SINAL DE ABRAÃO — ANTES QUE ABRAÃO FOSSE… (Jo VIII,48-59)
VIDE: EU SOU
Michel Henry: EU SOU A VERDADE [MHSV]
O afrontamento a respeito de Abraão, afrontamento que vai acarretar na condenação à morte do Cristo, é mais titânico ainda. Se dizendo o filho de Abraão porque, fiéis a este, eles não adoram nenhum ídolo mas somente Deus, os judeus se consideram ao mesmo tempo como Filhos de Deus: «Nós não somos bastardos nós só temos um único Pai, Deus!» (Jo, 8,27; Sinal da Cruz). Ser filho de Abraão quer dizer aqui se comportar como fiel discípulo do pai da fé, recusar sua adoração a tudo o que não é deus e assim considerar este, o Deus de Abraão, como o único Deus. Mas esta atitude espiritual que á deles, permanece a seus olhos aquela dos seres humanos tomados na genealogia humana e mundana da qual fala Mateus e que reconduz à Adão. Eis porque o Cristo se dá como o Filho de Deus em sentido todo outro, no sentido de Arque-Filho consubstancial ao Pai, que o conflito estoura. Por um lado o Cristo declara sua obra superior àquela de Abraão, o fundador da fé, e isso na medida que a obra do Cristo não é separável de sua condição que é a auto-revelação de Deus ele mesmo: «… Eu que vos digo a verdade que aprendi junto de meu Pai. Isso Abraão não o fez…» (Jo 8,37). Bem mais, esta Verdade de Deus, a qual se encontra perturbada: «Abraão vosso pai tremeu de alegria ao pensamento de ver meu Dia; ele viu e dele se alegrou” (Jo 8,56). E é aqui que tudo parte em pedaços e voam as pedras, quando se descobre a diferença radical entre a condição mundana do filho — filhos de Abraão certo, filhos de Deus mas na verdade do mundo, como propriedade e qualidade de homens gerados na auto-revelação da Vida e como idêntica à esta. «… Então eles tomaram pedras…» (Jo 8,59).
O abismo que separa o Arque-Filho na vida dos filhos segundo a verdade do mundo, tomados na genealogia humana — estes filhos se pensando ou não como aqueles de Abraão ou de Deus —, se exprime na revertimento desta genealogia e de sua orientação temporal. Senhor de Davi, o Cristo se mantém diante deste, longe de só vir após ele como seu filho. Mais exatamente ainda, na declaração estupenda que fecha a polêmica com os “judeus”: «Antes que Abraão fosse, Eu sou!» (Jo 8,58). Ora esta afirmação que inicia o sentido comum não está isolada, não é uma simples asserção, mais ou menos paranoica, à qual só se poderia “crer” de maneira cega, ou não “crer” em se fiando na Razão. A razão, precisamente, nela é dada sob a forma de uma justificação absoluta, é a condição não mundana do Cristo, o fato que, co-engendrado no auto-engendramento da Vida fenomenológica absoluta estranha ao mundo, o Arque-Filho é ele mesmo estrangeiro a este mundo e a sua temporalidade própria (vide ESTRANGEIRO). Não se trata portanto em realidade de uma simples inversão da genealogia humana e de sua ordem temporal, como se isto que, posto então “depois” — o Cristo filho de Davi, filho de Abraão —, devia ao contrário o ser “antes” — o Cristo Senhor de Davi e Senhor de Abraão —, mas do salto de uma verdade a uma outra, da verdade da qual o modo de aparição é o tempo, quer dizer o mundo ele mesmo, à Verdade da Vida absoluta que ignora o tempo na medida que ela ignora o mundo. A razão do “Antes” radical, do “Antes” não temporal do Cristo, é o Cristo ele mesmo que a dá na linguagem da apoditicidade fenomenológica: «… Porque tu me amastes antes da criação do mundo …» (Jo 17,24); «… Em me dando esta glória que tinha junto de ti antes que o mundo fosse» (Jo, 17,5).
Retornemos à palavra mais extraordinária, a mais louca do Cristo, a fim de perceber agora em sua verdade apodítica — uma verdade tal que quem quer que a compreenda não pode evitar de afirmá-la. Esta palavra: «Antes de que Abrão fosse, Eu sou». Ela significa que nenhum eu vivente transcendental não é possível se não é em uma Ipseidade que pressupõe longe de poder criá-la — assim como não criou sua própria vida —, Ipseidade co-gerada no auto-afeto da Vida absoluta e cuja efetividade fenomenológica é precisamente o Arque-Filho. Primogênito na Vida e Primeiro Vivente, o Arque-Filho detém a Ipseidade essencial na qual o auto-afeto da vida alcança à efetividade. Mas é nesta Ipseidade somente e a partir dela que todo outro Si e assim todo eu transcendental tal que o nosso será possível. Assim o Arque-Filho detém em sua Ipseidade a condição de todos os outros filhos. Nenhum filho, nenhum eu transcendental vivente nascido na vida, não nasceria desta vida se esta não se fizesse previamente Ipseidade transcendental no Arque-Filho. Assim este precede necessariamente todo Filho imaginável. Assim é «o Primogênito entre muitos irmãos» (Romanos 8,28-30). E isso porque é somente em sua Ipseidade e no Si originário que lhe pertence que a vida chega a cada vivente fazendo dele um eu — não chegando a ele senão fazendo dele um eu, este eu transcendental que sou eu mesmo. «Antes que Abraão fosse (mas isto quer dizer precisamente: antes de todo eu transcendental qualquer que seja, que seja aquele de Abraão ou de Davi), Eu sou».
Que um vivente não chegue na vida senão enquanto eu vivente e assim na única condição que nesta vida já se edifique a Ipseidade originária da qual terá a possibilidade de ser ele mesmo um Si ou um eu, é isto que implicam as afirmações fundamentais do cristianismo concernindo o homem: “Filho de Deus”, ele não pode ser enquanto “Filho no Filho”. Tese decisiva que convém aprofundar.