1 — Os Sacramentos
Excertos da tradução de D. Paulo Evaristo Arns de “Os Sacramentos e os Mistérios”
OS SACRAMENTOS E OS MISTÉRIOS
Livro Quarto (15-29)
15 Qual é esta palavra de Cristo? Pois bem. É aquela pela qual todas as coisas foram feitas. O Senhor deu ordem e se fez o céu. O Senhor deu ordem e se fez a terra. O Senhor deu ordem e se fizeram os mares. O Senhor deu ordem e todas as criaturas foram geradas. Percebes, portanto, quanto é eficaz a palavra do Cristo. Se, pois, existe tamanha força na Palavra do Senhor Jesus, a ponto de começarem as coisas que antes não existiam, quanto mais eficaz não deve ser para que continuem a existir as que eram, e sejam mudadas em outra coisa? O céu não existia, não existia o mar, não existia a terra, mas ouve a Davi que diz: Disse ele e foram feitas, deu ordem e foram criadas.
16 Assim, pois, para dar-te uma resposta, antes da consagração não era o corpo de Cristo, mas após a consagração, posso afirmar-te que já é o corpo de Cristo. Ele falou, e foi feito, Ele deu ordem, e foi criado. Tu mesmo existias, mas eras uma antiga criatura; depois de seres consagrado, começaste a ser nova criatura. Queres saber quanto é nova a criatura? Todo aquele que está no Cristo, diz-se, é nova criatura.
17 Escuta, pois, como a palavra do Cristo costuma mudar todas as criaturas e muda, quando quer, as leis da natureza. Tu perguntas: como? Escuta e, em primeiríssimo lugar, tomemos o exemplo que nos vem da geração: normalmente não é gerado um homem, a não ser por um homem e uma mulher, em consequência das relações conjugais. Mas, porque o Senhor o quis, porque escolheu este mistério, nasceu do2 e da Virgem, Cristo, isto é, o Mediador entre Deus e os homens, o Homem3. Vês, pois, que, contrariamente às leis e à ordem da natureza, um homem é nascido de uma Virgem.
18 Escuta um outro exemplo. O Povo de Israel era pressionado pelos egípcios; estava cercado pelo mar. Por ordem de Deus, Moisés tocou as águas com um bastão e a corrente se dividiu claro, não segundo seu hábito natural, mas segundo a graça de uma ordem celeste. Escuta outro exemplo: o povo tinha sede; chegou a uma fonte. A fonte era amarga. São Moisés colocou um lenho na fonte, e esta, que era amarga, tornou-se doce, quer dizer, mudou o hábito natural e recebeu a doçura da graça.m Escuta ainda um quarto exemplo: O ferro de uma machadinha caíra n’água, afundou como ferro, segundo a sua natureza. Eliseu lançou um lenho n’água, imediatamente o ferro subiu e boiou por sobre as águas4, evidentemente contra o hábito do ferro, pois é matéria mais pesada do que o elemento das águas.
19 Não percebes, desses exemplos todos, quanto realiza a Palavra celeste? Se ela atuou numa fonte terrestre, se a palavra do céu atuou em outras coisas, não atuaria ela nos sacramentos celestes? Assim aprendeste que do pão se faz o Corpo de Cristo e que é vinho — e água — que se coloca no cálice, mas pela consagração celeste se torna sangue.
20 Talvez digas ainda: não vejo a aparência do sangue. Mas é dele o símbolo5. Da mesma forma como aceitaste o símbolo da morte6, assim também bebes o símbolo do precioso sangue, a fim de que não haja nenhuma repugnância pelo sangue que corre e que, no entanto, se produza o preço da redenção. Aprendeste, pois, que aquilo que recebes é o Corpo de Cristo.
21 Desejas saber como por palavras celestes se consagra? Eis as palavras: Concede-nos, diz o sacerdote, que esta oferenda seja aprovada, espiritual7.)), agradável, porque é a figura do corpo e do sangue de Nosso Senhor8, que na véspera de sua Paixão tomou o pão em suas santas mãos, levantou os olhos ao céu, para Ti, Pai Santo, Deus Onipotente e Eterno, abençoou dando graças, o partiu e depois de partir deu aos apóstolos e a seus discípulos, dizendo: Recebei e comei todos dele, pois isto é o meu corpo, que será rompido em favor de muitos.
22 Continua atento: Da mesma forma, também tomou o cálice, depois da ceia, às vésperas de sua Paixão, levantou os olhos ao céu, para Ti, Pai Santo, Deus Onipotente e Eterno, abençoou dando graças, e entregou-o aos apóstolos e a seus discípulos, dizendo: Recebei e bebei dele todos, pois isto é o meu sangue. Vê, todas estas palavras são do evangelista, até recebei o corpo ou o sangue; a partir daí são palavras de Cristo: Recebei e bebei dele todos, pois isto é o meu sangue.
23 Repara ainda em cada pormenor. Nas vésperas da paixão, diz-se aí, tomou o pão em suas santas mãos. Antes que seja consagrado é pão; quando, no entanto, sobrevêm as palavras de Cristo, é o Corpo de Cristo. Ouve-o, enfim, dizer: Recebei e comei todos dele, pois isto é o meu corpo. Também antes das palavras de Cristo é cálice cheio de vinho e água; quando as palavras de Cristo produziram efeito, aquilo se torna sangue para a redenção do povo. Vede, pois, de que maneiras a Palavra de Cristo é capaz de transformar tudo. Acresce que foi o próprio Senhor Jesus que no-lo garantiu: recebemos o seu corpo e sangue. Deveríamos, por acaso, duvidar da autoridade e do testemunho dele?
24 Volta, agora, comigo para o assunto que temos em vista. Foi, sem dúvida, grande coisa e digna de respeito o maná ter caído do céu como chuva, em favor dos judeus. Mas reflete: o que é maior, o maná do céu ou o corpo de Cristo? Evidentemente, o corpo de Cristo, que é o autor do céu. Afinal, quem comeu o maná morreu; quem comer este corpo receberá a remissão dos pecados e nunca mais morrerá.
25 Não é, pois, sem motivo que tu dizes: Amém, reconhecendo já, em espírito, que recebes o corpo de Cristo. Quando te apresentas para pedi-lo, o sacerdote te diz: Corpo de Cristo. E tu respondes: Amém, quer dizer, É verdade. Aquilo que a língua confessa, conserve-o o afeto. No entanto, para saberes: é este o sacramento, precedido pela figura.
26 Reconhece ainda a grandeza deste sacramento. Repara no que Ele diz: Cada vez que o fizerdes, fá-lo-eis em minha memória, até que eu volte.
27 E o sacerdote acrescenta: Lembrando-nos, pois, de sua gloriosíssima Paixão e da Ressurreição dos infernos e da Ascensão ao céu, nós Te oferecemos esta Hóstia imaculada, Hóstia espiritual, Hóstia incruenta, este pão santo e o cálice de vida eterna9, e Te pedimos e suplicamos que recebas esta oblação pelas mãos dos teus anjos no teu10 do alto, assim como Te dignaste receber os dons de Teu servo o justo Abel e o sacrifício de nosso Patriarca Abraão, como também Te ofereceu o sumo-sacerdote Melquisedeque11.
28 Cada vez, pois, que o recebes, que te diz o Apóstolo? Cada vez que o recebemos, anunciamos a morte do Senhor. Se anunciamos a morte do Senhor, anunciamos a remissão dos pecados. Se cada vez que se derrama o sangue, ele se derrama para a remissão dos pecados, devo recebê-lo sempre, para que sempre me perdoe os pecados. Eu, que sempre peco, devo ter sempre o remédio.
29 Até o momento, e também hoje, explicamos o que foi possível. Mas amanhã e sábado, como também domingo, falaremos da oração do Senhor e da ordem de rezar, quanto for possível. Que o Senhor, nosso Deus, vos conserve a graça que vos deu e que vos abra sempre mais os olhos que se dignou iluminar pelo seu Filho único, Rei e Salvador, Senhor e Deus nosso, por Quem e com Quem recebe louvor, honra, glória, majestade, poder, com o12, desde sempre, agora e para sempre, pelos séculos dos séculos. Amém.
NOTAS:
Jesus Cristo ↩
Cf. 2Rs 6,5-6. Esses três milagres já foram citados: I, 12.20; II. 11-12, como símbolos do batismo. Aqui aparecem como provas do poder da Palavra do Senhor. Myxt. 51 acrescenta o bastão mudado em serpente (Êx 4,3-4), o rio mudado em sangue (Êx 7,19-21), o Jordão que volta à fonte (Jos 3,10) e o rochedo de Horeb (Êx 17,6). ↩
Para o sentido de similitudo, como também de figura (21) e antitypus em Hipólito, Trad. Apost., Ed. Vozes, 1972, nn. 54, 56, 84, ver A. Wilmart, Transligurare, ein Bulletin d’Ancienne Littérature et d’Archéologie Chrétienne 1 (1911), p. 280. ↩
O pão consagrado é símbolo da morte de Cristo. O vinho consagrado é símbolo da aliança estabelecida no sangue de Cristo. Duas etapas integrantes do mesmo ato salvífico: a libertação pela morte, e a aliança pelo sangue. Símbolo, originalmente, era uma téssera. um cartão composto de duas parles, que era válido quando as duas partes de novo se reuniam, porque só então aparecia no símbolo a imagem com cujo sinal alguém, por exemplo, era admitido a um banquete. O valor do símbolo não está no que se encontra em si mesmo, mas no que acontece pela sua composição renovada. Símbolo, na Eucaristia, é a composição do elemento material exterior e do elemento interior que por aquele se torna presente. As coisas visíveis recebendo em si a graça salvífica do sacrifício de Cristo tornam-se “símbolos” do corpo e do sangue. ↩
Rationabilis, corresponde a ((logikos ↩
Jesus Cristo ↩
Esta primeira parte constitui a anamnese, cf. H. Lietzmann, Messe und Herrenmahl, Bonn, 1936, PP. 50-68 ↩
altar ↩
Esta oração corresponde ao Supra quae e ao Supplices da antiga Missa romana. A respeito da intervenção dos anjos, ver B. Botte, “L’Ange du sacrifice”, em Cours et conférences des Semaines Liturgiques, Lovaina, 1929, T.V. PP. 209-221 e Recherches de Théologie Ancienne et Mediévale, 1 (1929), PP. 285-308 (para a Idade Média). Quanto ao título de Sumo-Sacerdote atribuído a Melquisedeque, é impossível querer explicá-lo, como se fora má tradução do texto grego, pois também se encontra na Const. Apost. VIII, 12. ↩