Ambrósio de Milão — Comentário sobre São Lucas
Primeiras palavras de Jesus no Templo (Lc 2, 41-52)
Contribuição e tradução de Antonio Carneiro das páginas 121, 122, 123 e 124.
Obras de San Ambrosio, I, Tratado sobre el Evangelio de San Lucas, Biblioteca de Autores Cristianos (BAC), Madrid, 1966, 655 p., edición bilingüe preparada por el padre Manuel Garrido Bonaño, O.S.B.
S. Ambrósio — Lc 2, 41-52. — Jesus no meio dos doutores
“Jesus progredía em sabedoria e em estatura, e em graça diante de Deus e dos homens”.
63. “E quando chegou a idade de doze anos” . Aos doze anos, segundo lemos, é quando começaram os ensinamentos do Senhor; pois um mesmo número de mensageiros se reservaram para a predicação da fé. Não sem motivo, esquecendo-se de seus pais segundo a carne, o que, ainda em sua carne mortal, estava cheio de sabedoria de Deus e de sua graça, ao fim de três dias foi encontrado no templo, como sinal de que aos três dias de sua paixão triunfante, ressuscitado, devia apresentar-se a nossa fé sobre o trono do céu e entre as honras divinas aquele que foi acreditado como morto1.
64. “Porque me procuráveis ? Não sabíeis que devo dedicar-me aos assuntos de meu Pai ? ” Existem em Cristo duas filiações: uma é de seu Pai, e outra de sua Mãe. A primeira, por seu Pai, é toda divina, enquanto que por sua Mãe desceu a nossos trabalhos e costumes. Pelo mesmo, o que ultrapassa a natureza, a idade, o costume, não há de ser atribuído às faculdades humanas, mas sim referido às energias divinas. Em outro lugar, a mãe lhe impulsiona a fazer algo misterioso (milagroso) (Jo 2,3); aqui a mãe é repreendida por exigir todavia algo humano. Mas, como aqui se lhe mostra na idade de doze anos, lá se nos diz que tinha discípulos, observa que a Mãe aprendeu do Filho a exigir o mistério em sua maioridade, a que se admirava do milagre no mais jovem2.
65. “E veio à Nazaré e lhes estava submisso” . Mestre da virtude, poderia não cumprir seus deveres de piedade filial ? E nos é estranho para nós suas deferências para com o Pai se submete-se à Mãe ? Não é sua debilidade, mas sim sua piedade a que faz esta dependência, ainda que, saindo de seu antro tortuoso, a serpente do erro levante a cabeça e, de suas entranhas viperinas, vomitasse o veneno. Quando o Filho se chama “enviado” , o herege chama maior ao Pai, para declarar imperfeito à este Filho que pode ter Alguém maior que Ele, para afirmar que tem necessidade de socorros estranhos, posto que foi “enviado”3. Necessitava acaso um auxílio humano para servir ao mandato materno ? era deferente com o homem, era deferente com a escrava — pois ela disse de si: “Eis aqui a escrava do Senhor” — , era deferente com seu pai putativo; porque estranha sua deferência para com Deus ? Seria, pois, ser deferente para com o homem piedade, e para com Deus debilidade ? Que ao menos o humano te faça apreciar o divino e reconhecer que amor é devido à um pai. “O Pai honra ao Filho” (Jo 8,54), não queres que o filho honre ao Pai ? O Pai, falando desde o céu, declara que se compraz em seu Filho, não queres que o filho, coberto com o vestido de uma carne humana, expressando na linguagem do homem um sentimento humano, declare à seu Pai maior que Ele ? Pois se “o Senhor é grande, e digno de toda louvação, e sua grandeza não tem fim ” (Sl 144,3), é certo que uma grandeza que não tem fim não pode receber aumento. Mas, por que não entender e admitir com espírito religioso a obediência do Filho para com o Pai no corpo que tomou, quando admito religiosamente a homenagem do Pai para com o Filho ?
66. Aprende melhor os preceitos que te serão úteis e reconhece os exemplos de piedade filial. Aprende o que deves fazer com teus pais ao ler que o Filho não se separa do Pai nem pela vontade, nem pela atividade, nem no tempo. Ainda que sejam duas pessoas, pelo poder não mais que Um. E este Pai celestial não experimentou os trabalhos da geração; tu, por outro lado, deves atua mãe a perda de sua integridade, o sacrifício de sua virgindade, os perigos do parto; a tua mãe as fadigas prolongadas4, pois a pobre, nestes frutos tão desejados, corre muito mais perigo, e o nascimento que desejou a livra do trabalho, não de seus temores. Que dizer do cuidado dos pais pela educação dos filhos, de suas cargas multiplicadas pelas necessidades de outros, das sementes lançadas pelo trabalho e que aproveitarão as gerações seguintes ? Não deve exigir tudo isto ao menos alguma submissão ? Como encontra o ingrato que seu pai vive demasiado tempo e lhe incomoda a comunidade de patrimônio, quando Cristo não desprezou os herdeiros ?
Aqui Santo Ambrósio parece mostrar também que Cristo subiu ao céu o mesmo dia da ressurreição, como já vimos no texto antes citado do pseudo Barnabé. Modernamente, o P.Braun,O.P., recordou também isso: “Se tem razão em dizer que a subida de Jesus para seu Pai precede às aparições aos apóstolos…Ressurreição e Ascensão tem de ser aproximadas uma da outra muito mais estritamente do que se costuma fazer…São como dois aspectos inseparáveis de um mesmo mistério.” (Gesú p. 234-240). Baseado nisso, insiste D. Barsotti : “O relato dos Atos dos Apóstolos não quer significar que Jesus não subiu todavia à direita de Deus, não entrou todavia em possessão da glória divina; mas sim quer mostrar-nos que, terminado o período estabelecido pela Providência para as manifestações de Jesus ressuscitado aos discípulos, com o ato de subir aos céus se subtraía Ele definitivamente a seus discípulos” (“Misterio cristiano y año litúrgico” . Ed. “española” (Salamanca 1965), p.170. ↩
Há que confessar que se trata de uma passagem difícil, sobre o que se deram muitas explicações. Possivelmente, o texto não foi bem conservado. No entanto, não se pode seguir a famosa edição romana, reproduzida no Breviário no domingo seguinte à festa da Epifania ou na festa da Sagrada Família, onde se diz: “ ne exigeret” em vez de “ ut exigeret” , pois todos os manuscritos trazem “ ut exigeret” . Por isso não se pode seguir a engenhosa interpretação que D.J. Hessing propos para toda esta passagem (cf. “ Ephemerides liturgicae” 65 [1951], pp.191-193). ↩
É uma clara alusão à heresia ariana; precisamente estes argumentos bíblicos interpretados à seu modo, são os que aduziam, mas foram rebatidos pelos Padres que se enfrentaram com a heresia, principalmente por São Atanásio. ↩
Inspirado nas Bucólicas de Virgílio, 4,61. ↩