Agostinho: verdade

Estreita é a casa de minha alma para que venhas até ela: que seja por ti dilatada. Está em ruínas; restaura-a. Há nela nódoas que ofendem o teu olhar: confesso-o, pois eu o sei; porém, quem haverá de purificá-la? A quem clamarei senão a ti? Livra-me, Senhor, dos pecados ocultos, e perdoa a teu servo os alheios! Creio, e por isso falo. Tu o sabes, Senhor. Acaso não confessei diante de ti meus delitos contra mim, ó meu Deus? E não me perdoaste a impiedade de meu coração? Não quero contender em juízos contigo, que és a VERDADE, e não quero enganar-me a mim mesmo, para que não se engane a si mesma minha iniquidade. Não quero contender em juízos contigo, porque, se dás atenção às iniquidades, Senhor, quem, Senhor, subsistirá? Confissões I, V

Então eu já existia, já vivia de VERDADE; e, já no fim da infância procurava sinais com que pudesse exprimir aos outros as coisas que sentia. Com efeito, de onde poderia vir semelhante criatura, senão de ti, Senhor? Acaso alguém pode ser artífice de si mesmo? Porventura existirá algum outro manancial por onde corra até nos o ser e a vida, diferente da que nos dais, Senhor, tu em quem ser e vida não são coisas distintas, porque és o Sumo Ser e a Suprema Vida? Com efeito, és sumo, e não te mudas, nem caminha para ti o dia de hoje, apesar de caminhar por ti, apesar de estarem em ti com certeza todas estas coisas, que não teriam caminho por onde passar se não as contivesses. E porque teus anos não fenecem, teus anos são um perpétuo hoje. Oh! Quantos dias nossos e de nossos pais já passaram por este teu hoje, e dele receberam sua duração, e de alguma maneira existiram, e quantos passarão ainda, e receberão seu modo, e seu ser? Mas tu és sempre o mesmo, e todas as coisas de amanhã e do futuro, e todas as coisas de ontem e do passado, nesse hoje as fazes, nesse hoje as fizeste. Confissões I, VI

Porventura, Senhor, haverá alguma alma tão grande, unida a ti com tão ardente afeto, pois isto também pode ser produzido pela estultice — repito, uma alma que alcance tal grandeza de ânimo que despreze os cavaletes e garfos de ferro, e os demais instrumentos de martírio — para fugir dos quais se te dirigem súplicas de todas as partes do mundo? Haverá uma alma que assim os despreze — rindo-se dos que têm deles tanto horror — como se riam nossos pais dos tormentos que éramos castigados por nossos mestres quando meninos? Porque, na VERDADE, não os temíamos menos, nem te rogávamos com menor fervor para que nos livrasses deles. Confissões I, IX

Aquelas primeiras letras, pelas quais podia, como ainda faço, chegar e ler tudo o que há escrito e a escrever tudo o que quero, eram melhores e mais úteis que aquelas outras nas quais me obrigavam a decorar os erros de um tal Eneias, esquecido dos meus, e a chorar a morte de Dido, que se suicidou por amor, enquanto isso, eu, miserabilíssimo, suportava a minha própria morte com olhos enxutos, morrendo para ti, ó meu Deus, minha vida! Na VERDADE, que pode haver de mais miserável do que um infeliz que não se compadece de si mesmo e que, chorando a morte de Dido por amor de Eneias, não chora sua própria morte por falta de amor a ti, ó Deus, luz de meu coração, pão interior de minha alma, virtude fecundante de meu pensamento? Não te amava; prevaricava longe de ti, e ouvia de todas as partes: “Muito bem! Muito bem!” — porque a amizade deste mundo é adultério contra ti; e se aclamam a alguém dizendo: “Muito bem! Muito bem!” — é para que este não se envergonhe de ser assim. Eu não chorava estas faltas, chorava a morte de Dido “que se suicidou com a espada”, eu procurava as últimas de tuas criaturas, abandonando-te a ti, como terra que eu era, atraída pela terra. Se então me proibissem a leitura de tais coisas, me afligiriam por não ler aquilo que me comovia até a dor. Confissões I, XIII

Mas agora, meu Deus, grite em minha alma tua VERDADE, e diga: Não é assim, não é assim, antes, aquela primeira instrução é absolutamente superior; pois eu preferiria esquecer todas as aventuras de Eneias, e outras histórias semelhantes, do que o saber ler e escrever. Sei que nas escolas dos gramáticos pendem cortinas às portas; porém, servem menos para velar o segredo que para encobrir o erro. Confissões I, XIII

Não gritem contra mim aqueles mestres a quem já não temo, enquanto confesso a ti os desejos de minha alma, e aborreço dos meus maus caminhos, a fim de amar os teus. Não gritem contra mim os comerciantes da gramática, pois, se eu os interrogar sobre se é VERDADE que Eneias veio uma vez a Cartago, como afirma o poeta, os néscios responderão que não sabem, e os sábios negarão o fato. Porém, se lhes perguntar como se escreve o nome de Eneias, todos os que estudaram me responderão a mesma coisa, de acordo com a convenção com que os homens fixaram o valor das letras do alfabeto. Confissões I, XIII

Eu ainda não conhecia nenhuma palavra daquela língua, e já me obrigavam com veemência, com crueldades e terríveis castigos, a aprendê-la. Na VERDADE, eu, ainda criança, também não conhecia nenhuma palavra de latim; contudo, com um pouco de atenção, o aprendi entre o carinho das amas, os gracejos dos que se riam e as alegrias dos que brincavam, sem medo algum nem tormento. Eu o aprendi, sem a pressão dos castigos, impelido unicamente por meu coração desejoso de dar à luz seus sentimentos, e o único caminho para isso era aprender algumas palavras, não dos que as ensinavam, mas do que falavam, em cujos ouvidos ia eu depositando quanto sentia. Confissões I, XIV

Pois é, Senhor, meu rei e meu Deus, e a ti consagro quanto falo, escrevo, leio e conto, pois quando aprendia aquelas futilidades, tu eras o que me davas a verdadeira disciplina, e já me perdoaste os pecados de deleite cometidos naquelas vaidades. Muitas palavras úteis aprendi nelas, é VERDADE; porém, estas também se podem aprender em estudos sérios, e este é o caminho seguro pelo qual deveriam encaminhar as crianças. Confissões I, XV

Ai de ti, torrente dos hábitos humanos! Quem há que te resista? Quando te secarás? Até quando irás arrastar os filhos de Eva a esse mar imenso e tenebroso, que apenas logram passar os que embarcam sobre o lenho da cruz? Acaso não foi em ti que li a fábula de Júpiter que troveja e adultera? É VERDADE que não podia fazer tais coisas ao mesmo tempo, mas assim se representou para autorizar a imitação de um verdadeiro adultério com o encantamento de um falso ouvir com paciência a um homem nascido do mesmo que clama e diz: “Homero imaginava essas ficções e atribuía aos deuses os vícios humanos; porém, eu preferiria que atribuísse a nós as qualidades divinas”. Com mais VERDADE se diria que Homero imaginou tudo isso, atribuindo qualidades divinas a homens corrompidos, para que os vícios não fossem considerados como tais, e para que todo aquele que os cometesse parecesse que imitava a deuses celestes, e não a homens corrompidos. Confissões I, XVI

Tu vês, Senhor, estas coisas, e te calas compassivo, paciente, cheio de misericórdia e VERDADE. Mas te calarás para sempre? Arranca, pois, agora deste espantoso abismo a alma que te busca sedenta de teus deleites, e que te diz de coração: Busquei, Senhor, teu rosto; teu rosto, Senhor, buscarei ainda. Longe está de teu rosto quem anda ocupado com afetos tenebrosos, porque não é com os pés carnais, nem cobrindo distâncias que nos aproximamos ou nos afastamos de ti. Porventura aquele teu filho menor procurou cavalos, ou carros, ou naves, ou voou com asas invisíveis, ou viajou a pé para alcançar aquela região longínqua onde dissipou o que lhes havia dado, ó Pai, meigo ao lhe entregar a substância, e mais carinhoso ainda ao recebê-lo andrajoso? Assim, pois, viver nas paixões da luxúria, é o mesmo que viver em paixões tenebrosas, é viver longe de teu rosto. Confissões I, XVIII

Guardava também, com o secreto instinto, a integridade dos meus outros sentidos, e deleitava-me com a VERDADE nos pequenos pensamentos que formava sobre coisas pequenas. Confissões I, XX

Ai de mim! Como me atrevo a dizer que te calavas quando me afastava de ti? Seria VERDADE que então te calavas comigo? E de quem eram, senão tuas, aquelas palavras que pela boca de minha mãe, tua serva fiel, sussurraste em meus ouvidos, embora nenhuma delas penetrasse no meu coração, para que a cumprisse? Confissões II, III

Por isso, soltavam-me as rédeas para o jogo mais do que o permite uma moderada severidade, deixando-me cair na dissolução de várias paixões; e de todas surgia uma obscuridade que me toldava, ó meu Deus, a luz da tua VERDADE; e, por assim dizer, de meu corpo, brotava minha iniquidade. Confissões II, III

Por todos estes motivos, e outros semelhantes, pecamos quando, por propensão imoderada para os bens ínfimos, são abandonados os melhores e mais altos, como tu, Senhor, nosso Deus, tua VERDADE e tua lei. Confissões II, V

É VERDADE que também esses bens ínfimos têm seus deleites, porém, não como os de Deus, criador de todas as coisas, porque nele se deleita o justo, e nele acham suas delicias os retos de coração. Confissões II, V

O orgulho imita a altura; mas só tu, Deus excelso, estás acima de todas as coisas. E a ambição, que busca, senão honras e glorias, quanto tu és o único sobre todas as coisas e ser honrado e glorificado eternamente? A crueldade dos tiranos quer ser temida; porém, quem há de ser temido senão Deus, a cujo poder ninguém, porém, quem há de ser temido senão Deus, a cujo poder ninguém, em tempo algum ou lugar, nem por nenhum meio pode subtrair-se e fugir? As carícias da volúpia buscam ser correspondidas; porém, não há nada mais carinhoso que tua caridade, nem que se ame de modo mais salutar que tua VERDADE, sobre todas as coisas formosa e resplandecente. A curiosidade sugere amor à ciência, enquanto só tu conheces plenamente todas as coisas. Até a própria ignorância e estultícia cobrem-se com o nome de simplicidade e inocência; das quais não acham nada mais simples do que tu. E que pode haver mais inocente do que tu, pois, até mesmo o castigo dos maus lhes vem de seus pecados? A indolência gosta do descanso; porém, que repouso seguro pode haver fora do Senhor? O luxo gosta de ser chamado de fartura; mas só tu és a plenitude e a abundância inesgotável de eterna suavidade. A prodigalidade veste-se com a capa da liberalidade; porém, só tu, és verdadeiro e liberalíssimo doador de todos os bens. A avareza quer possuir muitas coisas; porém, só tu as possui todas. A inveja litiga acerca de excelências; porém, que há mais excelente do que tu? A ira busca a vingança; e que vingança mais justa do que a tua? O temor aborrece as coisas repentinas e insólitas, contrárias ao que se ama ou se deseja manter seguro; mas haverá para ti algo de novo e repentino? Quem poderá separar de ti o que amas? E onde, senão em ti, se encontra inabalável segurança? A tristeza definha com a perda das coisas com que a cobiça se deleita, e não quer que se lhe tire nada, como nada pode ser tirado de ti. Confissões II, VI

Mas, que é esta, na VERDADE? E quem mo poderá ensinar, senão o que ilumina meu coração e rasga minhas sombras? De onde vem à minha alma a ideia destas indagações, desta discussão e considerações? Se eu então amasse as pêras que roubei, e quisesse apenas seu desfrute, podia tê-las roubado sozinho, se isso bastasse. Poderia fazer a iniquidade pela qual chegaria meu deleite sem necessidade de excitar o prurido da minha cobiça com a conivência de almas cúmplices. Confissões II, VIII

Porém, por que me deleitava o não perpetrar sozinho o roubo? Acaso alguém se ri facilmente quando está só? Ninguém o faz, é VERDADE; porém, também é VERDADE que às vezes o riso tenta e vence aos que estão sós, sem que ninguém os veja, quando se oferece aos sentidos ou à alma algo extraordinariamente ridículo. Porque a VERDADE é que eu sozinho nunca teria feito aquilo; não, eu sozinho jamais faria aquilo. Tenho viva, diante de mim, meu Deus, a lembrança daquele estado de alma, e repito que eu sozinho não teria cometido aquele furto, do qual não me deleitava o objeto, mas a razão do roubo, o que, sozinho, não me teria agradado de modo algum, nem eu o teria feito. Confissões II, IX

Entretanto, tua misericórdia, fiel, de longe pairava sobre mim. Em quantas iniquidades não me corrompi, meu Deus, levado por sacrílega curiosidade que, separando-me de ti, conduzia-me aos mais baixos, desleais e enganosos serviços aos demônios, a quem sacrificava minhas más ações, sendo em todas flagelado com duro açoite por ti! Também ousei apetecer ardentemente e procurar meios para conseguir os frutos da morte na celebração de teus mistérios, dentro dos muros de tua igreja. Por isso me açoitaste com duras penas, que nada eram comparadas com minhas culpas, ó Deus, misericórdia infinita, e meu refúgio contra os terríveis malfeitores, com os quais vaguei de cabeça erguida, afastando-me cada vez mais de ti, preferindo meus caminhos aos teus, amando a liberdade fugitiva! Os estudos a que era entregue, que se denominavam honestos ou nobres, tinham por objetivo as contendas do foro, nas quais deveria me distinguir com tanto maior louvor quanto mais hábeis fossem as mentiras. Tal é a cegueira dos homens, que até de sua própria cegueira se gloriam! Eu já conseguira, naquele tempo, ser o primeiro da escola de retórica, e por isso me vangloriava soberbamente, e me inflava de orgulho. Contudo, tu sabes, Senhor, que eu era muito mais sossegado que os demais, e totalmente alheio às turbulências dos eversores — ou demolidores — nome sinistro e diabólico que eles consideravam distintivo de urbanidade, entre os quais vivia com imprudente pudor por não pertencer a seu grupo. É VERDADE que andava com eles, e que me deleitava, às vezes, com sua amizade, porém, sempre aborreci o que faziam, como as troças e a insolência com que surpreendiam e ridicularizavam a timidez dos novatos, sem outra finalidade senão rir de suas trapalhadas, fazendo disso alimento para suas malévolas alegrias. Nada há mais parecido a estas ações que as dos demônios, pelo que nenhum nome lhes cai melhor que o de eversores ou demolidores, por serem eles transformados e pervertidos totalmente pelos espíritos malignos, que assim os burlam e enganam, sem que o saibam, justamente no que eles gostam de ludibriar ou enganar os demais. Confissões III, III

Deste modo vim cair com uns homens que deliravam orgulhosos, demasiado carnais e loquazes; em sua boca havia laços diabólicos e engodo pegajoso feito com as silabas de teu nome, do nosso Senhor, Jesus Cristo, e do nosso Paracleto e Consolador, o Espírito Santo. Estes nomes nunca saíam de seus lábios, porém, só no som e ruído da boca, pois de resto, seu coração estava vazio de toda VERDADE. Confissões III, VI

Diziam: “VERDADE! VERDADE!” — e, incessantemente, falavam-me da VERDADE, que nunca existiu neles; antes, diziam muitas falsidades, não apenas de ti, que és VERDADE por excelência, mas também dos elementos deste mundo, criação tua. Sobre isso, mesmo quando os filósofos diziam a VERDADE, tive de ultrapassá-los nos raciocínios por amor de ti, ó pai sumamente bom, beleza de todas as belezas! Ó VERDADE, VERDADE! Quão intimamente suspiravam por ti as fibras da minha alma, quando eles te faziam soar ao meu redor frequentemente e de muitos modos, embora apenas com as palavras e em seus muitos e volumosos livros. Estes eram as bandejas nas quais, estando eu faminto de ti, serviam-me em teu lugar o sol e a lua, formosas obras de tuas mãos, porém, obras tuas, e não a ti, nem sequer das principais. De fato, tuas obras espirituais são superiores a estas corporais, ainda que estas sejam brilhantes e celestes. Mas eu tinha sede e fome não daquelas primeiras, mas de ti mesmo, ó VERDADE, na qual não há mudança nem obscuridade momentânea! E eles serviam-me nessas bandejas esplendidas ficções, de acordo com as quais teria sido melhor amar a este sol, verdadeiro pelo menos aos olhos, em lugar daquelas falsidades que pelos olhos do corpo enganavam o entendimento. Confissões III, VI

Contudo, como as tomava por ti, alimentava-me delas, não certamente com avidez, porque não tinham o teu gosto — pois não eras aqueles vãos fantasmas — nem me nutria com elas, antes sentia-me cada vez mais debilitado. A comida que se toma em sonhos, não obstante ser muito semelhante à do estado de vigília, não alimenta aos que dormem, porque estão dormindo. Aquilo, porém, em nada era semelhantes a ti, como agora me certificou a VERDADE, pois que eram fantasmas corpóreos ou falsos corpos; comparados com eles, são mais reais estes corpos — celestes ou terrestres — que vemos com os olhos da carne assim como os veem os animais e as aves. Confissões III, VI

Ai de mim, por que degraus fui descendo até a profundidade do abismo, exaurido e devorado pela falta de VERDADE quando te buscava! E tudo isso, meu Deus — a quem me confesso porque te compadeceste de mim quando ainda não te conhecia — tudo por buscar-te, não com a inteligência — com a qual quiseste que eu fosse superior aos animais — mas com os sentidos da carne. E tu estavas dentro de mim, mais profundo do que o que em mim existe de mais íntimo, e mais elevado do que o que em mim existe de mais alto. Confissões III, VI

Eu, ignorando essas coisas, perturbava-me com essas perguntas. Afastando-me da VERDADE, parecia-me encaminhar para ela, porque não sabia que o mal é apenas privação do bem, até chegar ao seu limite, o próprio nada. E como poderia ter eu tal conhecimento, se com os olhos não conseguia ver mais do que corpos, e com a alma não ia além de fantasmas? Confissões III, VII

Não é pois VERDADE que a alma que suspira por semelhantes fábulas não se aniquila longe de ti, e se apóia na falsidade, e se apascenta de vento? Mas eis que, não querendo que se oferecessem sacrifícios aos demônios, eu mesmo me sacrificava a eles com aquela superstição. Com efeito, que significa apascentar ventos, senão apascentar os espíritos diabólicos, isto é, tornarmo-nos, por nossos erros, objeto de seu riso e escárnio? Confissões IV, II

E agora, Senhor, que essas coisas já passaram, agora que o tempo sarou minha ferida, poderei ouvir de ti, que és a própria VERDADE, aproximando o ouvido de meu coração de tua boca, o motivo por que o pranto é doce aos desgraçados? Acaso, mesmo presente em toda parte, repeliste para longe de ti nossa miséria, permanecendo imutável em ti, enquanto deixas que nos envolvamos em nossas provações? E, contudo, se nossos lamentos não chegarem a teus ouvidos, não haverá para nós esperança alguma. Confissões IV, V

Ninguém, Senhor, te perde senão o que te abandona. Mas, quem te deixa, para onde vai, ou para onde foge, senão de ti benévolo para ti irado? Onde não achará tua lei para seu castigo? Porque tua lei é a VERDADE, e a VERDADE és tu mesmo. Confissões IV, IX

Não seja vã, ó minha alma, nem ensurdeças o ouvido do coração com o tumulto de tua vaidade. Ouve também : o próprio Verbo clama que voltes, porque só acharás repouso imperturbável lá onde o amor não é abandonado, se ele não nos abandona antes. Eis que as coisas passam para ceder lugar as outras, e para que assim se forme este universo inferior, de todas as suas partes. “Mas, por acaso, afasto-me de um lugar para outro? — diz o Verbo de Deus — Fixa nele tua morada, confia a ele tudo o que dele recebeste, alma minha, já cansada de tantos enganos. Confia à VERDADE quanto da VERDADE recebeste, e nada perderás; antes, tua podridão reflorescerá e serão curadas todas as tuas fraquezas, e serão retomadas e renovadas, estreitamente unidas a ti, tuas partes inconscientes; e já não te arrastarão para a ladeira por onde descem, mas permanecerão contigo para sempre onde está Deus, eterno e imutável”. Confissões IV, XI

Se te agradam as almas, ama-as em Deus, porque, embora mutáveis, se fixas nele, terão estabilidade; de outro modo, passariam e pereceriam. Ama-as, pois, nele, e arrasta contigo até ele quantas almas puderes, dizendo-lhes: “Amemo-lo”. Porque ele criou estas coisas, e não está longe; ele não as fez para depois ir embora, mas dele procedem e nele estão. E ele está onde aprecia a VERDADE: no mais íntimo do coração; mas o coração errante se afastou dele. Confissões IV, XII

Eis onde jaz enferma a alma que ainda não se apoiou na firmeza da VERDADE. É levada e trazida, atirada e rechaçada, segundo os sopros das línguas que ventam dos peitos dos que opinam! E de tal modo a luz lhe é toldada, que não distingue a VERDADE, apesar de estar ela à nossa vista. Confissões IV, XIV

Daqui passei à natureza da alma, mas o falso conceito que tinha das coisas espirituais não me permitia perceber a VERDADE. A própria força da VERDADE saltava-me aos olhos, mas logo eu afastava da realidade incorpórea meu espírito inquiridor, voltando-me para as figuras, as cores e as grandezas materiais. E como não podia ver nada semelhantes na alma, julgava que tampouco seria possível ver minha alma. Confissões IV, XV

Mas, como eu amava a paz da virtude, e aborrecia a discórdia do vício, notava naquela certa unidade e neste certa desunião; parecia-me que residisse nessa unidade a alma racional, a essência da VERDADE e do sumo bem. Na desunião, via eu não sei que substância de vida irracional e a natureza do sumo mal, que não era apenas substância, mas também verdadeira vida. Todavia não procedia de ti, meu Deus, de quem procedem todas as coisas. E chamava àquela unidade mônada, como alma sem sexo, e a esta multiplicidade díada, como a ira nos crimes, a concupiscência nas paixões, sem saber o que dizia. Ignorava então, ainda não havia aprendido que o mal não é substância alguma, nem que nosso espírito não é o bem soberano e imutável. Confissões IV, XV

Assim como se cometem crimes quando o movimento do espírito é vicioso e se atira insolente e turbulento, e se cometem infâmias quando o afeto da alma, fonte dos prazeres carnais, é imoderado, assim os erros e falsas opiniões contaminam a vida se a alma racional está viciada, como estava a minha então. Ignorava que ela deveria ser ilustrada por outra luz para participar da VERDADE, por não ser da mesma essência da VERDADE, porque tu, Senhor, alumiarás minha lâmpada; tu, meu Deus, iluminarás minhas trevas, e todos participamos de tua plenitude, porque és a luz verdadeira que ilumina a todo homem que vem a este mundo, e porque em ti não há mudança nem a momentânea obscuridade. Confissões IV, XV

Eu não imaginava mais que formas corpóreas; carne, acusava a carne; espírito errante, não conseguia voltar para ti, nem em mim, nem nos corpos; não eram sugeridas por tua VERDADE, mas imaginadas por minha vaidade, de acordo com os corpos. E dizia aos pequeninos teus fiéis concidadãos, dos quais eu, ignaro, ainda exilado, dizia-lhes eu, tagarela inepto: “Por que a alma, criatura de Deus, se engana?” Mas não queria que dissessem: “E por que Deus se engana?” E defendia antes que tua substância imutável era obrigada a errar, para não confessar que a minha, mutável, se desencaminhara espontaneamente, ou que era castigada pelo erro. Confissões IV, XV

Teria eu vinte e seis ou vinte e sete anos quando escrevi essas coisas, revolvendo dentro de mim apenas imagens corporais, cujo ruído aturdia os ouvidos do meu coração. Buscava eu aplicá-los — ó doce VERDADE — à tua melodia interior, quando meditava sobre o belo e o conveniente. Meu desejo era estar diante de ti, e ouvir tua voz, e alegrar-me intensamente com a voz do esposo, mas não o podia, porque o alarido do meu erro me arrebatava para fora e, sob o peso de minha soberba, caía no abismo. Pois ainda não davas gozo e alegria a meus ouvidos, nem exultavam meus ossos, porque ainda não haviam sido humilhados. Confissões IV, XV

Era pois falso o que pensava de ti, e não VERDADE; ilusões de minha miséria, e não representação sólida de tua beleza. Havias ordenado, Senhor, e assim se cumpria em mim tua vontade, que a terra me produzisse abrolhos e espinhos, e que eu só conseguisse meu pão à custa de trabalho. Confissões IV, XVI

Mas qual o fruto disso, se eu te concebia, Senhor meu Deus, ó VERDADE, como um corpo luminoso e infinito, e eu como uma parcela desse corpo? Que rematada perversidade! Assim era eu; não me envergonho agora, meu Deus, de confessar tuas misericórdias para comigo, e de te invocar, já que não me envergonhei então de proferir ante os homens tais blasfêmias e de ladrar contra ti. De que me aproveitava, repito, a inteligência ágil para entender aquelas ciências, e para explicar com clareza tantos livros complicados, sem que ninguém mos houvesse explicado, se errava monstruosamente na piedade com sacrílega torpeza? E que prejuízo sofriam teus pequeninos em serem de menor inteligência, se não se afastavam de ti, para que, seguros no ninho da tua Igreja, se cobrissem de penas, e lhes alimentassem as asas da caridade com o sadio alimento da ? Confissões IV, XVI

Recebe, Senhor, o sacrifício de minhas Confissões por meio da minha língua, que tu formaste e impeliste a confessar teu nome. Cura todos os meus ossos, e que eles proclamem: Senhor, quem haverá semelhante ai ti? Na VERDADE, quem se dirige a ti, nada te informa do que ocorre em si, porque não há coração fechado que se possa subtrair a teu olhar, nem dureza de homem que possa repelir tua mão. Ao contrário, a abrandas quando queres, ou para compadecer-te, ou para castigar; não há quem se esconda de teu calor. Mas, que minha alma te louve para que te ame, a confesse tuas misericórdias para que te louve. Toda a criação não cala teus contínuos louvores, nem os espíritos todos, com sua boca voltada para ti, nem os animais e coisas corporais, pela boca dos que os contemplam. Assim, apoiando-se em tua criação, nossa alma se levanta de sua franqueza, e chega a ti, seu admirável criador, onde encontrará rejuvenescimento e verdadeira fortaleza. Confissões V, I

Dizem muitas coisas verdadeiras acerca das criaturas; mas, como não procuram piedosamente a VERDADE, isto é, o autor da Criação, não o encontram; e, se o encontram reconhecendo-o por Deus, não o honram como a Deus, nem lhe dão graças. Antes, se desvanecem em seus pensamentos, e se dizem sábios, atribuindo a si próprios o que é teu. Confissões V, III

Atribuem a ti, com perversa cegueira, suas mentiras, a ti, que és a própria VERDADE; alteram a glória de um Deus incorruptível, concebendo-a à semelhança e imagem do homem corruptível, das aves, dos quadrúpedes, das serpentes. E convertem tua VERDADE em mentira, e adoram e servem antes à criatura do que ao Criador. Confissões V, III

Senhor, Deus da VERDADE, acaso te agradará quem conhecer essas coisas? Infeliz do homem que, conhecendo-a todas, te ignora ti; mas feliz de quem te conhece, embora as ignore! Quanto ao que conhece a ti e a elas, este não é mais bem-aventurado por causa de seu saber, mas só é feliz por ti, se, conhecendo-te, te glorifica como Deus, e te dá graças, e não se desvanece em seus pensamentos. Confissões V, IV

Diferentes de outra espécie de homens que conheci, que tinham como suspeita a VERDADE, e não se lhe renderiam se lhes fosse apresentada com linguagem elegante e verbosa. Confissões V, VI

Mas eu, meu Deus, nessa época já tinha aprendido de ti, por caminhos ocultos e admiráveis — e creio que eras tu que me ensinavas, porque era VERDADE, e ninguém pode ser mestre da VERDADE senão tu, seja qual for a instância e modo dela brilhar — já havia aprendido de ti que não se deve ter por verdadeiro um pensamento porque expresso eloquentemente nem falso porque é dito com rudeza; e que, pelo contrário, um pensamento não é verdadeiro por ser enunciado com simplicidade, nem falso porque sua expressão é elegante; a sabedoria e a ignorância são como alimentos, proveitosos ou nocivos, e as palavras, elegantes ou rudes, como pratos preciosos ou toscos, nos quais se podem servir a ambos. Confissões V, VI

Por isso, logo que reconheci sua ignorância naquelas ciências em que o julgava grande conhecedor, comecei a desesperar de que me pudesse esclarecer e resolver as dificuldades que me preocupavam. É bem VERDADE que ele podia ignorar tais coisas e possuir a verdadeira piedade, contanto que não fosse maniqueísta. Seus livros estão cheios de fábulas intermináveis acerca do céu e dos astros, do sol e da lua, que eu já não esperava, mas que pudesse explicar tão argutamente como eu o desejava, comparando-as com os cálculos matemáticos que eu lera em outras partes, para ver se deveria preferir o que diziam os livros de Manés, ou se, pelo menos, estes apresentavam demonstrações de igual valor. Confissões V, VII

Ainda então me parecia que não éramos nós que pecávamos, mas não sei que estranha natureza que pecava em nós; por isso minha soberba se deleitava em me ter como isento de culpa, e portanto de todo desobrigado a confessar meu pecado, quando agia mal, para que pudesses curar minha alma que te ofendia. Antes, gostava de me desculpar, acusando a não sei que ser estranho que estava em mim, mas que não era eu. Na VERDADE, eu era tudo aquilo, embora minha impiedade me tivesse dividido contra mim mesmo. E o mais incurável de meu pecado era justamente o não me considerar pecador, preferindo, minha execrável iniquidade, que fosses vencido em mim, para minha perdição, ó Deus onipotente, a que vencesses minha alma para minha salvação. Ainda não tinhas posto guarda diante da minha boca, nem porta de proteção ao redor de meus lábios, a fim de que meu coração não se inclinasse para as más palavras, nem buscasse desculpas para seus pecados, como os homens prevaricadores. Eis a razão pela qual eu ainda mantinha relações de amizade com os eleitos dos maniqueus. Mas, desesperado de poder progredir para a VERDADE dentro daquela falsa doutrina, contentava-me a segui-la até encontrar algo melhor, professando-a já com mais liberdade e frouxidão. Confissões V, X

Nesse tempo, veio-me à mente a ideia de que os filósofos chamados acadêmicos haviam sido mais prudentes que os outros, por sustentarem que se deve duvidar de tudo, e que nenhuma VERDADE pode ser compreendida pelo homem. Julguei então que era esse o seu pensamento, como geralmente se crê, não tendo ainda compreendido suas verdadeiras intenções. Confissões V, X

Quanto a meu hospede, não me furtei de admoestar sua excessiva credulidade com que aceitava as fábulas de que estavam cheios os livros dos maniqueus. Todavia, tinha mais amizade com tais homens do que com os estranhos à sua heresia. É VERDADE que já não a defendia com a antiga animosidade; mas sua familiaridade — em Roma havia muitos deles ocultos — tornava-me bastante negligente para procurar outra coisa. Desesperava eu principalmente de poder achar a VERDADE em tua Igreja, ó Senhor dos céus e da terra, Criador de todas as coisas visíveis e invisíveis, VERDADE da qual eles me afastavam. Parecia-me mui torpe acreditar que tinhas figura de carne humana, e que estavas limitado pelos contornos de um corpo como o nosso. E quando queria pensar em meu Deus, não o sabia imaginar senão com massa corpórea — pois não me parecia que pudesse existir algo diferente — esta era a causa principal e quase única de meu erro inevitável. Confissões V, X

Mas o que principalmente me mantinha cativo, e como que sufocado, eram as tais “substâncias”, que pareciam oprimir-me, e debaixo de cujo peso, arquejante, me era impossível respirar a atmosfera pura e simples de tua VERDADE. Confissões V, XI

Mas logo vim a saber, com surpresa, que os estudantes de Roma praticavam outras artimanhas, que eu não havia experimentado na África. Se bem era VERDADE, como me haviam assegurado, que em Roma não ocorriam as mesmas violências dos jovens corrompidos de Cartago, também me afirmavam que aqui os estudantes, aos grupelhos, deixavam de repente de assistir às aulas, passando para outro professor, com o fim de não pagar o devido salário, faltando assim aos compromissos e desprezando a justiça por amor ao dinheiro. Confissões V, XII

Também a estes odiava meu coração, porém, não com rancor perfeito, porque na realidade, mas os aborrecia pelo prejuízo que me podiam causar do que pela simples injustiça de seu comportamento. Sem dúvida são infames os que assim agem, e se maculam longe de ti, amando passatempos efêmero e a recompensa de lodo, que rende imundas as mãos ao ser colhida, agarrando-se a um mundo fugaz, e desprezando a ti, que permaneces eternamente, a ti que chamas e perdoas à alma humana adúltera quando se volta para ti. Ainda agora aborrece-me gente tão depravada e sem modos, embora agora deseje que se corrijam, para que prefiram ao dinheiro a ciência que aprendem, e à essa ciência prefiram a ti, Deus, VERDADE e abundância de verdadeiro bem e paz castíssima. Mas naquele tempo — confesso — preferia que não fossem maus para meu interesse do que bons por teu amor. Confissões V, XII

Esse homem de Deus recebeu-me paternalmente, e se interessou muito por minha viagem, como bispo. Comecei a amá-lo; a princípio, não como mestre da VERDADE, que eu desesperava de achar em tua Igreja, mas pela sua amabilidade para comigo. Ouvia-o atentamente quando pregava ao povo, não com espírito adequado, mas como se quisesse sondar sua eloquência, para ver se correspondia à sua fama, ou se era maior ou menor que a que se dizia; ficava suspenso das suas palavras, mas indiferente ao conteúdo, coisa que eu até desprezava. Deleitava-me com a suavidade dos sermões, os quais, embora mais eruditos que os de Fausto, eram contudo, menos alegres e envolventes no estilo. Quanto à substância de tais sermões não havia comparação, pois Fausto se perdia por entre as fábulas dos maniqueus, e Ambrosio ensinava claramente a mais sã doutrina da salvação. Mas a salvação anda longe dos pecadores, tal como eu era então. Todavia, insensivelmente e sem o saber, ia-me aproximando dela. Confissões V, XIII

Não cuidava eu de aprender o que dizia, interessado apenas em como o dizia — era este gosto frívolo o único que ainda permanecia em mim, perdidas já as esperanças de que se abrisse para o homem o caminho para ti. Todavia, infiltravam-se em meu espírito, juntamente com as palavras que me agradavam, as coisas que desprezava. Já não me era possível discernir umas das outras, e assim, ao abrir meu coração à sua eloquência, nele entrava ao mesmo tempo e aos poucos, a VERDADE. Confissões V, XIV

Apliquei então todas as forças de meu espírito para ver se podia de algum modo, com argumentos decisivos, convencer de falsidade os maniqueus. A VERDADE é que se eu então tivesse podido conceber uma substância espiritual, imediatamente todas as invenções daqueles se esvaeceriam e seriam arrancadas de minha alma. Mas não podia. Confissões V, XIV

Ó minha esperança desde a minha juventude! Onde estavas, ou a que lugar te havias retirado? Acaso não foste tu quem me criou, diferenciando-me dos animais, fazendo-me mais sábio que as aves do céu? Mas eu caminhava por trevas e resvaladouros, e te buscava fora de mim, e não encontrava o Deus de meu coração; caí nas profundezas do mar. Eu perdera a confiança e desesperava de encontrar a VERDADE. Confissões VI, I

Encontrou-me em grave perigo, já sem esperança de buscar a VERDADE. Contudo, quando lhe disse que já não era maniqueísta, sem ser ainda católico, não pulou de alegria, como quem ouve algo inesperado, pois já estava segura sobre aquele ponto de minha miséria, que a fazia chorar por mim como por um morto que haveria de ressuscitar. Oferecia-me continuamente a ti em pensamento, como sobre um esquife, para que dissesses ao filho da viúva: Jovem, eu te digo: levanta-te, e seu filho revivesse, e voltasse a falar, e o entregasses à sua mãe. Confissões VI, I

Nem se abalou seu coração com alegria exagerada ao ouvir quanto já se havia cumprido daquilo que com tantas lágrimas te suplicava todos os dias. Viu-me, senão na posse da VERDADE, já afastado do erro. E como estava certa de que me concederias o que faltava — pois lhe havias prometido a graça total — respondeu-me, com muita calma e com o coração cheio de confiança, que esperava em Cristo que, antes de sair desta vida, me havia de ver católico fiel. Confissões VI, I

É que seu espírito não era dominado pela embriaguez, nem o amor do vinho a incitava ao ódio da VERDADE, como acontece a muitos homens e mulheres, que ao ouvir o cântico da sobriedade, sentem a mesma repulsa que os ébrios diante de um copo d’água. Mas ela, ao trazer as cestas com as oferendas usuais para serem provadas e repartidas, não bebia mais que um pequeno copo de vinho, temperado segundo seu paladar bastante sóbrio e condizente com sua dignidade. E se eram muitos os sepulcros que devia honrar desse modo, levava sempre o mesmo copo, usando-o para todos, de modo que o vinho não só estava muito aguado, mas até quente. Confissões VI, II

Tão logo porém soube que o ilustre pregador e mestre a VERDADE proibira tal costume — mesmo para os que o praticavam sobriamente, para não dar aos ébrios azo de se embriagarem, e porque essa espécie de parentales (festas pagãs que se celebravam de 13 a 21 de fevereiro consagradas especialmente aos deuses lares) era muito semelhante à superstição dos pagãos — ela se absteve de muito boa vontade. No lugar da cesta cheia de frutos da terra, aprendeu a levar ao túmulo dos mártires um coração cheio de puros desejos, dando o que podia aos pobres. Confissões VI, II

O certo é que não se apresentava nenhum ensejo para interrogar a teu santo-oráculo que habitava em seu coração sobre o que desejava, exceto quando lhe ouvia uma breve resposta, e minhas inquietudes pediam muito tempo e vagar para consultá-lo, o que nunca encontrava. Ouviao, é certo, explicar perfeitamente ao povo a palavra da VERDADE todos os domingos, persuadindo[ 49] me sempre mais de que podiam ser desatados todos os nós das calúnias sagazes que aqueles que me enganavam teciam contra os livros sagrados. Confissões VI, III

Depois vi a razão por que eram falsas. Mas já estava então certo de que elas eram duvidosas, embora as tivesse julgado irrefutáveis por algum tempo, quando, com minhas cegas discussões, combatia tua Igreja Católica. Embora então não a reconhecesse como mestra da VERDADE, pelo menos sabia que não ensinava aquilo de que eu a acusava. Confissões VI, IV

Também me alegrava de que as Antigas Escrituras da lei e os profetas já não me fossem propostas na interpretação anterior, em que me pareciam absurdas, quando eu acusava teus santos de pensamentos que nunca haviam tido. Alegrava-me ouvir a Ambrósio dizer muitas vezes em seus sermões ao povo, recomendando com muito zelo a VERDADE: a letra mata e o espírito vivifica. E, levantando o véu místico, revelava-me o significado espiritual de passagens que, segundo a letra, pareciam ensinar um erro. Nada dizia que me chocasse, embora eu ainda ignorasse se ele dizia a VERDADE. Confissões VI, IV

É VERDADE que poderia sarar pela crença, e assim, purificado pela o olhar de meu espírito, pudesse dirigir-se de algum modo à tua VERDADE, sempre imutável e indefectível. Mas, como sói acontecer a quem caiu nas mãos de um médico ruim, e que depois receia as mãos de um bom, assim me sucedia quanto à saúde de minha alma que, não podendo sarar senão pela , recusava-se a sarar por temor de crer, novamente, em falsidades. Minha alma resistia às tuas mãos, ó meu Deus, que preparaste o remédio da , e o derramaste sobre as enfermidades da terra, dando-lhe tanta autoridade e eficácia. Confissões VI, IV

Eu acreditava nisso, ora mais fortemente, ora mais frouxamente; mas em tua existência e que cuidava do gênero humano, sempre acreditei, embora ignorasse a natureza, ou qual o caminho que nos conduz ou reconduz a ti. Por isso, persuadido de nossa impotência para achar a VERDADE só por meio da razão, e que para isso nos é necessária a autoridade das Sagradas Escrituras, comecei a crer que nunca terias conferido tão soberana autoridade a essas Escrituras em todo o mundo, se não quiséssemos que crêssemos e te buscássemos por elas. Confissões VI, V

Depois venceu a resistência paterna para me escolher como mestre, e seu pai cedeu e consentiu. Voltando a ser meu discípulo, foi envolvido comigo na superstição dos maniqueus, apreciando neles aquela ostentação de continência, que ele julgava legítima e sincera. Na VERDADE, porém, era um desvario sedutor, um laço onde caíam almas preciosas, ainda incapazes de avaliar a sublimidade da virtude e, por isso mesmo, vítimas fáceis da aparência que mascara uma virtude hipócrita e fingida. Confissões VI, VII

Havia nesse tempo um senador poderosíssimo, a quem estavam sujeitos muitos clientes, uns por benefícios, outros por terror. Segundo o costume dos poderosos, este senador tentou fazer não sei que coisa era proibida pelas leis, e Alípio se lhe opôs. À tentativa de corrompê-lo, Alípio reconheceu com o riso. Zombou das ameaças que aquele lhe dirigiu, causando admiração geral pela rara qualidade de sua alma, que não desejava a amizade e nem temia a inimizade de homem tão poderoso, conhecido por seus inúmeros meios de prestar favores ou de prejudicar. Até o próprio juiz, de que Alípio era assessor, embora se opusesse também, não o fazia abertamente, responsabilizando a Alípio que, dizia ele, não lhe permitia fazer o que desejava, porque, se acedesse — e era VERDADE — demitir-se-ia imediatamente. Confissões VI, X

Isso é fato pequeno, mas o que é fiel no pouco também o é no muito, e de modo nenhum podem ser vãs aquelas palavras saídas da boca de tua VERDADE. Se não fordes fiéis nas riquezas injustas, quem vos confiará as verdadeiras? E se nas alheias não fordes fiéis, quem vos dará o que é vosso? Confissões VI, X

Também Nebrídio deixou sua pátria, vizinha de Cartago, e a própria Cartago, onde gozava de boa fama. Abandonou as magníficas propriedades do pai, a casa e até a própria mãe, que não o quis seguir; veio para Milão apenas para viver comigo, na busca apaixonada da VERDADE e da sabedoria. Confissões VI, X

Chegado porém aos trinta anos, ainda continuava preso ao mesmo lodaçal, ávido de gozar dos bens presentes, que me fugiam e me dissipavam. Entretanto, dizia: “Amanhã hei de encontrá-la; a VERDADE aparecerá clara, e a abraçarei. Fausto virá, e dará todas as explicações. Ó grandes varões da Academia: é VERDADE que não podemos compreender nenhuma coisa com certeza para a conduto de nossa vida?” Confissões VI, XI

“Mas não! Procuremos com mais diligencia, sem desesperarmos. Já não me parecem absurdas nas Escrituras as coisas que antes me pareciam tais: posso compreendê-las de modo diferente, mais razoável. Fixarei, pois, os pés naquele degrau em que me colocaram meus pais quando criança, até que encontres a VERDADE em sua evidência”. Confissões VI, XI

“Perca-se tudo! Deixemos essas coisas vãs e fúteis. Entreguemo-nos por completo à busca da VERDADE. A vida é miserável, e a hora da morte, incerta. Se esta me surpreender de repente, em que estado sairei do mundo? E onde aprenderei o que deixei de aprender aqui? Não serei antes castigado por essa negligência? Mas, e se a própria morte cortar e for o fim a todo cuidado e sentimento? Também seria conveniente investigar este ponto. Mas afastemos tais pensamentos! Não é por acaso nem é em vão que se difunde por todo o mundo a cristã, com grande prestígio. Deus jamais teria criado tantas e tais coisas por nós, se com a morte do corpo terminasse também a vida da alma. Por que hesitar, pois, em abandonar as esperanças do mundo para me consagrar à busca de Deus e da bem-aventurança?” Confissões VI, XI

Tais eram os pensamentos de meu pobre coração, oprimido pelos pungentes temores da morte, e sem ter encontrado a VERDADE. Contudo, arraigava sempre mais em meu coração a de teu Cristo, nosso Senhor e Salvador, professada pela Igreja Católica; ainda incerta, certamente, em muitos pontos, e como que flutuando fora das normas da doutrina. Minha alma porém não a abandonava, e cada dia mais se abraçava a ela. Confissões VII, V

Ouvindo essa história, na qual acreditei pelo crédito que merecia seu narrador — toda minha resistência se quebrou. Esforcei-me em seguida para afastar Firmino daquela vã curiosidade, dizendo-lhe que, pelo seu horóscopo e para ser verdadeiro, deveria certamente considerar a seus pais como os primeiros entre seus concidadãos; o renome da sua família, a mais nobre da cidade; seu nascimento ilustre, sua educação esmerada e seus conhecimentos nas artes liberais. E, pelo contrário, se aquele servo me consultasse sobre o tal horóscopo — que era o mesmo de Firmino — se também tivesse de lhe dizer a VERDADE — deveria ver nos mesmo signos sua família paupérrima, sua condição servil e tantas outras coisas, tão diferentes e opostas às primeiras. Confissões VII, VI

Portanto, para dizer a VERDADE, vendo os mesmos sinais celestes deveria tirar conclusões divergentes, porque fazer prognósticos semelhantes seria mentir. Confissões VII, VI

Também eu vinha dentre os gentios para ti, e interessei-me pelo ouro que, por tua vontade, teu povo trouxera do Egito, pois era teu onde quer que estivesse. E disseste aos atenienses, por boca de teu Apóstolo, que em ti vivemos, nos movemos e temos nosso ser, como alguns deles o disseram, e é deles que vinham os livros que me ocupavam. Mas não me fixei nos ídolos dos egípcios, aos quais sacrificavam, com teu ouro, os que mudaram a VERDADE de Deus em mentira, adorando e servindo ante à criatura do que ao Criador. Confissões VII, IX

Ela não estava sobre meu espírito como o azeite sobre a água, como o céu sobre a terra, mas estava acima de mim porque me criou; eu lhe era inferior por ter sido criado por ela. Quem conhece a VERDADE conhece a luz, e quem a conhece, conhece a eternidade. O amor a conhece! Ó eterna VERDADE, amor verdadeiro, amada eternidade! Tu és meu Deus. Por ti suspiro dia e noite. Quando te conheci pela primeira vez, ergueste-me para me fazer ver que havia algo para ser visto, mas que eu ainda era incapaz de ver. E deslumbraste a fraqueza de minha vista com o fulgor do teu brilho, e eu estremeci de amor e temor. Pareceu-me estar longe de ti numa região desconhecida, como se ouvira tua voz do alto: “Sou o pão dos fortes; cresce, e comer-me-ás. Não me transformarás em ti, como fazes com o alimento da tua carne, mas tu serás mudado em mim”. Confissões VII, X

E conheci então que “castigaste o homem por causa de sua iniquidade”, e “que secaste minha alma como uma teia de aranha”, e eu disse: Porventura não existe a VERDADE, por não ser difusa pelos espaços finitos e infinitos? E tu me gritaste de longe: Na VERDADE, Eu sou o que sou. Confissões VII, X

E eu ouvi como se ouve no coração, sem deixar motivo para dúvidas; antes, mais facilmente duvidaria de minha vida que da existência da VERDADE, que se manifesta à inteligência pelas coisas da criação. Confissões VII, X

Contemplei depois as outras coisas, e vi que deviam a ti sua existência, e que todas estão contidas em ti, não como em um lugar material, mas de modo diferente: conservas todas elas em tua VERDADE, sustentadas na tua mão; todas as coisas são verdadeiras enquanto existem, e só é falso o que julgamos existir, mas não existe. Confissões VII, XV

Buscava um meio que me der força necessária para gozar de ti, e não a encontrei enquanto não me abracei ao Mediador entre Deus e os homens, o homem Cristo Jesus, que está sobre todas as coisas, Deus bendito por todos os séculos, que chama e diz: Eu sou o caminho, a VERDADE e a vida. Ele une o alimento à carne (alimento que eu não tinha forças para tomar), porque o Verbo se fez carne, para que tua Sabedoria, pela qual criaste todas as coisas, fosse o leite de nossa infância. Confissões VII, XVIII

Não tendo humildade, eu não possuía Jesus, o Deus da humildade, e não atinava o que nos poderia ensinar sua fraqueza. Porque teu Verbo, VERDADE eterna, dominando as criaturas mais sublimes da tua criação, levanta a si as que se lhe sujeitam e, nas partes inferiores, construiu para si, com o nosso lodo, uma humilde morada. Assim faz para humilhar e arrancar de si mesmos aqueles que deseja sujeitar e atrair, curando-lhes a soberba e alimentando-lhes o amor, para que, confiando em si, não se afastem para mais longe. Pelo contrário, que se humilhem, vendo a seus pés a humildade de um Deus que também se vestiu de nossa túnica de carne, e cansados, se prostrem diante dela para que, ao se levantar, os exalte. Confissões VII, XVIII

Somente conhecia, pelas coisas que dele nos deixaram escritas, que comeu, bebeu, dormiu, passeou, que se alegrou, se entristeceu e pregou, e que essa carne não se juntou a teu Verbo senão com alma e inteligência humanas. Tudo isso sabe quem conhece a imutabilidade de teu Verbo, que eu já conhecia quanto me era possível, sem que disso nada duvidasse. Com efeito, mover os membros do corpo à vontade, ou não movê-los, estar dominado por algum afeto ou não o estar, traduzir por palavras sábios pensamentos e depois calar, são caracteres próprios da mutabilidade da alma e da inteligência. Se esses testemunhos das Escrituras fossem falsos, tudo o mais correria o risco de ser mentira, e o gênero humano não teria mais nesses livros a , condição de salvação. Mas como são verdadeiras as coisas nela escritas, eu reconhecia em Cristo um homem completo, não somente o corpo de um homem, ou um corpo sem uma alma inteligente, mas um homem real, que eu julgava superior a todos os outros não por ser a personificação da VERDADE, mas em razão da singular excelência de sua natureza humana, e de uma mais perfeita participação na sabedoria. Confissões VII, XIX

De minha parte, confesso que só aprendi mais tarde a diferença de interpretação das palavras “o Verbo se fez carne”, entre a VERDADE católica e o erro do Fotino (bispo de Sírmio, afirmava que o Verbo não havia sido Filho de Deus até encarnar-se nas entranhas da Virgem Maria, negando toda união substancial entre a natureza humana e o Verbo divino). A reprovação dos hereges põe às claras o pensamento da tua Igreja e o que esta considera como doutrina sã. Confissões VII, XIX

Depois de ter lido aqueles livros dos platônicos, induzido por eles a buscar a VERDADE incorpórea, começaram a se tornarem patentes, por meio de tuas obras, tuas perfeições visíveis. Confissões VII, XX

Repelido para longe de ti, compreendi em que consistia essa VERDADE, que as trevas de minha alma me impediam de contemplar. Estava certo de tua existência e de que és infinito, sem contudo te estenderes por espaços finitos ou infinitos; e de que és verdadeiramente aquele que é sempre idêntico a si mesmo, sem te mudares em outro, nem sofrer alteração alguma, quer parcialmente ou com algum movimento, quer de qualquer outro modo; e de que tudo o mais vem de ti, pela única e irrefutável razão de que existe. Tinha certeza de todas estas verdades, mas me achava ainda demasiado fraco para gozar de ti. Tagarelava muito, como se fora competente nisso, mas se não procurasse o caminho da VERDADE em Cristo, nosso Salvador, não seria perito, mas perituro. Já começava a querer parecer sábio, cheio de meu castigo, e não chorava, mas orgulhava-me com a ciência. Onde estava aquela caridade erigida sobre o alicerce da humildade, que é Cristo Jesus? Ou talvez me a ensinariam aqueles livros? Creio que quiseste que com eles me encontrasse antes de meditar nas tuas Escrituras, para que fixassem em minha memória os afetos que nela experimentei. Depois, quando encontrasse em teus livros a paz do coração, sarada com tuas mãos as feridas de minha alma, pudesse discernir e perceber a diferença entre presunção e humildade, entre os que veem para onde se deve ir, e não veem por onde se vai, nem o caminho que conduz à pátria bem-aventurada, não só para contemplá-la, mas também para habitá-la. Confissões VII, XX

Porque, embora o homem se deleite com a lei de Deus, segundo o homem interior, que fará dessa outra lei que luta em seus membros contra a lei de seu espírito, e que o prende sob a lei do pecado, impressa em seus membros? Porque tu és justo, Senhor; nós, porém, pecamos, cometemos iniquidades; procedemos como ímpios, e tua mão se fez pesada sobre nós, e é com justiça que fomos entregues ao pecador antigo, ao príncipe da morte, porque ele persuadiu nossa vontade a se conformar à sua, que não quis persistir com tua VERDADE. Confissões VII, XXI

Ouvira da boca da própria VERDADE que há eunucos que mutilavam a si próprios por amor ao reino dos céus, embora acrescentando que o compreenda quem o puder compreender. São vãos, por certo, todos os homens nos quais não reside a ciência de Deus, e que nas coisas visíveis não puderam achar aquele que é. Mas eu já me livrara dessa vaidade, já a havia ultrapassado, e pelo testemunho de tua criação, te encontrara a ti, nosso Criador, e a teu Verbo, Deus em ti, e contigo um só Deus, por quem criaste todas as coisas. Confissões VIII, I

Mas depois que hauriu forças nas leituras e orações, temeu ser renegado por Cristo diante de seus anjos, se tivesse medo de o confessar diante dos homens. Sentiu-se réu de um grande crime por se envergonhar dos mistérios de humildade de teu Verbo, não se envergonhando do culto sacrílego de demônios soberbos, que ele próprio aceitara como soberbo imitador; envergonhou-se da vaidade, e enrubesceu diante da VERDADE. De repente, disse a Simpliciano, segundo este mesmo contava: “Vamos à Igreja; quero me tornar cristão”. Simpliciano, não cabendo em si de alegria, foi com ele. Recebidos os primeiros sacramentos da religião, não muito depois, deu seu nome para receber o batismo que renegara, causando admiração em Roma e alegria na Igreja. Viram-no os soberbos, e se iraram; rangiam os dentes e se consumiam de raiva. Confissões VIII, II

Mas, que se passa na alma, para que se alegre mais com as coisas que estima, encontradas ou reavidas, do que se sempre as tivesse possuído? Na VERDADE, tudo o atesta, e há inúmeros testemunhos que afirmam: “É assim mesmo!” Confissões VIII, III

Vamos pois, Senhor, mãos à obra! Desperta-nos, chama-nos, inflama-nos, arrebata-nos; derrama tuas doçuras, encanta-nos: amemos, corramos! Não é VERDADE que muitos voltam a ti, saindo de um abismo de cegueira mais profundo que o de Vitorino, e se aproximam de ti, e são iluminados pela tua luz, junto da qual recebem o poder de se fazerem teus filhos? Confissões VIII, IV

Eu já não tinha aquela desculpa, com a qual persuadia-me de que, se ainda não desprezava o mundo para te servir, era porque não tinha visão clara da VERDADE, uma vez que agora já a conhecia de modo indiscutível. Mas, ainda apegado à terra, recusava-me a combater em tuas fileiras, e temia ver-me livre dos meus laços, quando devia temer estar por eles atado. Confissões VIII, V

Já não tinha o que responder quando me dizias: “Desperta, ó tu que dormes, levanta-te de entre os mortos, e Cristo te há de iluminar”. E quando por todos os meios me mostrava a VERDADE do que dizias, e de que eu estava convencido, não tinha absolutamente nada para responder, senão umas palavras preguiçosas e sonolentas: Um momento… Depois… Um pouquinho mais… Confissões VIII, V

Não há, portanto, prodígio algum em querer em parte e em parte não querer; é uma enfermidade da alma. esta, sustentada pela VERDADE, não se ergue de todo, pois está oprimida pelo peso do hábito. Há, portanto, duas vontades, ambas incompletas, e o que uma possui falta à outra. Confissões VIII, XI

Eles é que são de fato maus, que seguem tais más doutrinas; somente serão bons quando aceitarem a VERDADE, concordando com os que a possuem. E assim o Apóstolo poderá dizer deles: Outrora fostes trevas, mas agora sois luz no Senhor. Mas esses, querendo ser luz não no Senhor, mas em si mesmos, julgam que a natureza da alma á a mesma que a de Deus; vão-se tornando trevas ainda mais densas, pois em sua terrível arrogância se afastam ainda mais de ti, luz verdadeira, que ilumina a todo homem que vem a este mundo. Atentai para o que dizeis, e enchei-vos de vergonha. Aproximai-vos dele, e sereis iluminados, e vossos rostos não serão cobertos de confusão. Confissões VIII, X

Mas, suponhamos que um dos nossos queira decidir, e conflitando as duas vontades, titubeie entre ir ao teatro ou à nossa igreja; não ficarão indecisos os maniqueístas na resposta que hão de dar? Porque, ou hão de confessar o que não querem, que é boa a vontade que o leva à nossa igreja, como vão a ela os que foram iniciados em seus mistérios e lhe permanecem fiéis, ou terão de reconhecer que num mesmo homem lutam duas naturezas más e duas almas más. E então terão de contradizer o que afirmam, que uma natureza é boa e outra má. Ou então terão de aceitar a VERDADE e, neste caso, não negarão que, quando alguém escolhe, é uma mesma alma a que hesita entre duas vontades opostas. Confissões VIII, X

Todas essas vontades são boas, e lutam entre si, até que se tome uma decisão, que unifique a vontade, antes dividida. Assim também, quando a eternidade agrada à nossa parte superior e o bem temporal nos prende fortemente cá embaixo: é a mesma alma que, sem uma vontade plena, quer um e outro desses bens. Por isso, dilacera-a uma grande dor; a VERDADE nos faz preferir a eternidade, mas o hábito não quer abandonar os bens temporais. Confissões VIII, X

Verecundo, como disse, angustiava-se, mas Nebrídio partilhava a nossa alegria, porque, embora não sendo ainda cristão e houvesse caído no erro tão pernicioso de julgar que a carne verdadeira do teu Filho fosse mera aparência, já começava a se desvencilhar e, sem ter ainda recebido os sacramentos da tua Igreja, buscava ardentemente a VERDADE. Confissões IX, III

Também eu tinha amado a vaidade e buscado a mentira. Mas tu, Senhor, já havias glorificado teu eleito, ressuscitando-o de entre os mortos e colocando-o à tua direita, de onde haveria de nos enviar, segundo a promessa, o Paracleto, o Espírito da VERDADE. O Senhor estava glorificado, ressuscitando de entre os mortos, e subindo aos céus. Antes o Espírito ainda não tinha sido dado, porque Jesus ainda não tinha sido glorificado. Confissões IX, IV

Clama o profeta: Até quando sereis duros de coração? Por que amais a vaidade e buscais a mentira? Sabeis que o Senhor já glorificou a seu santo. Clama: Até quando? Clama: Sabei! — E eu sem o saber durante tanto tempo, amando a vaidade e buscando a mentira! Por isso tremi quando o ouvi, porque me lembrei de ter sido igual àqueles a quem tais palavras eram dirigidas. Os fantasmas que eu havia tomado pela VERDADE nada mais eram do que vaidade e mentira. Confissões IX, IV

Oh! Se eles vissem essa luz interior e eterna que eu havia visto! E como a havia saboreado, irritava-me por não poder mostrá-la. Se, pelo seus olhares dirigidos para fora, visse seu coração afastado de ti, me dissessem: “Quem nos mostrará o bem? Pois ali, onde me irritara contra mim mesmo, ali, no recôndito de meu coração onde, arrependido, eu havia sacrificado e imolado em mim o velho homem; onde, pondo em ti minha esperança, começara a meditar a renovação de mim mesmo, ali fizeste com que eu sentisse tua doçura, dando alegria a meu coração. E exclamava ao ler, fora de mim, essas palavras cuja VERDADE ecoava em mim; e não queria desdobrar-me pelos bens terrenos, devorando o tempo e sendo por ele devorado, porque possuía na eterna simplicidade outro trigo, outro vinho e outro azeite. Confissões IX, IV

Naqueles dias eu não me fartava de considerar a grandeza de teus desígnios para a salvação do gênero humano, pela inefável doçura que sentia. Quanto chorei ao ouvir, profundamente comovido, teus hinos e cânticos que ressoavam suavemente em tua Igreja! Penetravam aquelas vozes em meus ouvidos, e destilavam a VERDADE em meu coração. Acendia-se em mim um afeto piedoso, corriam-me lágrimas dos olhos, e o pranto me consolava. Confissões IX, VI

Ali, sozinhos, conversávamos com grande doçura, esquecendo o passado, ocupados apenas no futuro, indagávamos juntos, na presença da VERDADE, que és tu, qual seria a vida eterna dos santos, que nem os olhos viram, nem os ouvidos ouviram, nem o coração do homem pode conceber. Abríamos ansiosos os lábios de nosso coração ao jorro celeste de tua fonte — da fonte da vida que está em ti — para que, banhados por ela, pudéssemos de algum modo meditar sobre coisa tão transcendente. Confissões IX, X

E subimos ainda mais em espírito, meditando, celebrando e admirando tuas obras, e chegamos até o íntimo de nossas almas. E fomos além delas, para alcançar a região da abundância inesgotável, onde apascentas eternamente a Israel com o alimento da VERDADE, lá onde a vida é a própria Sabedoria, por quem foram criadas todas as coisas, as que já existem e as vindouras, sem que ela própria se crie a si mesma, pois existe agora como antes existiu e como sempre existirá. Antes, nela não há nem passado, nem futuro: ela apenas é, porque é eterna; mas ter sido ou haver de ser não é próprio do ser eterno. Confissões IX, X

Reprimido o pranto do Adeodato, Evódio tomou o saltério e começou a cantar um salmo, ao que todos respondíamos “Misericórdia e justiça te cantarei Senhor”. Conhecia a notícia de sua morte, acorreram muitos irmãos e mulheres piedosas e, enquanto os encarregados dos funerais faziam seu ofício conforme o hábito, retirei-me para um lugar conveniente, junto com os amigos que julgavam oportuno não me deixar só. Falava sobre assuntos próprios das circunstâncias, e com o lenitivo da VERDADE mitigava meu sofrimento, só conhecido por ti. Eles o ignoravam e me ouviam atentamente, julgando que não sofria nenhuma dor. Confissões IX, XII

Depois adormeci. Ao despertar, minha dor estava mitigada; só, em meu leito, lembrei-me dos versos cheios de VERDADE de teu Ambrósio. Porque, na VERDADE Tu és Deus, criador de quanto existe, De todo o mundo supremo governante, Que o dia vestes com tua luz brilhante, E de sonhos gratos a noite triste A fim de que os membros cansados O descanso ao trabalho prepare E as mentes cansadas, repare E os peitos de pena oprimidos Depois, pouco a pouco voltava aos sentimentos de antes sobre tua serva. Recordava de sua piedade para contigo, de sua solicitude e paciência comigo, da qual subitamente me via privado. E senti consolação em chorar diante de ti, por causa dela e por ela, e por minha causa e por mim. E deixei que as lágrimas reprimidas corressem à vontade, estendendo-as como um leito reparador sob meu coração. Teus ouvidos eram os que ali me escutavam, e não os de nenhum homem, que pudesse interpretar com soberba meu pranto. Confissões IX, XII

Agora, com a ferida do meu coração já sanada, na qual se podia censurar um afeto muito carnal, derramo diante de ti, meu Deus, por tua serva, outra espécie de lágrimas, bem diferentes, aquelas que brotam do espírito comovido à vista dos perigos que corre toda alma que morre em Adão. É VERDADE que minha mãe, vivificada em Cristo, antes mesmo de ser livre dos laços da carne, viveu de tal modo, que teu nome era louvado em sua e em seus costumes. Contudo, não me atrevo a dizer que desde que a regeneraste no batismo não saiu de sua boca nenhuma palavra contrária à tua lei. Porque a VERDADE, que é teu Filho, disse: “Quem chamar a seu irmão de louco será réu do fogo da geena”. Ai da vida dos homens, por mais louvável que seja, se tu a julgares sem a tua misericórdia! Mas porque não examinas nossos pecados com rigor, confiadamente esperamos tomar lugar a teu lado. Quem enumera diante de ti seus próprios méritos, que mais expõe senão teus dons? Oh! Se os homens se reconhecessem como homens! Se quem se glorifica se glorificasse no Senhor! Por isso, Deus de meu coração, minha vida e minha gloria, esquecendo por um momento as boas ações de minha mãe, pelas quais te dou graças com alegria, peço-te agora perdão por seus pecados. Ouve-me pelos méritos daquele que é o médico de nossas feridas, que foi suspenso do madeiro da cruz e que, sentado agora à tua direita, intercede por nós junto a ti. Eu sei que ela sempre agiu com misericórdia, e que perdoou de coração todas as faltas contra ela cometidas; perdoa-lhe também suas dívidas, se algumas contraiu em tantos anos que se seguiram ao batismo. Perdoa-lhe, Senhor, perdoa-lhe, te suplico, e não entres em juízo com ela. Confissões IX, XIII

Triunfe a misericórdia sobre a justiça pois as tuas são palavras de VERDADE, e prometeste misericórdia aos misericordiosos. Se alguém o foi, deve-o à tua graça, tu que tens compaixão de quem te apraz, e usas de misericórdia com quem queres ser misericordioso. Confissões IX, XIII

Mas tu amaste a VERDADE, porque quem a pratica alcança a luz. Eu desejo praticá-la em meu coração, diante de ti, por esta minha confissão, e diante de muitas testemunhas por meus escritos. Confissões X, I

Que tenho eu que ver com os homens, para que me ouçam as confissões, como se eles pudessem curar as minhas enfermidades? São curiosos para conhecer a vida alheia, mas indolentes para corrigir a própria! Por que desejam ouvir de mim quem sou, quando não se importam em saber de ti o que são? E como podem saber, ao me ouvirem falar de mim mesmo, se lhes digo a VERDADE, uma vez que homem algum sabe o que se passa no outro, senão o espírito do homem, que nele, habita? Mas, se ouvissem a ti falar deles, não poderiam dizer: “O Senhor mente”. E o que é ouvir-te falar de si, senão conhecerem-se a si mesmos? E quem, conhecendo a si mesmo, pode dizer “é falso”, sem mentir? Confissões X, III

A caridade crê em tudo — pelo menos entre corações que ela unifica em si por seus laços — por isso também eu, Senhor, me confesso a ti para que me ouçam os homens. A eles não posso provar que falo a VERDADE; mas creem-me aqueles cujos ouvidos a caridade abre para mim. Confissões X, III

Mas o amor às coisas criadas os escraviza, e assim os torna incapazes de julgá-las. Ora, elas só respondem aos que podem julgar-lhes as respostas. Elas não mudam sua linguagem, isto é, sua beleza, quando um só as vê, e outro as interroga; elas não lhes aparecem diferentes mas, para uns ficam mudas, enquanto falam a outros. Ou melhor: eles falam a todos, mas apenas se entendem os que comparam sua expressão exterior com a VERDADE interior. De fato a VERDADE me diz: “Teu Deus não é nem o céu, nem a terra, nem corpo algum. A natureza das coisas o diz para quem sabe ver; a matéria é menor em seus elementos que em seu todo. Por isso, minha alma, digo-te que és superior ao corpo, pois vivificas sua matéria, dando-lhe vida, como nenhum corpo pode dar a outro corpo. Mas teu Deus é também para ti a vida de tua vida. Confissões X, VI

De onde, então, e por onde entraram em minha memória? Ignoro-o. Aprendi-as não dando crédito ao testemunho alheio, mas as reconheci em mim e aprovei-as como verdadeiras; confias a meu espírito como em depósito, de onde poderei tirá-las quando quiser. Estavam pois ali, antes mesmo que eu as aprendesse, mas não na memória. E onde estavam então? E porque, ao serem mencionadas, eu as reconheci e disse: “É assim mesmo, é VERDADE” — senão porque já estavam em minha memória? Mas tão escondidas e sepultadas em tão secretos recessos, que se alguém não as arrancasse dali com suas perguntas, talvez eu nem pudesse concebê-las. Confissões X, X

Pergunto a todos se preferem encontrar a alegria na VERDADE ou no erro; ninguém hesita em declarar que preferem a VERDADE, como em dizer que querem ser felizes. É que a felicidade é a alegria que provém da VERDADE. E essa alegria é a que nasce de ti, que és a própria VERDADE, ó meu Deus, minha luz, saúde de meu rosto! Todos querem essa vida, a única feliz, essa alegria que se origina na VERDADE. Confissões X, XXIII

Onde, então, conheceram a felicidade, senão onde conheceram a VERDADE? Visto que não querem ser enganados, também amam a VERDADE, e desde que amam a felicidade, que nada mais é que a alegria proveniente da VERDADE, certamente também amam a VERDADE; e não a amariam se não retivessem dela, na sua memória, alguma noção. Por que, então, não se alegram com ela? Por que não são felizes? Porque se empolgam demais com outras coisas, que os tornam mais infelizes do que a VERDADE, de que se recordam fracamente, e que os faria felizes. Confissões X, XXIII

Mas por que a VERDADE gera o ódio? Por que os homens olham como inimigo aquele que a prega em teu nome, uma vez que amam a felicidade, que mais não é que a alegria nascida da VERDADE? Talvez por amarem a VERDADE de tal modo que tudo de diferente que amam, querem que seja VERDADE; e, não admitindo ser enganados, também não querem ser convencidos de seu erro. Desse modo, detestam a VERDADE por amarem aquilo que tomam pela VERDADE. Amam-na quando ela brilha, mas odeiam-na quando os repreende; e, como não querem ser enganados, mas enganar, eles a amam quando ela se manifesta, mas a odeiam quando ela os denuncia. Confissões X, XXIII

Porém ela os castiga; não querem ser descobertos pela VERDADE, mas esta os denuncia, sem que por isso se manifeste a eles. Confissões X, XXIII

É assim o coração do homem! Cego e lerdo, torpe e indecente: quer permanecer oculto, mas não quer que nada lhe seja ocultado. Em castigo, sucede-lhe o contrário: não consegue esconder-se da VERDADE, enquanto esta lhe continua oculta. Contudo, apesar de tão infeliz, prefere encontrar alegrias na VERDADE que no erro. Será, portanto, feliz quando, livre de perturbações, se alegrar somente na VERDADE, origem de tudo o que é verdadeiro. Confissões X, XXIII

Eis como esquadrinhei minha memória em tua procura, Senhor: não me foi possível encontrar-te fora dela. Nada encontrei de ti que não fosse lembrança, e nunca me esqueci de ti desde que te conheci. Onde encontrei a VERDADE, aí encontrei a meu Deus, que é a própria VERDADE; e desde que aprendi a conhecer a VERDADE, nunca mais a esqueci. Por isso, desde que te conheço, permaneces em minha memória. É lá que te encontro quando me lembro de ti e quando sou feliz em ti. Estas são as santas delicias que me deste em tua misericórdia, olhando para minha pobreza. Confissões X, XXIV

Onde, então, te encontrei, para te conhecer? Não estavas ainda em minha memória antes de eu te conhecer. Onde, então, te encontrei, para te conhecer, senão em ti mesmo, acima de mim? No entanto, aí não existe espaço. Quer nos afastemos de ti, quer nos aproximemos, aí não existe espaço algum. Ó VERDADE, por toda parte assistes aos que te consultam, e respondes ao mesmo tempo a todas essas diversas consultas. Tuas respostas são claras, mas nem para todos. Confissões X, XXVI

E que dizer quando, sentado em minha casa, observando uma lagartixa à caça de moscas, ou uma aranha que as enreda em sua teia? Acaso, por serem animais pequenos, a curiosidade que despertam em mim não é a mesma? É VERDADE que depois passo a te louvar; Criador admirável, ordenador do universo, mas não foi esse o pensamento que primeiro me moveu. Uma coisa é levantar-se depressa, e outra é não cair. Confissões X, XXXV

Terei também essa miséria como desprezível? Haverá algo que possa restituir-me a esperança, a não ser tua conhecida misericórdia, que começou a me transformar? Sabes o quanto já me transformaste; curaste-me primeiro da paixão da vingança, para perdoar-me também todos meus pecados, curar minhas fraquezas, resgatar minha vida da corrupção, conservar-me na piedade e misericórdia, e saciar dos teus bens meu desejo. Derrubaste meu orgulho pelo temor, dobrando minha cerviz a teu jugo. Agora eu trago o teu jugo, e o sinto suave, como prometeste e cumpriste. Na VERDADE, teu jugo já era suave, mas eu não o sabia quando receava tomá-lo sobre mim. Confissões X, XXXVI

Ora, como é necessário, para se adequar à sociedade, fazer-se amar e temer pelos homens, o inimigo de nossa verdadeira felicidade nos alicia, e por toda parte semeia seus laços gritando: “Bravo! Muito bem!” — para que, ávidos, recolhamos as lisonjas e nos deixemos incautamente enredar. Seu intento é que deixemos de encontrar nossa alegria na VERDADE, para buscá-la na mentira dos homens; estimula em nós o prazer em nos fazer temer e amar, não pelo teu amor, mas em teu lugar. Com isso nos tornamos semelhantes a ele, não unidos na caridade, mas partilhando de suas penas. Ele quis fixar sua morada no aquilão (vento gelado do norte), para que nós, nas trevas e no frio, servíssemos o perverso e sinuoso imitador de teu poder. Confissões X, XXXVI

Então, Senhor, que devo confessar-te quanto a tais tentações? Que tenho em grande apreço o louvor? Mas agrada-me mais a VERDADE. Pois, se tivesse que escolher entre duas situações: ser louvado pela minha loucura ou por meus erros ou ser escarnecido por todos pela minha firme certeza da VERDADE, bem sei o que escolheria. Contudo, não gostaria que a aprovação alheia aumentasse para mim a alegria que sinto pelo pouco bem que faço. Mas tenho de te confessar que não só o louvor a aumenta, mas também que o vitupério a diminui. Confissões X, XXXVII

Mas é em ti, ó VERDADE, que percebo que devo me alegrar com os louvores que me dirigem, não em meu interesse, mas no interesse do próximo. Não sei se é este o meu caso, pois neste assunto me conheces melhor do que eu mesmo. Suplico-te, meu Deus, que me dês a conhecer a mim mesmo, para que eu possa confessar a meus irmãos, dispostos a orar por mim, as chagas que achar em mim. Faze que me examine com mais diligencia. Se for de fato o bem do próximo que me alegra quando me louvam, porque sou menos sensível ao vitupério injustamente feito a outro, do que se fosse a mim? Porque o aguilhão da injúria me faz sofrer mais do que injúria igualmente injusta feita a uma outra pessoa diante de mim? Acaso também ignoro isto? Confissões X, XXXVII

Deveria então concluir que me iludo, e que meu coração e minha língua burlam diante de ti a VERDADE? Confissões X, XXXVII

Quando deixaste de me acompanhar, ó VERDADE, para me ensinar o que eu devia evitar ou procurar, sempre te consultei, a ti submetendo, dentro da minha limitação, meus medíocres pontos de vista? Percorri com os sentidos, como pude, o mundo exterior. Observei a vida de meu corpo e os meus próprios sentidos. Depois adentrei nas profundezas da memória em seus múltiplos domínios, tão maravilhosamente repletos de inúmeras riquezas; observei tudo isso, estupefato. Sem teu auxílio nada poderia distinguir, mas reconheci que nada disto eras tu. Nem era eu o descobridor de todas essas coisas; me esforcei para distingui-las e avaliá-las em seu devido valor, recebendo-a através dos sentidos e interrogando-as. Senti outras coisas unidas a mim, e as examinei, assim como aos sentidos que mas traziam; revolvi as vastas reservas da memória, analisando certas lembranças, guardando umas e trazendo outras à luz. Porque tu és a luz permanente que eu consultava sobre a existência, o valor e a qualidade de todas as coisas, e eu ouvia teus ensinamentos e tuas ordens. Costumo fazê-lo muitas vezes, pois essa é a minha alegria, e sempre que meus trabalhos me permitem algum descanso, refugio-me nesse prazer. Confissões X, XL

Examinei minhas fraquezas de pecador nas três formas de concupiscência, e invoquei tua destra para me salvar. Apesar de ter coração ferido, vi teu esplendor, e forçado a recuar, disse: “Quem pode chegar lá? Fui lançado para longe de teus olhos”. — Tu és a VERDADE que preside a todas as coisas. E eu, minha avareza, não queria perder-te, mas queria possuir ao mesmo tempo a ti e à mentira, como os que não querem mentir a ponto de perderem a noção de VERDADE. Assim te perdi, porque não admites, nem nenhum coração, conviver com a mentira. Confissões X, XLI

Também nós oramos e, não obstante, a VERDADE nos diz: O Pai sabe do que haveis mister, antes mesmo de lho pedires. — Por isso manifestamos nosso amor por ti, confessando-te nossas misérias e tuas misericórdias para conosco, para que termines a nossa libertação que começaste, e para que deixemos de ser infelizes em nós para sermos felizes em ti. Pois nos chamaste para que fôssemos pobres de espírito, mansos, penitentes, famintos e sedentos de justiça, misericordiosos, puros de coração e pacíficos. Confissões XI, I

Moisés escreveu a respeito: “Isto diz ele, isto diz a VERDADE”. Confissões XI, II

Mas, como saberia eu se ele dizia a VERDADE? E, posto que o soubesse, sabê-lo-ia por seu intermédio? Não, mas seria dentro de mim, no íntimo recesso do pensamento que a VERDADE, que nem é hebraica, nem grega, nem latina, nem bárbara, sem auxílio de lábios ou de língua, sem ruído de sílabas, me diria: “Ele fala a VERDADE”. — e eu, imediatamente, com a certeza da , diria àquele teu servo: “Tu dizes a VERDADE!”. Confissões XI, III

Mas, como não posso consultar a Moisés, é a ti, ó VERDADE, cuja plenitude ele possuía quando enunciou tais palavras, é a ti, meu Deus, que dirijo minha súplica, perdoa meus pecados. Confissões XI, III

Mas de onde proviriam essas coisas se não as tivesse criado? Criaste o corpo do artista, a alma que governa seus membros, a matéria que ele plasma, a inspiração que concebe e vê interiormente o que executará exteriormente. Deste-lhe os órgãos dos sentidos, intérpretes pelos quais materializa as intenções de sua alma; informam o espírito do que fizeram, para que este consulte a VERDADE, o juiz interior, para saber se a obra é boa. Tudo isso te louva como criador de todas as coisas. Confissões XI, V

Isto eu o sei, meu Deus, e por isso te dou graças. Eu o sei, e eu to confesso, Senhor; e também o sabe todo aquele que não é ingrato à infalível VERDADE. Sabemos, Senhor, sabemos que não ser mais depois de ter existido, ou passar a ser quando ainda não se existia é o morrer e o nascer. Mas em teu Verbo, por ser verdadeiramente imortal e eterno, nada desaparece nem tem sucessão. Com o teu Verbo que é co-eterno, enuncias eternamente e a um só tempo tudo o que dizes. E o que se realiza é o que dizes que se faça. Não é de outro modo, senão pelo Verbo, que crias. Todavia os seres criados por tua palavra não chegam à existência simultaneamente, desde toda a eternidade. Confissões XI, VII

Imploro-te, Senhor meu Deus, qual o porquê disso tudo? De certo modo eu o compreendo, mas não sei como exprimi-lo. Poderei dizer que tudo o que tem começo e fim, começa e acaba quando a razão eterna, que não tem começo nem fim, sabe que deve começar ou acabar? Essa inteligência é teu Verbo, que é o princípio, porque também nos fala. Assim falou-nos no Evangelho com voz humana, e a palavra ecoou exteriormente nos ouvidos dos homens, para que cressem nele, e o buscassem em seu íntimo, e o encontrassem na eterna VERDADE, onde um bom e único mestre instrui todos os seus discípulos. Confissões XI, VIII

Aí, Senhor, ouço tua voz a me dizer que só nos fala verdadeiramente quem nos ensina, e quem não nos instrui, mesmo que fale, não nos diz nada. Mas quem nos ensina, senão a VERDADE imutável? As lições da criatura mutável têm o único valor de nos conduzir à VERDADE, que é imutável. Nela verdadeiramente aprendemos quando, de pé, a ouvimos, alegrando-nos por cauda da voz do Esposo, que nos reconduz àquele de quem viemos. Por isso, ele é o princípio, pois se ele não permanecesse, não teríamos para onde voltar de nossos erros. Quando voltamos de um erro, temos plena consciência dessa volta; e é para que tomemos consciência de nossos erros que ele nos instrui, porque ele é o princípio, e sua palavra é para nós. Confissões XI, VIII

É nesse princípio, ó Deus, que criaste o céu e a terra; em teu Verbo, em teu Filho, em tua virtude, em tua sabedoria, em tua VERDADE, falando e agindo de modo admirável. Quem o poderá compreender ou explicar? Que luz é essa que por vezes me ilumina, e que fere meu coração sem o lesar? Atemorizo-me e inflamo-me: tremo porque, de certo modo, sou tão diferente dela; e inflamo-me, porque também sou semelhante a ela. A Sabedoria é a mesma sabedoria que brilha em mim de quando em quando: ela rasga as nuvens de minha alma, que novamente me encobrem quando dela me afasto, pelas trevas e pelo peso de minhas memórias. Na indigência, meu vigor enfraqueceu de tal modo, que nem posso mais suportar o meu bem, até que tu, Senhor que te mostraste compassivo com todas minhas iniquidades, cures também todas as minhas fraquezas. Redimirás minha vida da corrupção; hás de me coroar na piedade e na misericórdia, e saciarás com teus bens meus desejos, porque minha juventude será renovada com a da águia. Confissões XI, IX

Com certeza ainda estão cheios do erro do velho homem os que nos dizem: “Que fazia Deus antes de criar o céu e a terra?” — Se estava ocioso, se nada fazia, porque não continuou a se abster sempre de qualquer ação? Se em Deus apareceu um movimento novo, uma vontade nova de dar o ser ao que ainda não tinha criado, como falar de uma verdadeira eternidade se nela nasce uma vontade que não existia antes? Mas a vontade de Deus não é uma criatura, ela é anterior a toda criatura; nenhuma criação seria possível se a vontade do Criador não a precedesse. A vontade, portanto, pertence à própria substância de Deus. Logo, se na substância de Deus nasce algo que antes não existia, não se pode mais com VERDADE chamá-la eterna. E se, desde toda eternidade, Deus quis a existência da criatura, por que a criatura também não é eterna? Confissões XI, X

Senhor, que és a minha luz, tua VERDADE não escarnecerá também nisso o homem? Esse tempo passado, foi longo quando já havia passado ou quando ainda estava presente? Porque ele só podia ser longo enquanto existia alguma coisa que pudesse ser longa. Mas uma vez passado, não existia mais: donde se conclui que não podia ser longo, porque já deixara de existir. Não digamos, portanto: “O tempo passado foi longo” — pois não encontraremos nada que pudesse ter sido longo; uma vez passado não existe mais. Mas digamos: “O tempo presente foi longo” — porque só era longo enquanto presente. Ainda não havia passado, ainda não havia deixado de existir, e por isso era susceptível de ser longo. Mas logo que passou, deixou de ser longo, porque cessou de existir. Confissões XI, XV

Vejamos agora se, pelo menos, o ano em curso é presente. Se estamos no primeiro mês, os outros são futuros. Como acima, se estamos no segundo, o primeiro será passado, e os demais, futuros. Assim o ano que corre não está todo presente; e como não está todo presente, não é portanto VERDADE dizer-se que o ano esteja presente. Um ano compõe-se de doze meses, e seja qual for o mês considerado, será o único em curso. Mas o mês em curso não é presente, mas somente o dia. Vale o que dissemos antes: se estamos no primeiro dia, todos os outros são futuros; se estamos no último, todos os outros são passados; se estamos entre um desses dois dias, esse dia está entre os dias passados e os futuros. Confissões XI, XV

E tu, Deus, concede aos homens que percebam, que reconheçam neste modesto exemplo, o que as coisas grandes e pequenas têm em comum. Há astros e luminares celestes que nos servem de sinais e marcam as estações, os dias e os anos. Isso é VERDADE; todavia, como eu jamais diria que a volta realizada por aquela roda de madeira representa o dia, nem o sábio cuja opinião transcrevo poderia afirmar que a volta da roda não representa o tempo. Confissões XI, XXIII

Veja, pois, que o tempo é uma espécie de extensão. Mas eu o vejo, ou apenas tenho a impressão de vê-lo? Só tu mo demonstrarás, ó Luz, ó VERDADE! Confissões XI, XXIII

Insiste, ó minha alma, e presta grande atenção: Deus é nosso apoio. Ele é que nos criou, e não nós. Olha para lá, par o lado onde desponta a aurora da VERDADE. Confissões XI, XXVII

E repousarei imutável em ti, em tua VERDADE, na minha forma. não mais tolerarei as perguntas das pessoas que, pela enfermidade que é a pena de seu pecado, tem mais sede de saber do que lhes permite sua capacidade, que dizem: “Que fazia Deus antes de criar o céu e a terra?” — ou ainda: “Como lhe veio a ideia de criar algo, se antes nunca fizera nada” — Concede-lhes, Senhor, que reflitam no que dizem, que compreendam que não se pode falar nunca onde não há tempo. Quando se diz que alguém nunca fez nada, que se quer dizer senão que esse tal nada fez em tempo algum? Que eles compreendam que não pode existir tempo na ausência da criação, e deixem de semelhantes falácias. Confissões XI, XXX

São promessas tuas. E quem temerá ser enganado, quando a promessa vem da VERDADE? Confissões XII, I

Ó VERDADE, luz de meu coração, faze com que se calem as minhas trevas. Deixei-me cair nelas e fiquei às escuras; mas, mesmo do fundo desse abismo, eu te amei ardentemente. Andei, errante, mas lembrei de ti. Ouvi tua voz atrás de mim, que me exortava a que voltasse; mas dificilmente podia escutá-la, por causa do tumulto de minha alma. e agora, eis que, ardente e anelante, volto à tua fonte. Que ninguém mo impeça; beberei de sua água, e assim viverei. Que não seja eu minha própria vida! Vivi mal por minha culpa, e fui a causa de minha morte. Em ti eu revivo! Fala-me, ensina-me. Creio em teus livros, e tuas palavras encerram profundos mistérios. Confissões XII, X

Já me disseste, Senhor, com voz forte ao ouvido de minha alma, que és eterno, e que só tu possuis a imortalidade, porque não mudas nem de forma, nem de movimento; tua vontade não varia conforme o tempo, pois a vontade mutável não é imortal. Esta VERDADE me é clara em tua presença. Peço-te que ela se torne para mim cada vez mais clara, e sob tuas asas eu me mantenha atento a esta evidência. Confissões XII, XI

Também disseste, Senhor, com voz forte ao ouvido de minha alma, que todas as naturezas, todas as substâncias que não são o que és, mas que existem, tu as criaste; que só o nada não provém de ti, assim como o movimento de uma vontade que se afasta de ti, Ser supremo. Enfim, que nenhum pecado te causa dano, nem perturba a ordem de teu império, superior ou inferior. Essa VERDADE é clara para mim em tua presença. Peço-te que se torne para mim cada vez mais clara, e que sob tuas asas eu me mantenha atento a esta evidência. Confissões XII, XI

Que são teus dias, senão tua eternidade, como teus anos que não passam, porque és sempre o mesmo? Por isso, digo, faça compreender à alma, se possível, como tua eternidade transcende todos os temos. Tua morada, que nunca se afastou de ti, embora não te tendo co-eterna, graças à sua incessante e ininterrupta união contigo, não padece de vicissitudes do tempo. Essa VERDADE é clara para mim em tua presença. Peço-te que se torne para mim cada vez mais clara, e que sob tuas asas eu me mantenha atento a esta evidência. Confissões XII, XI

Ousareis apontar como falso o que, com voz clara, a VERDADE disse ao ouvido de minha alma sobre a verdadeira eternidade do Criador: ou seja, que sua substância não varia no tempo, e que sua vontade se confunde com sua substância? E que por isso ele não quer ora isto, ora aquilo, mas quer o que sempre quis, simultaneamente e para sempre. Sua vontade não se exerce repetidas vezes, não se propõe ora esta, ora aquela finalidade, não quer o que antes não queria, nem deixa de querer o que antes queria, uma vez que tal vontade seria mutável, e o que é mutável não é eterno; ora, nosso Deus é eterno. Confissões XII, XV

Tereis por falazes as palavras da VERDADE faladas ao ouvido de minha alma: que a espera das coisas futuras se torna contemplação, quando presentes, e que depois se transforma em memória, quando passadas? Que todo pensamento que varia assim é mutável, e que nada do que é mutável é eterno? Ora, nosso Deus é eterno. E, reunindo e condensando estas verdades, deduzo que meu Deus, o Deus eterno, não criou o mundo por um novo ato de volição, e que sua ciência não admite nada que seja transitório. Confissões XII, XV

Quero discutir diante de ti apenas com os que reconhecem por verdadeiras as afirmações que tua VERDADE revelou à minha inteligência. Os que o negam, que ladrem quanto quiserem, até ficar roucos. Tentarei persuadi-los a que se acalmem, e deem acesso em seus corações à tua palavra. Se não o quiserem e me repelirem, peço-te, meu Deus, que não te cales, não te afastes de mim. fala com VERDADE em meu coração, porque só tu podes falar assim. E eu os deixarei fora, soprando o e levantando terra contra os próprios olhos. Retirar-me-ei em mim mesmo, levantando a ti cânticos de amor, soluçando altos gemidos durante meu exílio, lembrando-me de Jerusalém, voltando para ela meu coração — Jerusalém, minha pátria e minha mãe — e para ti, que reinas sobre ela, seu pai, sua luz, seu tutor, seu esposo, suas castas e grandes delícias, sua firme alegria, enfim, todos seus bens inefáveis, porque és o único, soberano e verdadeiro Bem. Não me apartarei de ti até que reúnas todas as partes dispersas e deformadas do meu ser na paz dessa mãe muito amada, onde estão as primícias de meu espírito, e de onde me vêm todas as certezas, e nela me reformes e confirmes por toda a eternidade, ó meu Deus, minha misericórdia. Confissões XII, XVI

Eles dizem: “Sem dúvida, isso é VERDADE, mas não era isso que Moisés queria exprimir quando, inspirado pelo Espírito Santo, escreveu: “No princípio criou Deus e céu e a terra” — Pela palavra céu, ele não quis significar essa criatura espiritual ou intelectual, que contempla eternamente a face de Deus; e pela palavra terra, uma matéria informe. — Que quis dizer então? — O que nós afirmamos — respondem — isso é o que Moisés quis dizer, e o que expressou naquelas palavras. — E que é que afirmais? — Pelas palavras céu e terra quis significar, em primeiro lugar, globalmente e de forma concisa, todo o mundo visível, para em seguida pormenorizar, enumerando os dias, ponto por ponto, esse conjunto que aprouve ao Espírito Santo designar com uma expressão global. O povo rude e carnal ao qual falava era constituído de homens tais que julgou conveniente dar-lhes a conhecer apenas as obras visíveis de Deus”. Confissões XII, XVII

A VERDADE, Senhor é que criaste o céu e a terra. A VERDADE é que o princípio é tua Sabedoria, em que criaste todas as coisas. É também VERDADE que este mundo visível se compõe de duas grandes partes, o céu e a terra, síntese de todas as realidades criadas. É ainda VERDADE que tudo o que é mutável sugere a nosso pensamento a ideia de algo informe, susceptível de tomar forma, de mudar e de se transformar. Confissões XII, XIX

A VERDADE é que um ser tão intimamente unido a uma forma mutável que, embora sujeito em si a mudanças, nunca se transforma, não está sujeito ao tempo. A VERDADE é que a massa sem forma, que é quase o nada, não pode conhecer as vicissitudes do tempo. A VERDADE é que a matéria que constitui uma coisa, se assim podemos falar, toma o nome dessa coisa, e portanto, podemos chamar de céu e de terra a essa massa informe com a qual foram feitos o céu e a terra. Confissões XII, XIX

A VERDADE é que, de tudo o que recebeu forma, nada se aproxima mais do informe que a terra e o abismo. A VERDADE é que não apenas tudo o que foi criado e formado, mas ainda tudo o que possa ser criado se origina de ti, tu que és o autor de tudo que existe. A VERDADE é que tudo o que é formado a partir do informe, primeiro é informe, e depois recebe forma. Confissões XII, XIX

Todas essas verdades, das quais não duvidam os que de ti receberam a graça de ver com os olhos da alma, e que creem firmemente que teu servo Moisés falou em espírito de VERDADE, há quem dê esta interpretação: “No princípio Deus criou o céu e a terra” — isto é, Deus criou, em seu Verbo, que lhe é co-eterno, o mundo racional e sensível, ou espiritual e corporal. Outro diz: “No princípio Deus criou o céu e a terra” — isto é, Deus criou em seu Verbo, que lhe é co-eterno, toda a massa do mundo corpóreo, com tudo o que contém de realidades, manifestamente conhecidas. Confissões XII, XX

Assim, se o Gênesis é omisso quanto à criação de certas coisas, criação essa que está acima de dúvidas para uma sadia e uma inteligência segura, e se nenhuma doutrina racional ousa sustentar que essas águas são co-eternas a Deus, pelo fato de as vermos mencionadas no Gênesis sem a menção do momento de sua criação , por que haveríamos de aceitar, à luz da VERDADE, que essa matéria informe, que a Escritura chama de terra invisível e desordenada e de abismo tenebroso, foi feita por Deus do nada e por isso não é co-eterna a Deus, embora a narração da Escritura tenha deixado de referir o momento em que foi criada? Confissões XII, XXII

Ouço e medito essas opiniões na medida de meu fraco entendimento, que confesso a Deus, embora ele bem o conheça. Vejo que se podem originar duas espécies de opiniões sobre um testemunho de interprete fidedigno. Uma é reativa à veracidade das coisas, e outra à intenção daquele que as enuncia. Procurar conhecer a VERDADE sobre a criação é uma coisa; procurar saber o que Moisés, grande servo de tua lei, quis o que o leitor ou ouvinte entendessem de suas palavras, é outra. Confissões XII, XXIII

Quanto à primeira opinião, longe de mim todos que têm como verdades os seus erros! Quanto à segunda, longe de mim todos os que julgam falsidade o que Moisés disse. Possa eu unir-me em ti, alegrar-me em ti, Senhor, com aqueles que se alimentam de tua VERDADE na imensidão da caridade. Aproximemo-nos juntos das palavras de teu Livro, procurando tua vontade nas intenções de teu servo, a cuja pena as revelaste. Confissões XII, XXIII

Mas poderei dizer com a mesma certeza que Moisés teve essa intenção, e não outra, quando escreveu: “No princípio, criou Deus o céu e a terra”? — Embora esteja persuadido de que isto está claro na tua VERDADE, não vejo com igual certeza o que Moisés pretendia ao escrever tais palavras. Por essa expressão: “no princípio” pode ter significado: “no começo da criação”. Por céu e terra, pode ter querido dar-nos a entender, a natureza espiritual e corporal, não já formada e perfeita, mas uma e outra, só esboçada e sem forma. Vejo que ambos os sentidos são igualmente plausíveis. Mas não posso atinar em qual dos dois pensava Moisés quando escrevia essas palavras. Fosse porém qual fosse sua intenção ao exprimir essas palavras, eu não poderia duvidar de que tão grande homem tenha entrevisto a VERDADE e a tenha formulado adequadamente. Confissões XII, XXIV

Quando porém, me dizem: “O pensamento de Moisés não é o que dizes, é o que eu afirmo” — sem contudo provar a veracidade de uma ou outra interpretação, então, ó vida dos pobres, ó meu Deus, em cujo seio não há contradição, inunda de paz o meu coração, para que eu tenha paciência para suportar essas pessoas. Pois não emitem tais opiniões inspirados por Deus, ou porque tenham lido o pensamento de teu servo, mas porque são orgulhosos. Ignoram o pensamento de Moisés, mas só apreciam o deles, e não por que seja verdadeiro, mas por ser o deles. Assim não fosse, apreciariam igualmente a opinião alheia, quando verdadeira, assim como eu aprecio o que eles dizem de verdadeiro, não porque vem deles, mas porque é VERDADE, e que, por isso mesmo, é tanto deles como minha, pois pertence em comum a todos os amantes da VERDADE. Confissões XII, XXV

Senhor, teu julgamento é terrível. Porque tua VERDADE nem é um bem meu, nem o bem deste ou daquele: a VERDADE é o bem de todos nós; e tu nos conclamas abertamente a que participemos dela, com a advertência severa de não a possuirmos como bem privativo, para não sermos privados dela. De fato, quem reivindica apenas para si o que ofereces para gozo de todos, e quer para si o que é de todos, é rejeitado desse bem comum para o que é seu, isto é, da VERDADE para a mentira: o que fala mentira fala do que é seu. Confissões XII, XXV

Ouvem, pois, juiz excelente, ó Deus, que és a própria VERDADE: ouve o que respondo a esse contraditor. Confissões XII, XXV

É diante de ti que falo, e na presença de meus irmãos que usam legitimamente da lei, cujo fim á caridade. Escuta e vê o que lhes digo, se é de teu agrado. Eis as palavras fraternas e de paz que lhe dirijo: “Quando ambos vemos que tuas palavras são verdadeiras, ou as minhas palavras são verdadeiras, pergunto: onde o vemos? Certamente não é em ti que eu a vejo, nem tampouco é em mim que tu a vês. Ambos a vemos na VERDADE imutável, que está acima de nossas inteligências”. Confissões XII, XXV

Uma vez que não discordamos sobre essa luz do Senhor, nosso Deus, por que discutir sobre o pensamento de nosso próximo? Nós não o podemos ver como vemos a VERDADE imutável. Confissões XII, XXV

Quereria, se estivesse no lugar de Moisés — pois todos procedemos da mesma massa, e que é o homem se não te lembras dele? — e me tivesses confiado a missão de escrever o Gênesis, quereria receber de ti tal eloquência, tal qualidade de estilo, que mesmo os espíritos incapazes de compreender como foi que Deus criou, não pudessem rejeitar minhas palavras como superiores às suas forças; que os que já o pudessem, descobrissem, nas poucas palavras de teu servo, todas as verdades que sua reflexão já lhes tivesse proporcionado; e que se alguém, à luz de tua VERDADE, nelas percebesse outro significado, também ele o pudesse encontrar nessas mesmas palavras. Confissões XII, XXVI

Assim como uma fonte, em seu pequeno leito, torna-se depois mais abundante e, pelos diversos regatos que alimenta, banha espaços muito mais amplos que qualquer um deles, que deslizam através de muitas regiões, assim também a narração do ministro de tua palavra, que deveria alimentar a tantos interpretes, faz brotar de seu estilo sóbrio e conciso torrentes de límpida VERDADE, de onde cada um tira para si a VERDADE que pode, para depois desenvolvê-la em longas sinuosidades de palavras. Confissões XII, XXVII

Quando leem ou ouvem as palavras de Moisés, veem que tua estável e eterna permanência, ó Deus, domina todos os tempos passados e futuros, e por isso não existe criatura corpórea que não seja obra tua. Veem que tua vontade, confundindo-se com teu ser, criou todas as coisas sem sofrer modificação, sem que nasça nela uma decisão nova, que não existisse antes; que criaste o mundo, não tirando de tua substância uma imagem tua, forma substancial de toda realidade, mas tirando do nada uma matéria informe, diferente de ti mesmo; e esta poderia ser formada à tua imagem pela volta à tua Unidade, segundo a medida previamente estabelecida e concedida a cada ser, de acordo com sua espécie. Veem assim que todas as obras da criação são excelentes, ou porque permanecem próximas a ti, ou porque, afastadas de ti no tempo e no espaço, fazem ou sofrem as admiráveis variedades do mundo. Reconhecem essas coisas, e por isso se alegram na luz de tua VERDADE, à medida que o podem com suas forças terrenas. Confissões XII, XXVIII

Mas quem interpreta a palavra: “No princípio criou…” como se ela quisesse dizer: “Primeiramente Deus criou…” — apenas pode entender, por céu e terra, se quiser se manter coerente à VERDADE, a matéria do céu e da terra, isto é, da criação universal, tanto espiritual como material. Confissões XII, XXIX

Nessa diversidade de opiniões verdadeiras, que da própria VERDADE brote a concórdia! Que nosso Deus tenha compaixão de nós, para que usemos legitimamente da lei segundo o preceito que tem por fim a caridade pura. Confissões XII, XXX

Sei, contudo, que essas opiniões são verdadeiras, a não mera interpretações materialistas, sobre as quais já disse tudo o que pensava. São como meninos esperançosos aqueles que não temem as palavras do teu Livro, tão profundas em sua humildade, tão eloquentes em sua concisão. Mas nós todos que, eu o declaro, distinguimos e dizemos a VERDADE sobre tais palavras, amemo-nos uns aos outros; e amemos igualmente a ti, nosso Deus, fonte da VERDADE, pois temos sede, não de fantasias, mas da própria VERDADE. Honremos a teu servo, que nos legou tua Escritura, cheio de teu espírito, e estejamos certos que, ao escrever as palavras que lhe revelaste, ele teve em mira as revelações mais salientes da VERDADE e seus frutos proveitosos. Confissões XII, XXX

Eis, Senhor meu Deus! Quantas páginas escrevi sobre tão poucas palavras! Deste modo, minhas forças e o meu tempo serão suficientes para examinar todos os teus livros? Permite-me, pois, abreviar minhas confissões e adotar uma única interpretação, que me farás escolher como verdadeira, certa e boa, entre as muitas outras que me poderão ocorrer. Que minha confissão seja fiel o bastante para que eu tenha exatidão ao exprimir o pensamento de teu servo, pois para tal me esforçarei; e, se não o conseguir, que eu pelo menos diga o que tua VERDADE me quis dizer por suas palavras, como ela disse a Moisés o que lhe aprouve. Confissões XII, XXXII

Mas, ó luz da VERDADE, aproximo de ti meu coração para que ele não me ensine falsidades; dissipa-lhe as trevas e dize-me, eu to suplico por nossa mãe, a caridade, dize-me, por que só depois de ter nomeado o céu, a terra invisível e informe e as trevas sobre o abismo, por que só então é que as Escrituras falam de teu Espírito? Será porque convinha apresentá-lo assim pairando sobre alguma coisa? E seria isso possível se não mencionasse primeiro sobre o que pairava? De fato, não era sobre o Pai nem sobre o Filho que ele pairava, e seria impróprio falar assim se não pairasse sobre alguma coisa. Confissões XIII, VI

Leem, escolhem, amam. Leem perpetuamente, e o que eles leem jamais fenece; escolhendo e amando, leem tua imutável vontade. Teu códice jamais de fecha, jamais se enrola, porque tu mesmo és eternamente esse livro; tu os estabeleceste acima deste firmamento, levantado por ti acima da fraqueza dos povos da terra, para que estes, olhando-o, reconheçam tua misericórdia, que te anuncia no tempo, tu criador do tempo. Tua misericórdia está no céu, e tua VERDADE se eleva até às nuvens. As nuvens passam, mas o céu permanece. Os que pregam tua palavra passam para uma outra vida, mas tua Escritura se estende sobre os povos até o fim dos séculos. Confissões XIII, XV

Por desígnio eterno, lanças sobre a terra os bens do céu no tempo oportuno; a um, teu Espírito dá a palavra de sabedoria, luminar maior para os que encontram seu deleite na luz de uma VERDADE clara como o raiar do dia; a outro dás, pelo mesmo Espírito, a palavra de ciência, luminar menor; a outro a ; a outro o poder de curar; a outro o dom dos milagres; a outro a graça da profecia; a este o discernimento dos espíritos, àquele o dom das línguas. E todos esses dons são como estrelas, são obra de um só e mesmo Espírito, que reparte a cada um os seus dons como lhe agrada, e que faz aparecer tais astros para o bem comum. Confissões XIII, XVIII

Por certo que não. Há coisas cuja ideia é completa, acabada, que não se multiplicam no curso das gerações, tais como as luzes da sabedoria e da ciência. Mas esses seres são o objeto de operações materiais múltiplas e variadas e, crescendo umas de outras, se multiplicam sob tua benção, meu Deus. É assim que refreias a impertinência de nossos sentidos, dando a uma VERDADE única o meio de se exprimir de varias maneiras, por movimentos do corpo. Eis que produziram tuas águas, pela onipotência de teu Verbo. Tudo isto se originou das necessidades de povos afastados de tua VERDADE eterna, por meio do teu Evangelho. De fato foram essas águas que fizeram brotar essas coisas, e sua amargura estagnante foi causa de que teu Verbo as criasse. Confissões XIII, XX

Assim, Senhor, nosso Deus e nosso Criador, quando nossos afetos mundanos, que nos causam a morte porque nos faziam viver mal, se afastarem do amor do mundo, quando nossa alma, vivendo bem, se tornar alma viva, e quando se cumprir a palavra que proferiste pela boca de teu Apostolo: “Não vos conformeis com o mundo em que vivemos” — então seguir-se-á aquilo que acrescentaste imediatamente ao dizer: “Mas reformai-vos na novidade de vossa mente”. — E já não será “segundo vossa espécie” — como se fosse imitar nossos predecessores ou viver seguindo os exemplos de alguém melhor que nós. Não disseste: “Que o homem seja feito de acordo com sua espécie” — mas “façamos o homem à nossa imagem e semelhança” — para que pudéssemos reconhecer tua vontade. Para tanto, o divulgador de teu pensamento, que gerou filhos pelo Evangelho, não querendo que continuassem como crianças os que alimentara com leite e agasalhara em teu seio como uma ama, dizia: “Reformai-vos renovando vosso coração, para discernir a vontade de Deus, que é bom, agradável e perfeito”. — Também não dizes: “Faça-se o homem” — mas “à nossa imagem e semelhança”. Aquele que é renovado no espírito, que compreende e conhece tua VERDADE, não mais carece que um outro lhe ensine a imitar sua espécie. Graças às tuas lições, ele reconhece por si qual é tua vontade, o que é bom, agradável e perfeito. Tu lhe ensinas, pois agora é capaz deste ensinamento, a ver a Trindade da Unidade e a Unidade da Trindade. Eis por que, depois de falar no plural: “Façamos o homem” se diz no singular: “E Deus criou o homem”. Depois deste plural: “À nossa imagem” — este singular: “À imagem de Deus”. Assim o homem “se renova pelo conhecimento de Deus, à imagem de seu criador” — e “tornando-se espiritual, julga todas as coisas”, que certamente hão de ser julgadas, “mas ele não é julgado por ninguém”. Confissões XIII, XXII

Quer dizer, então, ó minha Luz, ó VERDADE? Que tais palavras carecem de senso e foram ditas em vão? De nenhum modo, ó Pai de misericórdia. Longe de mim, longe do servidor de teu Verbo, uma tal afirmação! Apenas não compreendo o sentido dessas palavras, e espero que os melhores que eu, ou seja, os mais inteligentes, a entendam melhor, segundo a sabedoria que deste, meu Deus, a cada um. Que te agrade ao menos a confissão, que faço diante de ti, de minha certeza de que não falaste em vão aquelas palavras. Confissões XIII, XXIV

É assim que as águas do mar se povoam, e não se moveriam sem as várias interpretações das palavras. É assim que a terra se povoa de gerações humanas; sua aridez se fecunda pela sua paixão da VERDADE, sob o poder da razão. Confissões XIII, XXIV

Quero ainda dizer, Senhor meu Deus, o que me inspiram as palavras que seguem da tua Escritura. E o farei sem medo, porque direi a VERDADE; pois não vem de ti, por acaso, a inspiração do que queres que eu diga? Não creio que eu possa dizer a VERDADE se tu não me inspirares, pois tu és a própria VERDADE, e todo homem é mentiroso. Por isto, quem mente fala do que é seu. Logo, para falar a VERDADE, só falarei o que me inspiras. Confissões XIII, XXV

Nutrem-se com esses alimentos os que neles se alegram; não encontram neles alegria os homens cujo deus é seu ventre. E até entre os que ofertam esses frutos, o fruto não é o que eles dão, mas o espírito com que o oferecem. Por isso, naquele que servia a seu Deus e não a seu ventre percebo claramente a fonte de sua alegria; e participo fortemente de seu regozijo. Paulo recebera os presentes que os filipenses lhes tinham mandado por intermédio de Epafrodito. Vejo bem a razão de sua alegria. E é dela que se nutria, porque ele diz com VERDADE: “Alegrei-me muito no Senhor, vendo enfim reflorescer para mim vossa estima, da qual já andáveis desgostados”. Confissões XIII, XXVI

Porque ele diz em seguida: “Eu não procuro a dádiva, mas o fruto”. — Aprendi de ti, meu Deus, a discernir a dádiva do fruto. O dom é a própria coisa dada por aquele que acode às nossas necessidades; é o dinheiro, a comida, a bebida, a roupa, um abrigo, e auxílio. O fruto é a vontade boa e reta do doador. O bom Mestre não se limita a dizer: “Aquele que receber um profeta” — mas acrescenta: “Aquele que receber um justo…” — mas acrescenta: “na qualidade de justo”. — E assim, aquele receberá a recompensa do profeta, e o outro, a do justo. Ele não diz apenas: “Aquele que der um copo de água fresca a um de meus pequeninos” — mas acrescenta: “na qualidade de discípulo”. — E prossegue: “Na VERDADE vos digo: este não ficará sem recompensa”. Confissões XIII, XXVI

Por isso, Senhor, direi diante de ti a VERDADE. Por vezes, ignorantes e infiéis que, para serem iniciados e conquistados para a , precisam desses rituais de iniciação e de milagres mirabolantes, simbolizados, a meu ver, pelos peixes e pelos cetáceos, acolhem teus servos e os socorrem, ou os auxiliam nas necessidades da vida presente, sem saber por que o fazem nem em vista de que devem agir. Desse modo, nem aqueles os alimentam, nem estes são alimentados por eles, pois os primeiros não são movidos por vontade santa e reta, e os segundos não se alegram com os dons recebidos, não descobrindo neles fruto algum. Ora, a alma só se alimenta com o que lhe traz alegria. É esta a razão pela qual os peixes e os cetáceos se nutrem de alimentos que a terra só pode produzir depois de separados e purificados de amargura das águas do mar. Confissões XIII, XXVII

Procurei ver com atenção se forma sete ou oito as vezes que constataste a bondade de tuas obras quando elas te agradaram. Mas não encontrei uma sequência temporal não tua visão, de onde pudesse deduzir que foi esse o número de vezes que viste tuas criaturas. Então disse: “Senhor, não será verdadeira tua Escritura, inspirada por ti, que és a própria VERDADE? Por que então me dizes que tua visão das coisas não está sujeita ao tempo, enquanto tua Escritura me diz que dia por dia viste a bondade de tuas obras? E calculei quantas vezes o fizeste.” Confissões XIII, XXIX

Ouvi, Senhor, meu Deus, tua voz, e recolhi em meu coração uma gota de doçura de tua VERDADE. Compreendi que há uns aos quais tuas obras desagradam. Eles sustentam que muitas delas fizeste constrangido pela necessidade, como a estrutura dos céus, a ordem dos astros; afirmam que não as criaste por ti mesmo, mas que elas já existiam alhures, criadas por outra fonte; que te limitaste a reuni-las, a ordená-las, a entrelaçá-las; que com elas construíste as muralhas do mundo, depois de vencido teus inimigos, para que essa construção os mantivesse cativos, e não mais pudessem se revoltar contra ti; que não criaste nem organizaste outros seres, como os corpos carnais, os animais pequenos e tudo o que se prende à terra por meio de raízes; que foi um espírito hostil, uma outra natureza, não criada por ti, e que se opõe a ti nas regiões inferiores do mundo, que as gerou e organizou. Esses insensatos falam assim porque não veem tuas obras através de teu Espírito, nem te reconhecem neles. Confissões XIII, XXX

Que homem poderá dar ao homem a compreensão desta VERDADE? Que anjo a outro anjo? Confissões XIII, XXXVIII