Roberto Pla: Evangelho de Tomé – Logion 87
No relato segundo o Apocalipse (gnóstico) de Pedro, o apóstolo, que supostamente contempla a Jesus cravado na cruz, descreve a Jesus como uma tricotomia hílico-psíquico-pneumático, com o último binômio só perceptível para os que veem, para os que receberam o Mistério do Reino de Deus. Esta divisão ternária de Jesus, e como se verá, quaternária em certo sentido, só é possível a título de análise teórica, mas ainda assim, tem validez e, por extensão, é aplicável a todo homem, posto que a estrutura geral é, salvas as distinções, idêntica.
Eis aqui o ponto de partida do relato de Pedro:
Eu vi vir a nós — diz — um que se parecia a Ele (Jesus), e também a Jesus o Vivente, o qual ria em pé junto à cruz, como uma imagem (de Jesus) pintada com Espírito santo. E era o Salvador. Havia ali uma grande e inefável luz que os rodeava, e multidão de inefáveis e invisíveis anjos que os louvava.
O texto que explica em termos adequados à categoria universal de Jesus, a composição do homem “completo”, que responde à qualidade específica da cada um dos três reinos do universo segundo o Gênesis: espiritual (Luz), psíquico (água: superior e inferior) e material (Terra, ou barro). Estes são, por outro lado, os três níveis da consciência, contemplados em teórica dissolução analítica (quase puramente anatômica), pois o que tenta descrever o autor é um estudo do Cristo “por dentro”.
O primeiro Jesus dissociado que se menciona é Jesus em corpo passível: “aquele Jesus que cravaram na cruz”. Este Jesus temporal é descrito ao longo de vários versículos, como o “primogênito” e como “Casa dos demônios” e o “vaso de pedra” no qual habitam eles, os que cravaram as mãos e os pés deste Jesus. Também é denominado o “homem de Elohim” (o homem que foi plasmado pelos arcontes), pois que é a imagem carnal, o plasma nascido à imagem de Jesus o Vivente. Depois, diz dele que é homem da cruz que está sob a Lei; o que padecerá (em cruz), Jesus corpóreo, o filho de Maria, porquanto o corpo é o “resgate” da salvação humana, o que eles desonram, o filho de sua glória vã.
O segundo Jesus dissociado que se descreve é Jesus o Vivente que ao pé da cruz, revela gozo e ri. Dele se diz: primeiro estava (no corpo) e foi aprisionado, e (logo) foi liberado (deste corpo passível) no caminho do Calvário. Agora está “em pé” e ri porque vê como se dividem entre si os que fizeram o mal. Ri diante de sua cegueira porque são cegos de nascimento e “não sabem o que dizem. A este meu servidor (diácono) (Jesus o Vivente) — diz o Salvador — é a quem queriam desonrar.
Por fim, eu — diz o Salvador -: Eu sou o Espírito só perceptível pelo espírito. Sou o que resplandece pleno de luz; aquele a quem viste vir a mim, e a ti.
O anônimo autor cristão do Apocalipse de Pedro, dispôs a cena da crucificação com uma precisão harmônica prodigiosa. Primeiro, diante de Pedro (o espectador) e sendo uma só coisa com ele mesmo, está a Luz, o Logos. Depois, ao pé da cruz, o Cristo psíquico, a alma bem-aventurada, o Senhor,e por último, mais longe, no cimo do Calvário, pendendo da cruz, o corpo passível de Jesus, o corpo do homem que padeceu.
O Salvador (o Logos), o Senhor e o homem (Jesus) que padeceu constituem três formas de expressão de uma mesma consciência essencial desde o oculto ao manifesto. Isto o explica outro autor gnóstico: “Eu morri — diz o Salvador — mas não em força, senão no manifesto”. Ou o que é o mesmo: “Morri”, não em minha natureza divina, oculta, senão na humana, manifesta (v. Segundo Tratado do Grande Set).
O que anuncia em definitivo o autor anônimo é que a natureza divina e a consciência psíquica de Jesus não se identificam com o corpo passível que foi cravado na cruz. O autor do Atos de João o confirma: “Não sou eu o que estou encima da cruz — diz o Salvador —. Me tomaram pelo que não sou, pois não sou o que era segundo eles.
Ouves que padeci e não padeci;
e que sofri e não sofri;
que fui ferido e não sofri chagas;
que estive pendido da cruz e não pendi;
que o sangue emanou de mim e não emanou. [Atos de João]