Agrapha [SOEA]

Contribuição e tradução de Antonio Carneiro

Los Evangelios Apócrifos, Biblioteca de Autores Cristianos, Estudios y Ensayos (BAC-Teologia), Madrid, 2006, estudios introductorios y versión de los textos originales por Aurelio de Santos Otero, licensiado en teología, doctor en filología eslava y oriental , 5a. impresión, 417 p., ISBN 84-7914-504-8.

VIDE: AGRAPHA CANÔNICOS; VARIANTES DOS MANUSCRITOS EVANGÉLICOS; AGRAPHA CITADOS PELOS PADRES; AGRAPHA DE ORIGEM MUÇULMANA

“Agrapha”

O interesse por encontrar ditos ou feitos de Jesus não consignados nos quatro evangelhos canônicos emerge com diversos graus de intensidade logo nos primeiros séculos do cristianismo. De fato, já constatava São João no final de seu Evangelho que se fosse tentar recolher tudo o que fez Jesus ao longo de sua vida, os livros para realizar isso “não caberiam no mundo todo” . A este interesse primigênio responde também a literatura apócrifa em geral, se bem que aqui a fabulação e a defesa de determinadas correntes ideológicas tem mais peso que a busca desinteressada da mensagem desconhecida de Jesus.

É a partir do século XVII quando se cunham os termos de “logia” (= ditos) e “agrapha” (= não escritos), referindo-se ao conjunto de palavras de Jesus que se podem encontrar dispersas em diversas fontes antigas, alheias aos quatro evangelhos. Ainda que ambas expressões sejam complementares, é comum empregar a palavra “logia” para referir-se aos ditos extra-canônicos de Jesus que foram se encontrando em diversos fragmentos de papiros de grande antiguidade — como os já resenhados de Oxyrhynchus, Fayum, Egerton, etc. — , enquanto que “agrapha” tem uma significação mais ampla, que compreende muitas outras fontes da tradição.

Sobre o interesse que despertou este tema no mundo científico pode o leitor fazer uma ideia consultando a ampla bibliografia que incluímos na edição bilíngue desta obra. As discrepâncias na definição geral e avaliação concreta de cada um de seus componentes saltam também à vista, tendo em conta que do material imenso de “agrapha” que recolheu A. Resch em 1889, não são muito mais de meia dúzia dos que a juízo de Hofius em 1990 oferecem alguma garantia de autenticidade (vide bibliografia).

Com toda a importância que possa ter esta questão da “autenticidade” , cremos que em uma coleção de “apócrifos” como a presente não deve faltar uma relação representativa dos “ditos” que se atribuíram a Jesus durante os primeiros séculos, ainda que em muitos casos sua autenticidade seja duvidosa ou dificilmente verificável.

Excluímos desta separata, por razões óbvias, os “agrapha-logia” já contidos em outros capítulos desta obra, por exemplo, evangelhos apócrifos, fragmentos de papiros, etc. Descartamos também — por sua insignificância — os que podem encontrar em fontes judaicas, como a “Mischna” ou o “Talmud” , para centralizar nossa atenção em quatro grupos distintos de “ditos de Jesus” com acerto à diversidade de sua procedência:

I. “Agrapha” canônicos extra-evangélicos (n. 1-5). Trata-se de ditos de Jesus não consignados nos quatro evangelhos, mas sim em outros lugares do Novo Testamento, por exemplo nos Atos dos Apóstolos, nas Epístolas de São Paulo ou no Apocalipse. Sua autenticidade é, naturalmente, a mesma que a dos escritos de onde procedem.

II. Variantes dos manuscritos evangélicos (n. 6-12). É sabido que para obter um texto fiável dos quatro evangelhos tem sido necessário colecionar um grande número de manuscritos gregos de diversas épocas e pertencentes a diferentes famílias. Cada um destes códices apresenta uma quantidade de variantes de diverso gêneros com respeito à leitura creditada pelos melhores testemunhos. Estas “variantes” — que muitas vezes constituem também acréscimos ao texto canônico — são um grande canteiro de “agrapha” de variada índole. Um dos exemplos mais interessantes é o chamado “Logion de Freer” [nota abaixo], que se encontra no códice W (manuscrito uncial do século V), e é na realidade uma interpolação entre os versículos 14 e 15 do c.16 de São Marcos (n.7). Nele se reproduz um diálogo entre Jesus ressuscitado e os apóstolos, parecido em sua estrutura ao que serve de marco e ponto de partida para numerosas obras da literatura gnóstica.

III. “Agrapha” citados pelos Padres (n. 13-38). É este o grupo mais numeroso, já que compreende “ditos de Jesus” cujo ponto de referência se encontra disseminado por todo o âmbito da literatura cristã antiga. Escritores do século II e III — como Justino, Irineu, Hipólito, Orígenes, Clemente e Dídimo de Alexandria — estão temporalmente longe das fontes evangélicas, mas são os que mais “agrapha” trazem em suas obras. Mais próximos às origens são os escritos da era apostólica, mas são poucos os “ditos de Jesus” extra-canônicos que nos foram conservados (n.13, 34-36), e mesmo estes nem sempre identificáveis com absoluta segurança como “palavras de Jesus” .

IV. “Agrapha” de origem muçulmana (n. 39-51). A ascética e mística muçulmana fazem referências com frequência à Jesus e aduz numerosas sentenças como “ditos” deste. Não tem isso nada de particular. uma vez que os representantes “muslines”1 destas correntes recorrem não poucas vezes à mensagem evangélica como fonte de inspiração. As possibilidades, no entanto, de encontrar autênticos “agrapha” neste campo são muito remotas, seja porque a época de composição dos escritos correspondentes é muito recente (a maior parte data dos séculos XI e XII), seja porque a forma em que se apresentam estes “ditos” atribuídos à Jesus seja em geral meras adaptações dos temas tratados por seus autores. A coleção mais ampla destes “agrapha” foi publicada em 1916 por Miguel Asín Palácios (vide bibliografia): dela extraímos alguns exemplos.

Bibliografia:
A.RESCH,“Agrapha”/“Aussercanonische Evangelienfragmente” Texte u. Untersuchungen V,4 (Leipzig 1889, reimp. Darmstad 1967).L.VAGANAY, “Agrapha” , em “Dictionnaire de la Bible” (Suppl.I) 1928, pp.159-198.Miguel ASÍN PALÁCIOS, “Logia e agrapha Domini Jesu apud Moslemocos scriptores, asceticos praesertim usiata”, em “Patrologia Orientalis” t. 13,2 ,1916; t. 19,4, 1926.J.JEREMIAS,“Unbekannte Jesusworte/Unter Mitwirkung von O. Hofius völlig neu bearbeitete Auflage” (Gütersloh 1965); Wilson, pp.322-323

H.HOFIUS, em “Schneemelcher” , I, pp.76-79


NOTAS DO TRADUTOR

Logion de Freer

Conhecido parcialmente por Jerônimo e por um só manuscrito o codex de Freer (W), daí que veio o “Logion de Freer” dado à esta passagem. Trata-se do “Final longo” – uma inserção do versículo 14bis entre os versículos 14 e 15 consistindo em um diálogo entre Jésus e seus discípulos. O “Final longo” é representado por sua vez pelo texto bizantino e uma parte do texto ocidental, faz parte do texto recebido e foi reconhecido como canônico pelo concílio de Trento.

Conteúdo do “Final longo” :

versículos 9-13 : resumidos dos dois primeiros episódios de Páscoa (aparição à Maria de Magdala e aos discipulos d’Emmaüs)
versículos 14-16 : resumido do terceiro episódio (aparição aos Onze)
versículos 17-18 : cinco signos dados aos fiéis
expulsar os demônios
falar em línguas novas
tomar as serpentes nas mãos
beber um veneno mortal
impor as mãos aos doentes
versículos 19-20 : ascensão de Jesus ao céu e predicação missionária

Este relato está em ruptura com o versículo 8, pois o anjo e as mulheres desaparecem em proveito de Jesus e não há transição. O estilo e vocabulário diferem do resto do Evangelho de Marcos. Certos testemunhos distinguem bem os dois finais. Entretanto, o final longo é atestado desde a metade do século II (cf. testemunho dos Padres).Grande final : Este texto, com teor gnóstico, consiste em uma objeção dos discípulos e em uma resposta do Cristo redigida em estilo apocalíptico e com vocabulário abstrato, fortemente diferente do resto do evangelho de Marcos.

14bis Estes dizem por sua defesa: “Este século de impiedade e de incredulidade está sob o poder de Satan que não permite que a verdade e o poder de Deus sejam recebidos pelos espíritos impuros; é porque revela desde agora tua justiça.” diziam isto ao Cristo e o Cristo lhes respondeu: “O termo dos anos de poder de Satan se cumpriu, mas outras coisas terríveis se aproximam. E eu-mesmo fui entregue à morte por aqueles que pecaram a fim de que se convertessem à verdade e não pecassem mais a partir d’ agora, a fim de que herdassem a glória, a justiça espiritual e incorruptível que está no céu.”

Esse texto em português foi baseado na tradução em francês apresentada a seguir:

(14bis Ceux-ci dirent pour leur défense : “Ce siècle d’impiété et d’incrédulité est sous le pouvoir de Satan qui ne permet pas que la vérité et la puissance de Dieu soient reçues par les esprits impurs ; c’est pourquoi révèle dès maintenant ta justice.” Ils disaient cela au Christ et le Christ leur répondit : “Le terme des années du pouvoir de Satan est accompli, mais d’autres choses terribles approchent. Et moi-même j’ai été livré à la mort pour ceux qui ont péché afin qu’ils se convertissent à la vérité et qu’ils ne pèchent plus désormais, afin qu’ils héritent de la gloire, de la justice spirituelle et incorruptible qui est dans le ciel.”)

Observação: o Códice de Freer é derivado da “Vetux latina Africana” . Conhecido como “Freerianus” (W 032), IV-V séculos, Contém os quatro evangelhos na ordem Mt-Jo-LcMc. A passagem de Lc 3;23-38 está ausente. A parte final de Marcos está do tipo longo e contém o “Logion de Freer” .

Particularidades : Foi comprado por Freer em 1906 de um comerciante árabe. Ausência de genealogia (Lc 3,23-38) e adição no final de Mc da chamada “logion de Freer” . Está localizado em Washington, DC, EUA, Smiesonian Institution, Freer Museum, no inventário 06.274. Tipo mixto Mt e Lc 3,13 — fim: bizantino; Jo e início de Lc: alexandrino; Mc: intermediário entre o ocidental e o cesaréio.

 


  1. Muslim, feminino “muslima”, significa “ o que se submete” , e implica na completa submissão à vontade de Deus.