Arendt Perdoar

PAI NOSSOPerdoai nossas dívidas

FILOSOFIA
Hannah Arendt

O descobridor do papel do perdão na esfera dos negócios humanos foi Jesus de Nazaré. O fato de que ele tenha feito esta descoberta num contexto religioso e a tenha enunciado em linguagem religiosa não é motivo para levá-la menos a sério num sentido estritamente secular. É da natureza de nossa tradição de pensamento político (por motivos nos quais não podemos nos deter aqui) ser altamente seletiva e excluir da conceituação sistematizada grande variedade de experiências políticas autênticas, entre as quais não é surpreendente encontrar algumas de natureza elementar. Certos aspectos dos ensinamentos de Jesus de Nazaré que não se relacionam basicamente com a mensagem religiosa cristã, mas decorrem de experiências da pequena e coesa comunidade de seus seguidores, empenhada em desafiar as autoridades públicas de Israel, certamente incluem-se entre estas últimas, embora tenham sido esquecidas em virtude de sua natureza exclusivamente religiosa. O único e rudimentar vestígio da percepção de que o perdão é o corretivo necessário aos danos inevitáveis causados pela ação é encontrado no princípio romano de poupar os vencidos (parcere subjectis) — sábio princípio que os gregos desconheciam totalmente — ou no direito de comutar a pena de morte, provavelmente também de origem romana, que é a prerrogativa de quase todos os chefes de estado ocidentais.

É crucial para o nosso contexto o fato de que Jesus sustenta, contra a opinião de «escribas e fariseus», que, em primeiro lugar, não é verdade que somente Deus tenha o poder de perdoar;1 e, em segundo lugar, que este poder não deriva de Deus — como se Deus, e não os homens, perdoasse através de seres humanos — mas, ao contrário, deve ser mobilizado pelos homens entre si, pois só assim poderão também esperar ser perdoados por Deus. A formulação de Jesus é ainda mais radical. O Evangelho não diz que o homem deve perdoar porque Deus perdoa, e ele, portanto, deve fazer «o mesmo», e sim que, «se cada um de vós, no íntimo do coração, perdoar», Deus fará «o mesmo».2 O motivo da insistência sobre o dever de perdoar é, obviamente, que «eles não sabem o que fazem», e não se aplica ao caso extremo do crime e do mal intencional, pois do contrário não teria sido necessário ensinar que, «se ele pecar sete vezes no dia contra ti, e sete vezes no dia te vier buscar, dizendo: Pesa-me, perdoa-lhe».3 O crime e o mal intencional são raros, mais raros talvez que as boas ações; segundo Jesus, Deus se encarregará deles no Juízo Final, que nenhum papel desempenha na vida terrena e tampouco se caracteriza pelo perdão, mas pela justa retribuição (apodounai).4 O pecado, ao contrário, é evento cotidiano, decorrência natural do fato de que a ação estabelece constantemente novas relações numa teia de relações, e precisa do perdão, da liberação, para que a vida possa continuar, desobrigando constantemente os homens daquilo que fizeram sem o saber5. Somente através dessa mútua e constante desobrigação do que fazem, os homens podem ser agentes livres; somente com a constante disposição de mudar de ideia e recomeçar, pode-se-lhes confiar tão grande poder quanto o de consistir em algo novo.

Sob este aspecto, o perdão é o exato oposto da vingança, que atua como reação a uma ofensa inicial, e assim, longe de porem fim às consequências da primeira transgressão, todos os participantes permanecem enredados no processo, permitindo que a reação em cadeia contida em cada ação prossiga livremente. Ao contrário da vingança, que é a reação natural e automática à transgressão e que, dada a irreversibilidade do processo da ação, pode ser esperada e até calculada, o ato de perdoar jamais pode ser previsto; é a única reação que atua de modo inesperado e, embora seja reação, conserva algo do caráter original da ação. Em outras palavras, o perdão é a única reação que não reage apenas, mas age de novo e inesperadamente, sem ser condicionada pelo ato que a provocou e de cujas consequências liberta tanto o que perdoa quanto o que é perdoado. A desobrigação mencionada nos ensinamentos de Jesus sobre o perdão é a libertação dos grilhões da vingança, uma vez que esta prende executor e vítima no inexorável automatismo do processo da ação que, por si, jamais chega necessariamente a um fim.

A punição é a alternativa do perdão, mas de modo algum seu oposto; ambos têm em comum o fato de que tentam pôr fim a algo que, sem a sua interferência, poderia prosseguir indefinidamente. É, portanto, significativo — elemento estrutural na esfera dos negócios humanos — que os homens não possam perdoar aquilo que não podem punir, nem punir o que é imperdoável. Realmente, é isto que caracteriza aquelas ofensas que, desde Kant. chamamos de «mal radical», cuja natureza é tão pouco conhecida, mesmo por nós que sofremos uma de suas raras irrupções na esfera pública. Sabemos apenas que não podemos punir nem perdoar esse tipo de ofensas e que, portanto, elas transcendem a esfera dos negócios públicos e as potencialidades do poder humano, às quais destroem sempre que surgem. Em tais casos, em que o próprio ato nos despoja de todo poder, só resta realmente repetir com Jesus: «Seria melhor para ele que se lhe atasse ao pescoço uma pedra de moinho e que fosse precipitado ao mar».

NOTAS:


  1. É o que se afirma enfaticamente em Lucas 5:21-42 (cf. Mateus 9:4-6 ou Marcos 12:7-10). onde Jesus opera um milagre para provar que «o Filho do homem tem sobre a terra o poder de perdoar pecados», com ênfase em «sobre a terra». O povo fica muito mais escandalizado com sua insistência no «poder de perdoar» que com os milagres que ele faz. de modo que «os que comiam ali começaram a dizer entre si: Quem é este que até perdoa pecados?» (Lucas 7:49). 

  2. Mateus 18:35; cf. Marcos 11:25: «Mas quando vos puserdes em oração … perdoai … para que também o vosso Pai que está nos céus vos perdoe vossos pecados». Ou: «Porque se vós perdoardes aos homens as ofensas que tendes deles, também vosso Pai celestial vos perdoará os vossos pecados» (Mateus 6:14-15). Em todos estes casos, o poder de perdoar e um poder fundamentalmente humano: Deus nos perdoa «nossas dívidas, assim como perdoamos nossos devedores». 

  3. Lucas 17:3-4. E importante observar que as três palavras chaves do texto — aphienai, metanoein e hamartenein — têm certas conotações, mesmo no grego do Novo Testamento, que as traduções não conseguem transmitir por inteiro. O significado original de aphienai é «despedir» e «libertar», e não «perdoar»; metanoein significa «mudar de ideia» e — como serve também para traduzir o hebraico shuv — «retornar», «voltar sobre os próprios passos», e não «arrepender-se», com suas conotações emocionais e psicológicas. O que se exige do homem é: muda de ideia e «não peques mais», o que é quase o oposto de fazer penitencia. Finalmente, hamartenein pode realmente, ser adequadamente traduzido por «transgredir», na medida em que significa «errar», «enganar-se e extraviar-se», e não «pecar» (veja-se Heinrich Ebeling, Criechisch-deutsches Worterbuch zum Neuen Testamente (1923. O versículo que citei, da tradução clássica, poderia também ser traduzido como segue: «E se ele transgredir contra ti … e … procurar-te, dizendo: Mudei de ideia, deves desobrigá-lo». 

  4. Mateus 16:27 

  5. Esta interpretação parece ser justificada pelo contexto (Lucas 17:1-5): Jesus introduz suas palavras assinalando a inevitabilidade das ofensas (skandala) que são imperdoáveis, pelo menos na terra: «mas ai daquele por quem elas vêm. Seria melhor para ele que se lhe atasse ao pescoço uma pedra de moinho e que fosse precipitado ao mar»; e passa a ensinar o perdão as «transgressões» (hamartenein).