Tradução de D. Paulo Evaristo Arns
OS SACRAMENTOS E OS MISTÉRIOS
Livro Primeiro
1 Nesta hora, daremos início à explicação dos Sacramentos que acabais de receber. Não convinha antecipá-la, pois, para o cristão, a fé antecede todo o mais. Por isso mesmo, em Roma, são chamados “homens de fé” os que foram batizados. Também nosso Pai Abraão foi justificado pela fé, e não pelas obras. Concluiríamos assim: recebestes o Batismo, tendes fé. Não seria justo que eu julgasse de outra forma, pois não terias sido chamado para a graça, caso o Cristo não te tivesse julgado digno por sua graça.
2 Que é que fizemos, pois, no sábado? Foi a abertura. Estes mistérios da abertura foram celebrados na hora em que o Bispo tocou teus ouvidos e narinas. O que é que isto significa? No Evangelho, Nosso Senhor3, ao ser-lhe apresentado um surdo e mudo, tocou os ouvidos e a boca. Os ouvidos, porque era surdo. A boca, porque mudo. Exclamou então: “Effetha!”, palavra hebraica que significa: “Abre-te!” Foi por isso que o Bispo tocou teus ouvidos, para que eles se abrissem à palavra e à alocução do Bispo.
3 Tu, porém, me perguntas: Por que as narinas? Naquela cena, tocou a boca porque era mudo, e para que recebesse a voz de Cristo, uma vez que era incapaz de pronunciar os mistérios celestes. Tocou a boca por tratar-se de homem. Aqui, toca as narinas — pois batizam-se mulheres; acresce ainda que a pureza do servo (Bispo), não é tão grande quanto a do Senhor, uma vez que este perdoa os pecados, enquanto ao servo, se lhe perdoa. Como pois compará-los entre si? Significando a graça do ato e da função, o Bispo não toca a boca, e sim as narinas. Por que as narinas? Para perceberes o fino odor da bondade eterna, e dizeres: Somos o fino odor de Cristo para Deus’, como se exprimiu o Santo Apóstolo. E ainda para que haja em ti total irradiação perfumada de fé e devoção.
4 Chegamos à fonte. Entraste. Foste ungido. Considera a quem viste, pensa no que disseste e recorda com exatidão o que aconteceu. Um levita te acolheu; acolheu-te um presbítero. Foste ungido como atleta de Cristo. Aprestando-te para a luta deste século, te empenhaste de público nos exercícios do combate. Aquele que luta tem o que esperar. Onde há combate, há coroa.
Lutas no mundo, mas és coroado por Cristo e é pelos combates neste mundo que és coroado. Embora a recompensa se dê no céu, é aqui no entanto que se estabelece, se mereces ou não o prêmio.
5 Quando te perguntaram: Renuncias ao diabo e às suas obras?, que respondeste? — Renuncio. Renuncias ao mundo e a seus prazeres?, que respondeste? — Renuncio. Lembra-te de tua promessa, e não te esqueças jamais das consequências de tua palavra empenhada. Na hora em que se entregam as promissórias assinadas a alguém, estabelece-se um compromisso; para se receber o dinheiro dele, está-se vinculado; e na hora do protesto, o credor coage. Caso alguém recuse, será levado a juízo e autuado pela garantia que deu.
6 Considera onde fizeste a promessa e a quem a fizeste. Viste um levita; é ministro de Cristo. Viste-o desempenhar o ministério diante do4. Portanto, a letra assinada não é guardada na terra, mas no céu. Considera o lugar em que recebes os sacramentos celestiais. Se aqui se encontra o Corpo de Cristo, também aqui estão presentes os anjos: onde se acha o cadáver, lá igualmente se ajuntam as águias, leste no Evangelho. No lugar em que se encontra o Corpo de Cristo, lá também costumam sobrevoar as águias, para fugirem ao que é terreno e se lançarem ao encontro do que é celeste. Por que digo isso? Porque também os homens, sempre que anunciam o Cristo, são anjos, e parecem destinados a tomar o lugar dos anjos.
7 Como? Repara no que segue: O Batista era João, nascido de homem e de mulher. No entanto, escuta como também ele é anjo: Eis que envio o meu anjo diante de tua face; preparar-te-á o caminho. Vê ainda outro exemplo. O Profeta Malaquiel diz que os lábios do sacerdote guardam a ciência e de sua boca se reclamará a lei, porque ele é o anjo de Deus Onipotente. Arrolamos esses fatos para pormos em evidência o esplendor do sacerdócio e não para que se atribua o que quer que seja a nossos méritos pessoais.
8 Portanto, renunciaste ao mundo, renunciaste ao século. Sê vigilante. Aquele que tem dívida respeita sempre a caução. Por conseguinte, tu que deves a fé ao Cristo guarda esta fé, muito mais preciosa que o dinheiro. De fato, a fé equivale a um patrimônio eterno; o dinheiro, a um patrimônio temporal. Lembra-te, pois, também tu, continuamente, daquilo que prometeste, e serás mais prudente. Se guardares tua promessa, guardarás também a caução.
9 Em seguida, te aproximaste mais; viste a fonte e viste também o Bispo junto a ela. Parece fora de dúvida que, em vosso espírito, tenha acontecido o que aconteceu no de Neman, o Sírio: pois, embora tenha sido purificado, não deixou de ter inicialmente suas dúvidas. Por quê? É o que passo a explicar. Ouve:
10 Entraste. Viste a água. Viste o Bispo. Viste o levita.” Alguns talvez digam: E é tudo? De fato: é tudo. Onde se encontra a inocência toda, está tudo: a piedade toda, toda a graça e toda a santificação. Viste o que pudeste ver com os olhos do corpo e os olhares humanos. Não viste, porém, o que se produziu, apenas o que aparece. As coisas que não se veem são muito maiores do que as que se veem, porque as que se veem são temporais, as que não se veem, porém, eternas.
11 Comecemos, então, por aí. Guarda a caução da minha palavra e acompanha-me até o fim: admiramos os mistérios dos judeus, confiados aos nossos pais. Para começar, são eles extremamente valiosos, já pela antiguidade dos sacramentos. E, além disso, pela santidade. Repara, no entanto, que te colocamos diante dos olhos sacramentos cristãos, mais divinos e mais antigos que os dos judeus.
12 Existiria algo mais importante do que a travessia do Mar pelo povo judeu, para exaltarmos nesta hora o batismo? O confronto começa por aí: os judeus que atravessaram o Mar morreram todos no deserto; aquele no entanto que atravessa esta fonte, isto é, que passa das coisas terrenas para as celestiais — afinal é uma passagem, por isso, páscoa, trânsito, quer dizer, trânsito de quem passa do pecado para a vida, da culpa para a graça, da imundície para a santificação. O que passa por esta fonte — é certo — não morre, mas ressuscita.
- LIVRO I, 13-24
- LIVRO IV