Agostinho: trevas

Assim, pois, meu Senhor e meu Deus, tu que me deste a vida e corpo, o qual dotaste, como vemos, de sentidos e proveste de membros, adornando-o de beleza e de instintos naturais, com os quais pudesse defender sua integridade e conservação, tu me mandas que te louve por esses dons e te confesse e cante teu nome altíssimo. Serias Deus onipotente e bom ainda que só tivesses criado apenas estas coisas, que nenhum outro pode fazer senão tu, ó Unidade, origem de todas as variedades, ó Beleza, que dás forma a todas as coisas, e com tua lei as ordenas! Tenho vergonha, Senhor, de ter de somar à vida terrena que vivo aquela idade que não recordo ter vivido, na qual acredito pelo testemunho de outros, por vê-lo assim em outras crianças, embora essa conjectura mereça toda a . As TREVAS em que está envolto meu esquecimento a seu respeito assemelham-se à vida que vivi no ventre de minha mãe. Confissões I, VII

Mas onde estavas então para mim? e quão longe peregrinava eu, longe de ti, privado até as bolotas com que eu alimentava os porcos! Quão melhores eram as fábulas dos gramáticos e poetas que todos aqueles enganos! Porque os versos, a poesia e a fábula de Medeia soando pelo ar são certamente mais úteis que os cinco elementos do mundo em seus mil disfarces, conforme os cinco antros de TREVAS, que não existem, mas que matam a quem nele acredita. Porém, versos e poesia eu os posso converter em iguaria para meu espírito e, quanto ao voo de Medeia, se o recitava bem, não lhe afirmava veracidade e, se me agradava ouvi-lo, não lhe dava crédito. Mas — ai de mim! — eu acreditei naqueles erros dos maniqueístas. Confissões III, VI

Mas estendeste tua mão do alto, e arrancaste minha alma deste abismo de TREVAS, enquanto minha mãe, tua fiel serva, chorava-me diante de ti muito mais do que as outras mães costumam chorar sobre o cadáver dos filhos, pois via a morte de minha alma com a e o espírito que havia recebido de ti. E tu a escutaste, Senhor, tu a ouviste e não desprezaste suas lágrimas que, brotando copiosas, regavam o solo debaixo de seus olhos por onde fazia sua oração; sim, tu a escutaste, Senhor. Com efeito, donde podia vir aquele sonho, com que a consolaste, ao ponto de me admitir em sua companhia e mesa, fato que havia me negado porque aborrecia e detestava as blasfêmias do meu erro? Confissões III, XI

Seguiram-se, efetivamente, quase nove anos, durante os quais continuei a me revolver naquele abismo de lodo e TREVAS de erro, afundando-me tanto mais quanto mais esforços fazia para me libertar. Entretanto, aquela piedosa viúva, casta e sóbria como as que tu amas, já um pouco mais alegre com a esperança, porém, não menos solícita em suas lágrimas e gemidos, não cessava de chorar por mim em tua presença em todas as horas de suas orações; e suas preces eram aceitas a teus olhos, mas deixava-me ainda revolver-me e envolver-me naquela escuridão. Confissões III, XI

. É isto o que se ama nos amigos; e de tal modo se ama, que a consciência humana se julga culpada se não ama ao que a ama, ou se não retribui amor com amor procurando na pessoa do amigo apenas o sinal exterior de sua benevolência. Daqui o pranto do luto quando morre um amigo, as TREVAS de dores, e as lágrimas que inundam o coração quando a doçura se transforma em angústia, e a morte dos que morrem na morte dos que vivem. Confissões IV, IX

Voltai, pecadores, ao coração, e ligai-vos àquele que é vosso criador. Firmai-vos nele, e estareis firmes; descansai nele, e estareis descansados. Para onde ides por esses ásperos caminhos? Para onde ides? O bem que amais, dele procede, mas só é bom e suave quando se dirige a ele; porém, será justamente amargo se, abandonando a Deus, amardes injustamente o que dele procede. Por que continuai por caminhos difíceis e trabalhosos? O descanso não está onde o buscais. Buscais a vida feliz na região das TREVAS: não está lá. Como achar a vida bem-aventurada onde nem sequer há vida? Confissões IV, XII

Assim como se cometem crimes quando o movimento do espírito é vicioso e se atira insolente e turbulento, e se cometem infâmias quando o afeto da alma, fonte dos prazeres carnais, é imoderado, assim os erros e falsas opiniões contaminam a vida se a alma racional está viciada, como estava a minha então. Ignorava que ela deveria ser ilustrada por outra luz para participar da verdade, por não ser da mesma essência da verdade, porque tu, Senhor, alumiarás minha lâmpada; tu, meu Deus, iluminarás minhas TREVAS, e todos participamos de tua plenitude, porque és a luz verdadeira que ilumina a todo homem que vem a este mundo, e porque em ti não há mudança nem a momentânea obscuridade. Confissões IV, XV

Ó minha esperança desde a minha juventude! Onde estavas, ou a que lugar te havias retirado? Acaso não foste tu quem me criou, diferenciando-me dos animais, fazendo-me mais sábio que as aves do céu? Mas eu caminhava por TREVAS e resvaladouros, e te buscava fora de mim, e não encontrava o Deus de meu coração; caí nas profundezas do mar. Eu perdera a confiança e desesperava de encontrar a verdade. Confissões VI, I

Foi o que me disse. Mas diante de ti, ó fonte das misericórdias, redobrava as súplicas e lágrimas, para que apressasses teu auxílio e aclarasses minhas TREVAS. Ia com maior solicitude à igreja para ficar suspensa dos lábios de Ambrosio, como da fonte de água viva que jorra para a vida eterna. Minha mãe amava este varão como a um anjo de Deus, pois sabia que fora ele quem me fizera mergulhar naquela dúvida, pela qual antevia, segura, que eu haveria de passar da enfermidade pela saúde, depois de um perigo mais grave, que os médicos chamam de crítico. Confissões VI, I

Eram três bocas famintas que comunicavam mutuamente a própria fome, esperando que lhes desses comida no tempo oportuno. Na amargura, que graças à tua misericórdia sempre seguia nossas ações mundanas, se desejávamos entender a causa dos sofrimentos, encontrávamos TREVAS. Afastávamos gemendo e dizendo: Até quando durará este sofrimento? E isto repetíamos com frequência, mas não abandonávamos nosso modo de vida, porque não víamos nenhuma certeza a que nos pudéssemos abraçar, se o abandonássemos. Confissões VI, X

Assim conjeturava eu, por não poder imaginar-te de outra forma; mas minha conjectura era falsa. Porque, se assim fosse, uma porção maior da terra conteria parte maior de ti; e uma porção menor da terra conteria parte menor. E de tal modo estariam as coisas impregnadas de ti, que o corpo de um elefante conteria tanto mais de teu ser que o corpo do passarinho, pois aquele é maior do que este, e ocupa mais espaço. Assim, fragmentado entre as partes do universo, estarias presente nas grandes partes do universo por grandes partes de ti, e nas pequenas por pequenas, o que não acontece. Mas ainda não tinhas iluminado minhas TREVAS. Confissões VII, I

“Que poderia fazer contra ti — dizia aquela não sei que raça de TREVAS, que os maniqueus costumam opor-te como massa hostil — se não quisesses lutar contra ela?” Confissões VII, II

Neles eu li — não com estas palavras, mas substancialmente o mesmo e expresso com muitos e diversos argumentos — que “no princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Este estava desde o princípio em Deus. Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada foi feito do que foi feito. O que foi feito é vida nele, e a vida era a luz dos homens. E a luz brilha nas TREVAS, mas as TREVAS não a compreenderam. Diziam também que a alma do homem, embora dê testemunho da luz, não é a luz, mas o Verbo, Deus, é a verdadeira luz, que ilumina a todo homem que vem a este mundo. E que neste mundo estava, e que o mundo é criatura sua, e que o mundo não o conheceu”. Confissões VII, IX

Repelido para longe de ti, compreendi em que consistia essa verdade, que as TREVAS de minha alma me impediam de contemplar. Estava certo de tua existência e de que és infinito, sem contudo te estenderes por espaços finitos ou infinitos; e de que és verdadeiramente aquele que é sempre idêntico a si mesmo, sem te mudares em outro, nem sofrer alteração alguma, quer parcialmente ou com algum movimento, quer de qualquer outro modo; e de que tudo o mais vem de ti, pela única e irrefutável razão de que existe. Tinha certeza de todas estas verdades, mas me achava ainda demasiado fraco para gozar de ti. Tagarelava muito, como se fora competente nisso, mas se não procurasse o caminho da verdade em Cristo, nosso Salvador, não seria perito, mas perituro. Já começava a querer parecer sábio, cheio de meu castigo, e não chorava, mas orgulhava-me com a ciência. Onde estava aquela caridade erigida sobre o alicerce da humildade, que é Cristo Jesus? Ou talvez me a ensinariam aqueles livros? Creio que quiseste que com eles me encontrasse antes de meditar nas tuas Escrituras, para que fixassem em minha memória os afetos que nela experimentei. Depois, quando encontrasse em teus livros a paz do coração, sarada com tuas mãos as feridas de minha alma, pudesse discernir e perceber a diferença entre presunção e humildade, entre os que veem para onde se deve ir, e não veem por onde se vai, nem o caminho que conduz à pátria bem-aventurada, não só para contemplá-la, mas também para habitá-la. Confissões VII, XX

Eles é que são de fato maus, que seguem tais más doutrinas; somente serão bons quando aceitarem a verdade, concordando com os que a possuem. E assim o Apóstolo poderá dizer deles: Outrora fostes TREVAS, mas agora sois luz no Senhor. Mas esses, querendo ser luz não no Senhor, mas em si mesmos, julgam que a natureza da alma á a mesma que a de Deus; vão-se tornando TREVAS ainda mais densas, pois em sua terrível arrogância se afastam ainda mais de ti, luz verdadeira, que ilumina a todo homem que vem a este mundo. Atentai para o que dizeis, e enchei-vos de vergonha. Aproximai-vos dele, e sereis iluminados, e vossos rostos não serão cobertos de confusão. Confissões VIII, X

Não quis ler mais, nem era necessário. Quando cheguei ao fim da frase, uma espécie de luz de certeza se insinuou em meu coração, dissipando todas as TREVAS de dúvida. Confissões VIII, XII

Tinhas alvejado nosso coração com as setas do teu amor, e levávamos tuas palavras cravadas em nossas entranhas; os exemplos de teus servos, que das TREVAS trouxeram para a luz, e da morte para a vida, ardiam no fundo de nosso espírito em uma espécie de fogueira, que inflamava e consumia nosso torpor, para que não mais nos inclinássemos para as baixezas. Confissões IX, II

Eu lia: Irai-vos, e não queirais pecar. Como me perturbavam tais palavras, meu Deus! Já havia aprendido a me irar contra mim mesmo pelos meus crimes passados, para não pecar mais; e de uma cólera justa, porque não era uma natureza estranha, da raça das TREVAS, a que em mim pecava, como dizem os que não se indignam contra si, e acumulam contra si a ira para o dia da ira e da revelação de teu justo juízo? Confissões IX, IV

Meus bens já não eram exteriores, e eu já não os buscava à luz deste sol, com olhos carnais. Os que querem gozar externamente, facilmente se dissipam e derramam pelas coisas visíveis e temporais, lambendo com pensamento faminto apenas as aparências. Oh! Se eles se esgotassem com a privação, e perguntassem: Quem nos mostrará o bem? E que ouvissem nossa resposta: Está gravada dentro de nós a luz de teu rosto, Senhor! — Porque não somos nós a luz que ilumina a todo homem, mas somos iluminados por ti, para que sejamos luz em ti, nós que outrora fomos TREVAS. Confissões IX, IV

Confessarei, portanto, o que sei de mim, e também o que de mim ignoro, porque o que sei de mim só o sei porque me iluminas, e o que de mim ignoro continuarei ignorando até que minhas TREVAS se transformem em meio-dia, em tua presença. Confissões X, V

Há ainda um pouco de luz entre os homens: caminhem, caminhem, para que as TREVAS não os surpreendam. Confissões X, XXIII

Quanto à sedução dos perfumes, não me preocupo demais. Quando ausentes, não os procuro; quando presentes, não os recuso, mas estou sempre disposto a deles me abster. Pelo menos assim me parece, embora talvez me engane. TREVAS deploráveis me envolvem, que me escondem minhas faculdades reais; por isso, quando meu espírito indaga à respeito de suas forças, bem sabe que não pode confiar em si mesmo, por seu íntimo permanecer muitas vezes insondável, até que a experiência lho manifeste. Ninguém pois se deve ter seguro nesta vida, que é tentação perpétua. Pois. Como podemos nos tornar melhores, não aconteça de nos tornar piores. Nossa única esperança, nossa única confiança, nossa firme promessa é tua misericórdia. Confissões X, XXXII

Ora, como é necessário, para se adequar à sociedade, fazer-se amar e temer pelos homens, o inimigo de nossa verdadeira felicidade nos alicia, e por toda parte semeia seus laços gritando: “Bravo! Muito bem!” — para que, ávidos, recolhamos as lisonjas e nos deixemos incautamente enredar. Seu intento é que deixemos de encontrar nossa alegria na verdade, para buscá-la na mentira dos homens; estimula em nós o prazer em nos fazer temer e amar, não pelo teu amor, mas em teu lugar. Com isso nos tornamos semelhantes a ele, não unidos na caridade, mas partilhando de suas penas. Ele quis fixar sua morada no aquilão (vento gelado do norte), para que nós, nas TREVAS e no frio, servíssemos o perverso e sinuoso imitador de teu poder. Confissões X, XXXVI

Mesmo que eu fosse capaz de enumerar na ordem tais coisas, as gotas de meu tempo me são preciosas. De há muito que anseio ardentemente meditar sobre tua lei, e te confessar nela minha ciência e minha ignorância, os começos de tuas luzes na minha alma e o que ainda resta em mim de TREVAS, até que minha fraqueza seja absorvida por tua força. Não quero gastar em outros cuidados as horas de liberdade que me restam além dos cuidados indispensáveis do corpo, do trabalho intelectual, dos serviços que devemos aos homens, e dos que prestamos sem lhe dever. Confissões XI, II

É nesse princípio, ó Deus, que criaste o céu e a terra; em teu Verbo, em teu Filho, em tua virtude, em tua sabedoria, em tua verdade, falando e agindo de modo admirável. Quem o poderá compreender ou explicar? Que luz é essa que por vezes me ilumina, e que fere meu coração sem o lesar? Atemorizo-me e inflamo-me: tremo porque, de certo modo, sou tão diferente dela; e inflamo-me, porque também sou semelhante a ela. A Sabedoria é a mesma sabedoria que brilha em mim de quando em quando: ela rasga as nuvens de minha alma, que novamente me encobrem quando dela me afasto, pelas TREVAS e pelo peso de minhas memórias. Na indigência, meu vigor enfraqueceu de tal modo, que nem posso mais suportar o meu bem, até que tu, Senhor que te mostraste compassivo com todas minhas iniquidades, cures também todas as minhas fraquezas. Redimirás minha vida da corrupção; hás de me coroar na piedade e na misericórdia, e saciarás com teus bens meus desejos, porque minha juventude será renovada com a da águia. Confissões XI, IX

Confesso-te, Senhor, que ainda não sei o que é tempo. E torno a confessar, Senhor, eu o sei, que digo estas coisas no tempo, e que de há muito estou falando do tempo, e que esse muito também não seria o que é senão pela duração do tempo. Mas como posso saber isto, se desconheço o que é o tempo? Talvez eu ignore a arte de exprimir o que sei. Ai de mim, que não sei nem mesmo o que ignoro! Eis-me diante de ti, meu Deus, tu vês que não minto e que falo de coração. Acenderás minha candeia, Senhor meu Deus, e iluminarás minhas TREVAS. Confissões XI, XXV

Mas esta terra era invisível e informe, era um profundo abismo acima do qual não pairava nenhuma luz, pois não tinha nenhuma forma. Por isso inspiraste estas palavras: “As TREVAS cobriam o abismo”. — Mas que são TREVAS, senão ausência da luz? De fato, se então existisse, onde estaria a luz senão sobre a terra, para iluminá-la? Mas como a luz ainda não existia, o que era a presença das TREVAS, senão a ausência da luz? As TREVAS reinavam sobre o abismo porque a luz não existia, do mesmo modo que onde não há ruído reina o silêncio. E que significa reinar o silêncio, senão falta de som? Confissões XII, III

Mas o céu do céu pertence a ti, Senhor; a terra, que deste aos filhos dos homens para que a vissem e tocassem, não era tal como agora e vemos e tocamos. Era invisível e informe: um abismo sobre o qual não havia luz. As TREVAS se estendiam sobre o abismo — isto é: mais profundas que o abismo. Esse abismo das águas, agora visíveis, tem até em suas profundezas uma luminosidade, perceptível aos peixes e aos animais que se arrastam no fundo. Mas tudo isso era quase o nada, sendo ainda completamente informe; porém já era um ser apto a receber uma forma. Confissões XII, VIII

Já havias criado outro céu antes de haver dia; mas era o céu do céu, porque no princípio criaste o céu e a terra. Quanto a esta mesma terra, nada mais era que matéria informe, sendo invisível, caótica e as TREVAS reinando sobre o abismo. É desta terra invisível, caótica, desta massa informe, deste quase nada, que formaste todas as coisas de que é formado e não formado este mundo mutável, domínio da transformação, que torna possíveis a percepção e a medida do tempo. Porque o tempo é feito da mudança das coisas, de variações e transformações das formas, cuja matéria é esta terra invisível, de que falei acima. Confissões XII, VIII

Ó Verdade, luz de meu coração, faze com que se calem as minhas TREVAS. Deixei-me cair nelas e fiquei às escuras; mas, mesmo do fundo desse abismo, eu te amei ardentemente. Andei, errante, mas lembrei de ti. Ouvi tua voz atrás de mim, que me exortava a que voltasse; mas dificilmente podia escutá-la, por causa do tumulto de minha alma. e agora, eis que, ardente e anelante, volto à tua fonte. Que ninguém mo impeça; beberei de sua água, e assim viverei. Que não seja eu minha própria vida! Vivi mal por minha culpa, e fui a causa de minha morte. Em ti eu revivo! Fala-me, ensina-me. Creio em teus livros, e tuas palavras encerram profundos mistérios. Confissões XII, X

Mas a terra era invisível e informe, e as TREVAS reinavam sobre o abismo. Por essas palavras, a Escritura sugere a ideia de algo informe, para ensinar aos poucos aos espíritos que não podem conceber que a falta absoluta de forma não se confunde com o nada. É dessa massa informe que deveria ser criado um segundo céu, uma terra visível, ordenada, a água cristalina, e enfim tudo o que foi feito na criação, de acordo com a tradição das Escrituras, em dias sucessivos. Confissões XII, XII

“No princípio criou Deus o céu e a terra. A terra era invisível e informe, e as TREVAS se estendiam sobre o abismo.” Ouço estas palavras, meu Deus, e não encontrando menção do dia em que criaste essas coisas, concluo dessa omissão que se trata do céu do céu, do céu intelectual, onde a inteligência conhece simultaneamente e não por partes; não por enigma, ou como um espelho, mas por inteiro, em plena luz, face a face; conhece não ora isto, ora aquilo, mas, como disse, simultaneamente, sem a sequência temporal. Concluo também que se trata da terra invisível, informe, estranha às vicissitudes do tempo, que ora causam isto, ora aquilo, pois onde não há forma não pode haver isto ou aquilo. Confissões XII, XIII

Quanto a esta terra invisível e informe, a este abismo de TREVAS, com que, durante seis dias, foram sucessivamente criadas e ordenadas todas as coisas visíveis que são conhecidas de todos, eles concordam comigo em que se pode entender com isso, sem erro, essa matéria informe de que falei. Confissões XII, XVII

Por isso a matéria comum a todas as coisas invisíveis e visíveis, matéria ainda informe, mas susceptível de forma, e de onde se fariam o céu e a terra — em outras palavras, a criação invisível e visível — mas uma e outra tendo recebido forma, foi designada por essas expressões de terra invisível e informe, e de TREVAS reinando sobre o abismo. Com a seguinte distinção: por terra invisível e informe deve-se entender a matéria corpórea antes de ser qualificada pela forma; e por TREVAS reinando sobre o abismo, a matéria espiritual antes da restrição de sua, digamos, imoderada fluidez, e antes de ser iluminada pela sabedoria. Confissões XII, XVII

O mesmo ocorre em relação à interpretação das palavras que se seguem. Entre essas, todas verdadeiras, cada um escolhe uma. Este diz: “A terra era invisível e caótica, e as TREVAS se estendiam sobre o abismo” — isto é, essa massa corpórea, que Deus fez, era a matéria ainda sem forma, sem ordem, sem luz, das coisas corpóreas. Confissões XII, XXI

Outro diz: “A terra era invisível e caótica, e as TREVAS se estendiam sobre o abismo” — isto é, esse conjunto que chamamos de terra e céu era a matéria ainda informe e tenebrosa, da qual seriam tirados o céu e a terra corpóreos, com tudo o que nossos sentidos físicos neles percebem. Confissões XII, XXI

Outro diz: “A terra era invisível e caótica, e as TREVAS se estendiam sobre o abismo” — isto é, esse conjunto que chamamos de céu e de terra era a matéria ainda informe e tenebrosa, donde seriam feitos o céu inteligível, noutros termos, o céu do céu, e a terra, isto é, toda natureza corpórea, nela incluindo o céu material, ou seja, a matéria de toda criatura visível e invisível. Confissões XII, XXI

Outro diz: “A terra era invisível e caótica, e as TREVAS se estendiam sobre o abismo” — isto é, não quis a Escritura chamar à massa informe de céu e de terra, porque ela já existia; é dessa massa que ela chamou de terra invisível, caótica, abismo de TREVAS, é dela, que Deus criou o céu e a terra, isto é, a criatura espiritual e a corporal. Confissões XII, XXI

E outro ainda: “A terra era invisível e caótica, e as TREVAS se estendiam sobre o abismo” — isto é, já existia uma matéria informe, da qual a Escritura diz que Deus criou o céu e a terra, toda a massa corporal do mundo, dividido em duas grandes partes, uma superior, outra inferior, com todas as criaturas nelas existentes e que nos são familiares. Confissões XII, XXI

Mas seu bem reside em se manter unido a ti, para não perder, afastando-se, a luz que adquiriu com a tua proximidade, tornando a cair em uma vida semelhante a um abismo de TREVAS. Confissões XIII, II

E também nós, que por nossa alma somos criaturas espirituais, nós nos afastamos de ti, nossa luz, nós fomos outrora TREVAS nesta vida e ainda padecemos por entre os restos de nossas TREVAS, até que nos tornamos tua justiça em teu Filho único, como as montanhas de Deus. Pois fomos objetos de teus juízos, que são profundos como abismos. Confissões XIII, II

Incorruptível, imutável, bastando-se a si mesma, tua vontade era suspensa acima da vida que tinhas criado, para a qual viver não é o mesmo que viver feliz, porque ela vive, mesmo quando flutua sobre as TREVAS. Esta vida carece ainda voltar-se para seu Criador, para viver cada vez mais próxima à fonte da vida, para ver a luz na Luz divina, e nela haurir perfeição, brilho e felicidade. Confissões XIII, IV

Já falei longamente do céu do céu, da terra invisível e informe e do abismo das TREVAS, onde a natureza espiritual errante e fluida permaneceria tal se não se voltasse para Aquele de quem toda vida procede, para que, por meio de sua luz, se tornasse viva e bela, o céu do céu, criado mais tarde entre a água superior e a água inferior. Confissões XIII, V

Mas, ó luz da verdade, aproximo de ti meu coração para que ele não me ensine falsidades; dissipa-lhe as TREVAS e dize-me, eu to suplico por nossa mãe, a caridade, dize-me, por que só depois de ter nomeado o céu, a terra invisível e informe e as TREVAS sobre o abismo, por que só então é que as Escrituras falam de teu Espírito? Será porque convinha apresentá-lo assim pairando sobre alguma coisa? E seria isso possível se não mencionasse primeiro sobre o que pairava? De fato, não era sobre o Pai nem sobre o Filho que ele pairava, e seria impróprio falar assim se não pairasse sobre alguma coisa. Confissões XIII, VI

O anjo caiu, a alma do homem caiu, revelando assim as profundas TREVAS em que teria caído o abismo que continha todas as criaturas espirituais, se não tivesses dito desde o começo: “Faça-se a luz!” — se a luz não se tivesse feito, se todas as inteligências de tua cidade celeste não se tivessem unido na obediência a ti, se não tivessem repousado em teu Espírito que paira, imutável, sobre os seres transitórios. De outro modo, até o céu do céu não seria mais que abismo de TREVAS, enquanto que agora é luz no Senhor. Confissões XIII, VIII

Nesta lamentável inquietação dos espíritos decaídos, que, despidos da veste de tua luz, manifestam as próprias TREVAS, mostras claramente a grandeza de tua criatura racional; na busca da felicidade, ela só se sacia com tua grandeza, onde encontra repouso — pois que ela não pode bastar-se a si própria. Porque tu, Senhor, iluminarás nossas TREVAS. De ti vêm nossas vestes de luz, e nossas TREVAS serão como o sol do meio-dia. Confissões XIII, VIII

Feliz a criatura que não conheceu outro estado! Seria porém diferente do que é se, apenas criada, teu Espírito, que paira sobre todas as coisas mutáveis, não a tivesse erguido com este apelo: “Faça- te a luz” — e a luz se fez. Em nós, o tempo em que éramos TREVAS distingue-se do tempo em que nos tornamos luz. Mas dessa criatura só se diz o que teria sido se não fosse iluminada. A Escritura fala dela como se tivesse sido flutuante e tenebrosa, para nos realçar a causa que a transformou, isto é, que a conduziu para a luz inextinguível, para que também fosse luz. Quem o puder, compreenda, quem não o puder, que te peça a graça de o compreender. Por que importunam, como seu fosse a luz que ilumina a todo homem que vem a este mundo? Confissões XIII, X

Ó minha , vai adiante em tua confissão. Dize a teu Senhor: “Santo, santo, santo! É o Senhor, meu Deus! — Em teu nome fomos batizados, Pai. Filho e Espírito Santo; em teu nome batizamos, Pai, Filho e Espírito Santo. Também entre nós Deus criou, pelo seu Cristo, um céu e uma terra, isto é, os espirituais e os carnais de sua Igreja. E nossa terra, antes de receber a forma da doutrina, era invisível e informe, e estávamos imersos nas TREVAS da ignorância, porque castigaste o homem por causa de sua iniquidade, e teus justos juízos são como abismos profundos. Confissões XIII, XII

Nossas TREVAS te desagradaram, nós nos voltamos para ti, e a luz se fez. E eis que outrora fomos TREVAS e que agora somos luz no Senhor. Confissões XIII, XII

Minha , que acendeste à noite para conduzir meus passos, lhe diz: “Por que está triste, ó minha alma, e por que me perturbas? Espera no Senhor. Seu Verbo é uma lâmpada para teus passos. Espera, persevera, até que a noite passe, a noite, mãe dos iníquos, até que passe a ira do Senhor, ira da qual outrora fomos filhos quando éramos TREVAS”. — Dessas TREVAS ainda arrastamos os restos neste corpo morto pelo pecado, até que alvoreça o dia e se dissipem as sombras. Espera no Senhor. Desde a manhã estarei diante deles, e o contemplarei, e o louvarei eternamente. Desde a manhã estarei diante dele e verei a salvação de minha face, meu Deus, que vivificará nossos corpos mortais pelo seu Espírito que habita em nós, misericordiosamente levado por sobre as águas tenebrosas de nossas almas. Confissões XIII, XIV

Por isso, em nossa peregrinação, recebemos dele o penhor de já sermos luz; ele já nos salvou pela esperança e, de filhos da noite e das TREVAS que éramos, ele fez filhos da luz e do dia. Confissões XIII, XIV

Na incerteza da ciência humana, só tu és capaz de distinguir entre uns e outros, porque põe nossos corações à prova e chamas à luz dia e às TREVAS noite. Quem, senão tu, sabe nos distinguir? E que temos nós que não o tenhamos recebido de ti? Nós, feitos vasos de honra, fomos feitos da mesma argila que serviu para fazer os vasos de ignomínia. Confissões XIII, XIV

Deste modo já não és mais o único, no segredo de teu discernimento, como eras antes da criação do firmamento, a distinguir entre a luz e as TREVAS. Também tuas criaturas espirituais, dispostas e ordenadas nesse mesmo firmamento, depois que tua graça se manifestou através do mundo, brilham sobre a terra, separam o dia da noite e marcam as diferenças dos tempos. De fato, as coisas antigas passaram, e eis que se fizeram novas, nossa salvação está mais próxima do que quando começamos a crer, a noite avançou e se aproximou o dia, coroas o ano com tua benção, envias teus operários à tua messe, semeada pelo trabalho de outros operários, enviando-os também para outra sementeira, cuja messe será colhida no fim dos séculos. Confissões XIII, XVIII

Mas vós, geração escolhida, fracos aos olhos do mundo, que tudo deixaste para seguir o Senhor, caminhais após ele, confundi os fortes; segui-lo com vossos pés resplandecentes, e brilhai no firmamento para que os céus cantem suas glórias, distinguindo a luz dos perfeitos, que ainda não são semelhantes aos anjos, e as TREVAS dos pequenos, que ainda não perderam a esperança. Brilhai sobre toda a terra! Que o dia resplandecente de sol transmita ao dia seguinte a palavra de Sabedoria, e que a noite, iluminada pela lua, transmita à noite a palavra de Ciência. A lua e as estrelas brilham na noite, mas a noite não as obscurece, porque são elas que iluminam a noite, de acordo com a sua capacidade. Confissões XIII, XIX

E note ainda nisto, meu leitor. Há uma frase que a Escritura declara de uma só forma, e que a voz fala apenas dessa maneira: “No princípio criou Deus o céu e a terra” — E não pode a frase ser interpretada diversamente — descartando o erro ou o sofisma — conforme os diversos pontos de vista legítimos? É assim que crescem e se multiplicam as gerações dos homens! Se consideramos a natureza das coisas, não alegoricamente, mas em sentido próprio, a sentença: “Crescei e multiplicai-vos” — se aplica a todas as criaturas que nascem de uma semente. Se, ao contrário, a interpretamos em sentido figurado, como penso que foi a intenção da Escritura, que não limita inutilmente essa benção aos peixes e aos homens, encontramos então multidões de criaturas espirituais e temporais, como no céu e na terra; de almas justas e injustas, como na luz e nas TREVAS; de escritores sagrados que nos anunciaram a Lei, como no firmamento estabelecido entre as águas; na sociedade amargurada dos povos, como no mar; no zelo das almas piedosas, como em terra enxuta; nas obras de misericórdia praticadas nesta vida, como nas plantas que nascem de semente e nas árvore frutíferas; nos dons espirituais concedidos para o bem de todos, como nos luminares do céu; nas paixões dominadas pela temperança, como na alma viva. Em todas essas coisas encontramos multidões, fecundidade, crescimento. Mas que esse crescimento e essa proliferação exprimam uma mesma ideia de vários modos e que uma só expressão possa ser entendida de muitas maneiras, esse fato, apenas o encontramos nos sinais sensíveis e nos conceitos intelectuais. Confissões XIII, XXIV

Graças te damos, Senhor! Vemos o céu e a terra, isto é, a parte superior e inferior do mundo material, assim como a criação espiritual e material. E, como adorno dessas partes que se compõe, o conjunto do Universo, e o conjunto de toda a criação, vemos a luz que foi criada e separada pelas TREVAS. Vemos o firmamento do céu, tanto o que está situado entre as águas espirituais superiores e as águas materiais inferiores, como ainda esses espaços de ar, chamados também de céu, onde volitam as aves do céu entre as águas que se evolam em vapores, e nas noites serenas se condensam em orvalho, e as que correm pesadas sobre a terra. Vemos a beleza das águas reunidas nas planícies do mar, e a terra enxuta, ora nua, ora tomando forma visível e ordenada, mãe das plantas e das árvore . vemos os luminares do céu brilhando acima de nós, o sol bastar para o dia, a lua e as estrelas consolando a noite, e todos esses astros marcando e assinalando a cadência do tempo. Vemos o elementos úmido habitado por peixes, monstros, animais alados, porque a densidade do ar que sustenta o voo dos pássaros é aumentada pela evaporação das águas. Vemos a face da terra embelezar-se de animais terrestres, e o homem, criado à tua imagem e semelhança, senhor de todos os animais irracionais, precisamente porque foi feito à tua imagem e se assemelha a ti, em virtude da razão e da inteligência. E como na alma humana há uma parte que domina pela reflexão e outra que se submete na obediência, assim a mulher foi criada fisicamente para o homem; é fora de dúvida que ela possui um espírito e uma inteligência racional, iguais aos do homem, mas seu sexo a coloca sob a dependência do sexo masculino; é desse modo que o desejo, princípio da ação, se submete à razão que concebe a arte do agir retamente. Eis o que vemos, e que cada uma dessas coisas, tomadas por si, são boas, e que todas, em seu conjunto, são muito boas. Confissões XIII, XXXII

Também meditei sobre o significado simbólico da ordem pela qual se fez tua criação e da ordem pela qual a Escritura relata. Vimos que tuas obras, consideradas cada uma em si, são boas, e em seu conjunto, muito boas. Em teu Verbo, em teu Filho único, vimos o céu e a terra, a cabeça e o corpo da Igreja, predestinadas antes de todos os tempos, quando ainda não havia nem manhã, nem tarde. Depois começaste a executar no tempo o que predestinaste antes do tempo, a fim de revelar teus desígnios ocultos e de dar ordem às nossas desordens — porque pesavam sobre nós nossos pecados, e nos perdíamos longe de ti em voragens de TREVAS. Teu Espírito misericordioso pairava sobre nós, para nos socorrer no momento oportuno. Justificaste os ímpios; tu os separaste dos pecadores e confirmaste a autoridade de teu Livro entre os superiores, que te eram dóceis, e os inferiores, para que a eles se submetessem. Reuniste em um corpo único, de mesmas aspirações, a sociedade dos infiéis, para que aparecesse o zelo dos fiéis fecundo em obras de misericórdia, e distribuindo aos pobres os bens da terra para adquirir os do céu. Confissões XIII, XXXIV