Angelus Silesius [LSAS]

Se muitos críticos da literatura de inspiração religiosa já comentaram o Viajante Querubínico, a obra mais importante de Angelus Silesius, dividida em seis livros, este poeta místico é ainda praticamente desconhecido no Brasil e evitado pelos teólogos em geral. O nome originário de Angelus Silesius é Johannes Scheffler (1624-1677), figura excêntrica e embaraçante. Seu caminho existencial e literário estão intimamente ligados a uma experiência complexa e pessoal.

A essência da mística cristã e da mística em geral parece consistir em última instância na tomada de consciência profunda e na vivência de que Deus deve nascer em nós, sofrer em nós para em nós renascer, eterno, e nós, nele. Angelus Silesius cumpriu este caminho com zelo e entusiasmo, até o excesso. Admirando as dimensões de seu gênio poético, devemos forçosamente seguir seu itinerário espiritual, situando-o no panorama do pensamento religioso da época em que viveu. A polivalência de suas expressões e o paradoxo que as caracteriza escandalizam a sensibilidade religiosa daqueles cujo cristianismo se fixou na exterioridade ritual. No entanto, apesar de original, como é moderna a maneira pela qual Angelus Silesius exprime o mistério da salvação, comprometendo cada alma no “sim” da Virgem e no nascimento de Cristo! Os dois dísticos que citamos em seguida o exemplificam:

“O que importa, Gabriel, tua saudação à Virgem
Se a mesma mensagem a mim não se dirige?” (II, 102)

“Perguntas, meu Cristo, onde é o trono de Deus?
Lá onde nasceste: em teu íntimo Eu.” (I, 50)

Neste último dístico, é clara a ênfase dada ao nascimento do Cristo interior. O “sereis Cristo” do Evangelho de S. João — cujos escritos constituem a fonte bíblica principal de Angelus Silesius — parece ressoar, exortando o nascimento do Cristo interior, além do amor devocional ao Cristo histórico. Dentro deste mesmo tema, a ousadia verbal do poeta é ainda maior no seguinte dístico:

“A sua direita, sou também filho de Deus:
Carne, espírito, sangue,
Ele prova no meu ser.” (I, 17)

O Eu que dialoga nos dísticos, como sujeito que se defronta com o Tu divino não é — adverte o poeta — um eu autobiográfico, uma vez que fala “em nome do homem deificado”. Assim, longe de representar o perigo da desmedida demoníaca ou, psicologicamente falando, da inflação do ego, trata-se da theosis, isto é, da deificação, pneumatização e penetração do ser humano pelas energias divinas:

“Por ti Deus fez-se homem; se em Deus não te tornares
Zombas de Seu nascimento e de Sua morte.” (I, 124)

Deus mora na luz.
Que caminho seguirás?
Quem não se torna luz, jamais o encontrará.” (I. 72)

(…)

Já observamos que na primeira parte do Viajante a dialética entre o eu humano e suas profundezas divinas se desenrolava numa relação de complementaridade; nesse percurso há uma luta entre opostos, a temática não é linear e, pelo contrário, frequentemente é a-lógica e paradoxal, obediente apenas à experiência arrebatadora que se apossou do poeta durante quatro dias e da qual resultou o primeiro livro do Viajante querubínico, tema fundamental da obra em seu conjunto e seu ponto mais alto:

“Onde é minha morada?
Nem eu, nem tu lá estamos.
Qual o fim encontrado?
Onde nada encontramos.
Como prosseguir e o que fazer por certo?
Ultrapassando Deus, entrar pelo Deserto.” (I, 7)

Num excelente comentário ao pensamento de Silesius, que busca altitudes sempre maiores, até esse vertiginoso Deserto, espécie de esvaziamento total da imago Dei, que lembra a mística de Eckhart, diz Henri Plard:

“… Deus (se buscado a partir de fora) será sempre fugidio e indefinível. Pois o que é Ele e o que não é? Imanente e transcendente, longínquo e próximo, indiferente e em agonia de amor — Ele se esquiva incessantemente aos vãos esforços do espírito humano. Não há conhecimento possível de Deus, em que este permaneça exterior à alma humana. E preciso que seja abolida entre ambos a relação de sujeito-objeto, é preciso que ‘o conhecedor se torne o conhecido’, que o homem se torne Deus para sondá-lo, e no entanto tal transformação não será conhecimento, pois quando Deus nela se torna (na alma), a consciência humana desaparece e só resta a “Divindade nua”, a “vacuidade” suprema que, em virtude do paradoxo místico, é também riqueza suprema. Mas, como se elevará o homem até esse Deserto, mais alto que a imagem de Deus? Silesius responde: por amor.”

“Se além de Si
Ele não fosse me levar,
O amor que sinto certamente o forçará.” (1, 16)

Num dístico cristalino, Angelus Silesius fala dessa opção amorosa:

“Uma só coisa eu amo, por simples pendor:
E por não conhecê-la, é uma escolha de amor.” (I, 43)

E ainda:

Deus se funda sem sonda, sem medida se mede!
Quem com Ele se une, isto percebe.” (I, 42)

Henri Le Saux nos dá uma chave indireta para a compreensão do percurso “interminável” que é a busca do “eu essencial”, deiforme, e do próprio Deus. Segundo ele, o homem essencial não poderia permanecer identificado com sua função natural ou social, e nem mesmo com as formas e sinais de sua “religião”. Tudo isto lhe será arrancado no confronto final, “pois nada disto é Deus, mas apenas sinal. E nada disto é o homem em sua verdade”.

Mas vejamos como tal percurso e o progressivo esvaziamento das imagens se exprimem em dois dísticos consecutivos de Angelus Silesius:

“Fora, serafins, minha sede não saciais
Afastai-vos, santos, vós que flamejais,
Não me podeis valer: ao Oceano incriado
Eu mergulhei da Divindade nua.” (I, 3)

O tema central do Viajante querubínico é o da procura de Deus e do homem essencial. Alegria e transporte amoroso, aspiração à paz, decisão, e também sentimentos de entusiasmo e triunfo dominam os dois primeiros livros do “Peregrino”, superiores do ponto de vista formal e da inspiração, e que precederam a conversão de seu autor ao catolicismo. Nos dísticos que se seguem do primeiro livro, analogia musical, sugestão paradisíaca de uma harmonia feita de timbres diversos que se fundem num só canto, e, no outro, dialética do tempo e da eternidade:

“Quando abandono o tempo, sou eternidade:
O divino me toca e eu toco a divindade.” (I, 13)

“Ah, pudéssemos nós, como pássaros livres,
Reunir num só Canto os timbres da alegria!” (I, 265)

E ainda:

Eternidade é tempo, e tempo, eternidade
Se não os separares em tua intimidade.” (I, 47)

Os três livros seguintes do Viajante querubínico (obra que, ao todo, compreende seis livros) misturam temáticas católicas às imagens preferidas do misticismo do autor. O endurecimento doutrinário e polêmico não deixa de afetar profundamente o sexto livro, publicado apenas na segunda edição (em 1674, dezessete anos após o lançamento da obra). Esta rigidez, contudo, não nos parece uma quebra de continuidade no itinerário espiritual do autor, espelhando antes um problema psicológico. Segundo a implacável lei segundo a qual toda unilateralidade cedo ou tarde se transforma no seu oposto, à atitude aberta dos primeiros livros, à tônica de paz e quietude contemplativas se opõe o entusiasmo algo agressivo do “soldado de Cristo”, que continua no entanto a ser essencialmente o mesmo Angelus Silesius, poeta do fervor divino.