã, desaparecendo por completo somente no século VIII.
O imperador Constantino ficou alarmado diante desta crescente desunião em seu Império, já que a desunião era o que ele mais desejava evitar. Tentou reunir os dois grupos, dizendo que ambos tinham razão. Mas a controvérsia continuou. Em 325, Constantino convocou um grande Concilio — o primeiro concilio (ecumênico) mundial -, o de Niceia. Cem bispos vieram da Ásia Menor, setenta da Síria e da Fenícia, vinte da Palestina e do Egito, e apenas alguns do ocidente latino, além de dois delegados sacerdotais de Roma.
Ao encerramento do concilio, a fórmula do Credo usada na preparação dos catecúmenos para o Batismo em Cesareia foi aceita como base para acordo, e a palavra homoousios — de uma única substância — foi adotada para descrever o Ser de Cristo. Em outras palavras, confirmava-se que Cristo tinha a mesma substância do Pai. Esta questão — a da consubstancialidade — tornou-se o centro da próxima controvérsia; porque o Concilio de Niceia nada conseguira resolver. Foi a respeito deste ponto que aqueles que aceitaram a fórmula de Niceia se opuseram aos que apoiavam ou pendiam para a posição arriana.
Árrio foi excomungado e mandado para o exílio. Muitos, porém, que se opunham à visão arriana, não ficaram contentes com a adoção da palavra homoousios, por não ser um termo das Escrituras nem constar em qualquer parte do Velho ou do Novo Testamentos. O uso desse vocábulo é o primeiro exemplo de uma definição puramente teológica colocada como artigo de fé. Era o começo da tendência de definir dogmas — por exemplo, a Imaculada Conceição — que não se baseavam nos textos das Escrituras mas surgiam da dedução e da elucidação (cf. J. Daniélou, The First Six Hundred Years).
Imediatamente depois do concilio encerrado, o imperador Constantino deu seu apoio aos decretos antiarrianos, mas as brigas continuaram. O ocidente latino (incluindo o Egito) aceitou pacificamente a definição de Niceia. Mas o oriente grego dividiu-se em muitas escolas de pensamento e foi atormentado por ameaças de sabelianismo.
As disputas doutrinárias e pessoais foram se multiplicando, e o imperador teve de intervir, para dar seu apoio ou para exilar os lídexes das partes conflitantes. Três anos depois de aceitar os decretos do Concilio de Niceia, Constantino mudou de ideia, chamou Árrio do exílio e apoiou o grupo anti-Niceia até o final de seu reinado.
Os imperadores que o sucederam mostraram pontos de vista diversos, e suas diferentes opiniões afetaram a vida da Igreja. A maior parte deles era arriana ou semi-arriana, isto é, adotava a fórmula de que o “Filho era igual ao Pai”, “de substância parecida, mas não da mesma substância” (a palavra usada era homoiousius — daí a acusação de que a Igreja estava sendo despedaçada por causa de um ditongo!). O imperador Constan-tino era um dos semi-arrianos, e em 360 proclamou esta definição como a fé oficial no Império.
O maior oponente do arrianismo de todo e qualquer tipo foi Atanásio. Ele fora ao Concilio de Niceia quando ainda era um jovem sacerdote, tendo sido consagrado bispo de Alexandria em 328. Durante os anos tempestuosos que se seguiram, Atanásio foi exilado e readmitido diversas vezes, tendo morrido antes que a ortodoxia de Niceia fosse finalmente estabelecida. Mas foram os seus escritos que puseram em evidência a raiz do conflito e deixaram claro por que ela era importante. O Credo que foi por fim adotado tem sido chamado de “Credo de Niceia”, ou “Credo de Atanásio”.
Atanásio foi o protagonista da consubstancialidade. Afirmava que o Verbo se tornara Homem, e não que tivesse entrado cm um homem. Dizia que, se Cristo tivesse existido neste segundo sentido, conforme o conceito de Árrio, Ele não seria diferente dos profetas e santos antigos, mesmo que tivesse um grau mais elevado. Para Atanásio, Cristo tinha de ser único e de diferente espécie, em relação ao resto da humanidade, mesmo da parte dessa humanidade que recebera a graça divina. A mudança na essência do homem, necessária para restaurar sua imortalidade perdida, só podia ser realizada pelo próprio Deus. A fuga da morte final só podia ser alcançada por alguém que comungasse da Natureza de Deus. Este, segundo Atanásio, era o propósito da Encarnação. Portanto, o Filho tinha de ter a mesma substância do Pai.
Árrio afirmava com insistência a Unidade e Imutabilidade de Deus, e a necessidade de nunca nos esquecermos da humanidade de Cristo e de sua capacidade de mudar e de sofrer. Pareciam duas afirmações irreconciliáveis. Só Deus podia redimir e Deus era imutável; no entanto, Cristo, o Redentor intermediário, sofrerá e morrera.
Nos primeiros estágios da controvérsia, Atanásio afirmava que algumas ideias encontravam-se além da compreensão. “Em cada passo da indagação, somos levados a sentir e a reconhecer a incomensurável desproporção entre o tamanho do objeto e a capacidade da mente humana”. Mas, com o desenvolvimento das controvérsias, ele foi obrigado a encontrar definições para essas “incomensuráveis ideias”.
Segundo Atanásio, o erro de Árrio estava em fazer as distinções trinitárias fora da Divindade — em outras palavras, ele postulava a existência de um Ser Supremo, enquanto o Filho e o Espírito Santo seriam dois seres inferiores. Atanásio, do mesmo modo que Orígenes antes dele, compreendia a Trindade como uma diferenciação dentro da Divindade, e acusava Árrio de fazer uma imagem de Cristo que não era nem Deus nem homem, mas a de uma figura mítica sobre-humana, destruindo assim o esquema cristão de Salvação.
Atanásio afirmava que o significado da revelação cristã dependia de Cristo ser totalmente humano e totalmente Divino. Cristo tinha de ser totalmente humano, para que o homem como um todo pudesse ser salvo. “Aquilo que Cristo não assumiu, Ele não curou”, disse Gregório Nazianzeno. E Ele tinha de ser totalmente Divino para que pudesse escapar do determinismo da Natureza. A essência do cristianismo de Atanásio foi expressada em suas famosas palavras: “Deus tornou-se Homem para que o Homem pudesse tornar-se Deus”.
No entanto, a atração do arrianismo estava em sua aparente simplicidade, ou melhor, na impressão de que era mais racional e fácil de entender do que o sistema oponente. O uso da palavra “Filho” sempre fizera com que as pessoas, de modo quase inconsciente, imaginassem um semideus, enviado pelo “Pai” e subordinado a Ele, de modo que o arrianismo parecia ser a forma de cristianismo mais naturalmente compreensível. As doutrinas de Niceia, conforme expostas por Atanásio, eram vistas por muitos como teorias metafísicas, sem base na experiência espiritual humana. De fato, para alguns, elas pareciam contradizer a concepção do Velho Testamento a respeito de um Deus “pessoal” único.
Na década de 370, Basílio, bispo de Cesareia, Gregório de Nissa e Gregório Nazianzeno, conhecidos como “os três grandes da Capadócia”, colaboraram em juntar de novo as partes divergentes. Chegaram a uma fórmula com a qual a maioria conseguia concordar: “existia apenas uma substância na Divindade, uma ousia; eram três as pessoas — hypostasis — não três deuses, mas um só, que podia ser encontrado igual e identicamente no Pai, no Filho e no Espírito Santo”. Aos poucos, estas ideias foram ganhando aceitação.
Em 379, o imperador era Teodósio, um rígido defensor de Niceia. Com a finalidade de estabelecer a unidade no Império, ele procurou manter relações mais estreitas com o bispo de Roma, o Papa Dâmaso. No ano de 381, Teodósio convocou o segundo concilio mundial, o Concilio Ecumênico de Constantinopla. A doutrina de Niceia foi ali transformada em definição da ortodoxia católica, e a Igreja católica (universal) dos cristãos foi declarada como Trinitária.
O cristianismo “trinitário ortodoxo” foi estabelecido por Teodósio como única religião oficial do Império. Ele declarou que todas as pessoas sujeitas a seu governo deviam viver na religião que “o divino Pedro, o apóstolo, terin deixado aos romanos”. Tinham de acreditar em “…uma Divindade do Pai, Filho e Espírito Santo, com igual majestade na Santíssima Trindade”. (C. L. Manschreck, A History of Christianity in the World). Os hereges e pagãos passavam a estar sujeitos a multas, todos os templos pagãos deviam ser destruídos e aqueles que continuassem a oferecer sacrifícios pagãos seriam condenados à morte. Todas as formas de arrianismo foram anatematizadas e Árrio foi condenado postumamente por negar a total divindade do Verbo. O arrianismo tornara-se uma heresia.
Na parte oriental do Império, a “ortodoxia de Niceia” estabeleceu-se solidamente, mas, no Ocidente, o arrianismo ainda sobreviveu durante quatrocentos anos, como uma forma de cristianismo diferente do catolicismo.
Por uma estranha ironia do destino, o bondoso Ulfilas, que fora missionário junto aos bárbaros godos nas fronteiras do Mar Negro, tinha sido consagrado bispo em 360, época em que o semi-arrianismo era o cristianismo oficial do Império. E foi esta a religião que ele ensinou aos povos góticos. Quando os godos invadiram a região Noroeste do Império, e lá se estabeleceram, trouxeram consigo seu cristianismo arriano, e os visigodos e os ostro-godos levaram a heresia para a Itália, a Espanha, o Norte da África e a Gália.
Os invasores arrianos viviam em constante conflito com a Igreja do Império e com as populações que haviam conquistado. No século VI, no entanto, os reinos arrianos haviam sido absorvidos pelo catolicismo e o arrianismo acabou desaparecendo por volta do século VIII, como forma herética organizada de cristianismo. Mas a concepção básica do Filho, como intermediário diferente do Pai, não desapareceu. Até hoje, muitos fiéis que frequentam a Igreja compreendem sua religião desta maneira. Algumas das Igrejas protestantes, formadas depois da Reforma, basearam-se de maneira específica na concepção arriana e, portanto, anti-trinitária de Cristo. As Igrejas Unitárias (palavra usada pela primeira vez em 1600) são um bom exemplo de antitrinitarismo. Para elas, Cristo é um Homem divinamente inspirado e não deve ser adorado como Deus.
A heresia arriana, assim como muitas outras heresias, foi um elemento catalisador na formação da doutrina “ortodoxa”. Conforme foi demonstrado por Orígenes, as declarações do Credo sobre quem Cristo era foram essenciais para uma interpretação do cristianismo. Já no século IV, depois de muitos anos de discussão e teorização, tornara-se necessária uma fórmula definitiva. Dois eram os pontos em discussão: se Cristo fosse considerado não totalmente divino, não poderia haver uma doutrina da Encarnação; e se Cristo não fosse tido como humano por completo, não poderia existir uma doutrina da Redenção. Seria possível encontrar uma fórmula de palavras capaz de conciliar estas duas ideias contrárias?
Os credos que tinham sido usados no Batismo variavam um pouco entre si nas diferentes cidades e nos distritos do Império. No Concilio de Constantinopla, a fórmula de Niceia foi aceita e incluída num credo que deveria ser usado por toda a Igreja: “Creio… no Filho de Deus… da mesma substância que o Pai, por quem todas as coisas foram feitas”. O Credo de Atanásio, ou de Niceia, do ano de 381, tornou-se o credo no qual são baseados ainda hoje os atuais credos católico-romano, anglicano e ortodoxo.
Da mesma forma que nos credos batismais anteriores, havia ali o seguinte pronunciamento: “quem, por nós, os homens, e por nossa Salvação, desceu do céu e tornou-se Homem”. De modo a tornar perfeitamente clara a doutrina trinitária da Igreja, acrescentou-se o seguinte: “Creio no Espírito Santo, o Senhor e o Doador da Vida, que precede do Pai (e do Filho — uma adição posterior) que, com o Pai e o Filho juntos, e adorado e glorificado, que falou por intermédio dos profetas”.
Em sua negativa da total Divindade de Cristo, Árrio incluíra uma negação da Divindade do Espírito Santo. E outros foram ainda mais longe, afirmando que o Espírito Santo era um ministro, do mesmo nível dos anjos (esta foi a heresia macedônia assim chamada por causa de seu fundador, Macedônio). O credo de Niceia estabeleceu, de uma vez por todas que, no catolicismo “ortodoxo”, as três pessoas da Trindade eram iguais em majestade e eram um único Deus.
Ninguém jamais afirmou que uma definição clara e abrangente da filosofia religiosa cristã teria sido, em qualquer tempo, divinamente revelada ou inspirada. Os mais rígidos defensores da crença na Ordenação Divina concordam que o credo, conforme o conhecemos, alcançou sua forma atual depois de longas e difíceis lutas e debates entre os líderes da Igreja.
Assim como parece haver um problema impossível de resolver na existência do bem e do mal no inundo, também parece existir uma contradição irreconciliável entre a Onisciência e a Imutabilidade de Deus Pai e as tentações e os sofrimentos enfrentados por Deus Filho, que nasceu, cresceu e se tornou Homem. As palavras usadas no credo não podem explicar os “mistérios invisíveis” aos quais se referiu Hilário. Mas o que elas afirmam e, mais especificamente, o que não afirmam pode ser visto como algo que orienta o pensamento a respeito da crença “ortodoxa”. Seu mais importante aspecto é a rejeição à racionalização e a retenção do “mistério”. Mas podem estes pronunciamentos do credo serem vistos como frutos de um Plano Divino, apesar de todos os conflitos e compromissos intelectuais e políticos dos quais eles parecem ter surgido?