E como invocarei meu Deus, meu Deus e meu Senhor, se ao invocá-lo o faria certamente dentro de mim? E que lugar há em mim para receber o meu Deus, por onde Deus desça a mim, o Deus que fez o céu e a TERRA? Senhor, haverá em mim algum espaço que te possa conter? Acaso te contêm o céu e a TERRA, que tu criaste, e dentro dos quais também criaste a mim? Será, talvez, pelo fato de nada do que existe sem Ti, que todas as coisas te contêm? E, assim, se existo, que motivo pode haver para Te pedir que venhas a mim, já que não existiria se em mim não habitásseis? Confissões I, II
Eu nada seria, meu Deus, nada seria em absoluto se não estivesses em mim; talvez seria melhor dizer que eu não existiria de modo algum se não estivesse em ti, de quem, por quem e em quem existem todas as coisas? Assim é, Senhor, assim é. Como, pois, posso chamar-te se já estou em ti, ou de onde hás de vir a mim, ou a que parte do céu ou da TERRA me hei de recolher, para que ali venha a mim o meu Deus, ele que disse: Eu encho o céu e a TERRA? Confissões I, II
Porventura o céu e a TERRA te contêm, porque os enches? Ou será melhor dizer que os enches, mas que ainda resta alguma parte de ti, já que eles não te podem conter? E onde estenderás isso que sobra de ti, depois de cheios o céu e a TERRA? Mas será necessário que sejas contido em algum lugar, tu que conténs todas as coisas, visto que as que enches as ocupas contendo-as? Porque não são os vasos cheios de ti que te tornam estável, já que, quando se quebrarem, tu não te derramarás; e quando te derramas sobre nós, isso não o fazes porque cais, mas porque nos levantas, nem porque te dispersas, mas porque nos recolhes. Confissões I, III
Permita, porém, que eu fale em presença de tua misericórdia, a mim, TERRA e cinza; deixa que eu fale, porque é à tua misericórdia que falo, e não ao homem, que de mim escarnece. Talvez também tu te rias de mim, mas, voltado para mim, terás compaixão. Confissões I, VI
Eu te confesso, Senhor dos céus e da TERRA, louvando-te por meus princípios e por minha infância, de que não tenho memória, mas que, por tua graça, o homem pode conjectura de si pelos outros, crendo em muitas coisas, ainda que confiado na autoridade de humildes mulheres. Confissões I, VI
Quem me poderá lembrar o pecado da infância, já que ninguém está diante de ti limpo de pecado, nem mesmo a criança cuja vida conta um só dia sobre a TERRA? Quem mo recordará? Confissões I, VII
Quanto melhor teria sido para mim receber logo a saúde, e que meus cuidados e os dos meus fossem empregados em conservar intacta debaixo da tua proteção a saúde da minha alma, que me havias concedido! Melhor fora, certamente; porém, como minha mãe, sem dúvida, já previa quantas e quão grandes ondas de tentações me ameaçariam depois da meninice, preferiu expor-me a elas como TERRA grosseira que depois receberia forma, do que expor-me já como imagem tua. Confissões I, XI
Aquelas primeiras letras, pelas quais podia, como ainda faço, chegar e ler tudo o que há escrito e a escrever tudo o que quero, eram melhores e mais úteis que aquelas outras nas quais me obrigavam a decorar os erros de um tal Eneias, esquecido dos meus, e a chorar a morte de Dido, que se suicidou por amor, enquanto isso, eu, miserabilíssimo, suportava a minha própria morte com olhos enxutos, morrendo para ti, ó meu Deus, minha vida! Na verdade, que pode haver de mais miserável do que um infeliz que não se compadece de si mesmo e que, chorando a morte de Dido por amor de Eneias, não chora sua própria morte por falta de amor a ti, ó Deus, luz de meu coração, pão interior de minha alma, virtude fecundante de meu pensamento? Não te amava; prevaricava longe de ti, e ouvia de todas as partes: “Muito bem! Muito bem!” — porque a amizade deste mundo é adultério contra ti; e se aclamam a alguém dizendo: “Muito bem! Muito bem!” — é para que este não se envergonhe de ser assim. Eu não chorava estas faltas, chorava a morte de Dido “que se suicidou com a espada”, eu procurava as últimas de tuas criaturas, abandonando-te a ti, como TERRA que eu era, atraída pela TERRA. Se então me proibissem a leitura de tais coisas, me afligiriam por não ler aquilo que me comovia até a dor. Confissões I, XIII
E agora pergunto, meu Deus: que é que me deleitava no furto? Pois não encontro nenhuma beleza nele. Já não falo da beleza que reside na justiça e na prudência, nem sequer da que resplandece na inteligência do homem, na memória, nos sentidos ou na vida vegetativa; nem da que brilha nos magníficos astros em suas órbitas, ou na TERRA e no mar, cheios de criaturas, que nascem para sucederem umas às outras; nem sequer da defeituosa e sombria formosura dos vícios enganadores. Confissões II, VI
Desconhecendo eu essas verdades, ria-me de teus santos e profetas. Mas, que fazia eu quando me ria deles, senão dar motivo para que te risses de mim? deixei-me cair insensivelmente, aos poucos, em tais extravagâncias, a ponto de acreditar que o figo, quando colhido, chora lágrimas de leite junto com a mãe figueira, e que se um “santo” da seita comesse o tal figo, colhido não por seu delito, mas de outrem, misturando-o em suas entranhas, gemendo e arrotando enquanto rezava, exalaria anjos e até mesmo partículas de Deus, partículas essas do verdadeiro Deus que ficariam cativas para sempre naquele fruto se não fossem libertadas pelos dentes e pelo estômago do “santo eleito”! Também acreditei, pobre de mim, que se devia ter mais misericórdia com os frutos da TERRA que com os homens para os quais foram criados. Pois, se algum faminto, que não fosse maniqueísta me pedisse de comer, parecia-me que atendê-lo era como merecer, por aquele bocado, a pena de morte. Confissões III, X
Bem-aventurado o que te ama, Senhor, e ama ao amigo em ti, e ao inimigo por amor a ti; só não perde o amigo quem tem a todos por amigos naquele que nunca se perde. E quem é este, senão nosso Deus, o Deus que fez o céu e a TERRA, e os enche, porque, enchendo-os, os criou? Confissões IV, IX
Era pois falso o que pensava de ti, e não verdade; ilusões de minha miséria, e não representação sólida de tua beleza. Havias ordenado, Senhor, e assim se cumpria em mim tua vontade, que a TERRA me produzisse abrolhos e espinhos, e que eu só conseguisse meu pão à custa de trabalho. Confissões IV, XVI
Mas não conheceram o caminho, o teu Verbo, por quem fizeste as coisas que numeram, e a eles próprios que as numeram, e os sentidos com que percebem as coisas que numeram, e a mente graças à qual as numeram. Tua sabedoria escapa aos números. Teu Filho Unigênito se fez para nós sabedoria, justiça e santificação, e foi contado entre nós, e pagou tributo a César. Não conheceram este caminho, por onde desceriam de seu orgulho até ele, e por ele subiriam até ele; não conheceram, digo, este caminho, e se julgaram mais elevados e resplandecentes que estrelas, e assim vieram a rolar por TERRA, e seu coração insensato se obscureceu. Confissões V, III
Com isso vi-me obrigado, quando professor, a suportar nos outros costumes que não quis adotar como meus quando estudante; e por isso desejava ir para uma cidade na qual, segundo me asseguravam, não aconteciam tais coisas. E tu, Senhor, minha esperança e meu quinhão na TERRA dos vivos, a fim de que eu mudasse de residência para a saúde de minha alma, me punhas espinhos em Cartago, para arrancar-me dali, e deleites em Roma para atrair-me para lá. Atraías-me por meio de homens que amavam uma vida morta, dos quais uns agiam aqui como loucos, e outros me aliciavam alhures com bens ilusórios. E, para corrigir meus passos, usavas ocultamente da sua e da minha perversidade. Porque os que perturbavam minha paz estavam cegos por uma raiva vergonhosa, e os que me convidavam para mudar sabiam a TERRA; e eu, que detestava em Cartago uma verdadeira miséria, buscava em Roma uma falsa felicidade. Confissões V, VIII
Mas o verdadeiro motivo de eu sair de Cartago e ir para Roma só tu, ó Deus, o sabias, sem manifestá-lo a mim nem à minha mãe, que chorou amargamente minha partida, seguindo-me até o mar. Mas tive de enganá-la, porque me agarrava com força, instando-me a desistir de meu propósito ou a levá-la comigo. Fingi pois que tinha que me despedir de um amigo que eu não queria abandonar, até que, soprando o vento, ele pudesse navegar. Assim enganei a minha mãe, e a uma tal mãe! Fugi, e tu também me perdoaste este pecado misericordiosamente, salvando-me a mim, cheio de execráveis imundícies, das águas do mar para que chegasse ás águas de tua graça. Purificado com elas, secariam os rios dos olhos de minha mãe, com que todos os dias regava a TERRA diante de ti, por minha causa. Confissões V, VIII
Quanto a meu hospede, não me furtei de admoestar sua excessiva credulidade com que aceitava as fábulas de que estavam cheios os livros dos maniqueus. Todavia, tinha mais amizade com tais homens do que com os estranhos à sua heresia. É verdade que já não a defendia com a antiga animosidade; mas sua familiaridade — em Roma havia muitos deles ocultos — tornava-me bastante negligente para procurar outra coisa. Desesperava eu principalmente de poder achar a verdade em tua Igreja, ó Senhor dos céus e da TERRA, Criador de todas as coisas visíveis e invisíveis, verdade da qual eles me afastavam. Parecia-me mui torpe acreditar que tinhas figura de carne humana, e que estavas limitado pelos contornos de um corpo como o nosso. E quando queria pensar em meu Deus, não o sabia imaginar senão com massa corpórea — pois não me parecia que pudesse existir algo diferente — esta era a causa principal e quase única de meu erro inevitável. Confissões V, X
Daqui se gerou também minha crença de que o mal tivesse substância, também corpórea, massa negra e disforme, ora espessa — a que chamavam TERRA — ora tênue e sutil, como o ar, a qual julgava ser um espírito maligno que investia sobre a TERRA. E visto que minha piedade, por pouca que fosse me obrigava a pensar que um Deus bom não podia criar nenhuma natureza má, eu imaginava duas substâncias antagônicas, ambas infinitas, a do mal um pouco menor, a do bem um pouco maior; e deste princípio pestilento originavam-se as demais blasfêmias. Com efeito, quando meu espírito se esforçava por voltar à fé católica, era rechaçado porque minha ideia de fé católica não era correta. E me parecia ser mais piedoso, ó Deus, a quem louvam em mim tuas misericórdias, julgar-te infinito por todas as partes, com exceção de um aspecto, a substância do mal, onde era forçoso reconhecer teus limites, do que julgar-te limitado por todas as partes pelas formas do corpo humano. Confissões V, X
Chegado a Milão, visitei o bispo Ambrosio, famoso na TERRA por suas qualidades, piedoso servo teu, cuja eloquência distribuía zelosamente entre teu povo a flor de teu trigo, a alegria do azeite e a sóbria embriaguez de teu vinho. A ele era eu conduzido por ti sem o saber, a fim de que ele me conduzisse a ti conscientemente. Confissões V, XIII
Minha mãe já viera a meu encontro, forte em sua piedade, seguindo-me por mar e por TERRA, confiando em ti em todos os perigos. Até na travessia do mar proceloso ela encorajava os marinheiros — os que costumam animar os navegadores inexperientes quando se perturbam — garantia-lhes que chegariam a salvo ao fim da viagem, porque assim lho tínheis prometido em visão. Confissões VI, I
Tão logo porém soube que o ilustre pregador e mestre a verdade proibira tal costume — mesmo para os que o praticavam sobriamente, para não dar aos ébrios azo de se embriagarem, e porque essa espécie de parentales (festas pagãs que se celebravam de 13 a 21 de fevereiro consagradas especialmente aos deuses lares) era muito semelhante à superstição dos pagãos — ela se absteve de muito boa vontade. No lugar da cesta cheia de frutos da TERRA, aprendeu a levar ao túmulo dos mártires um coração cheio de puros desejos, dando o que podia aos pobres. Confissões VI, II
É verdade que poderia sarar pela crença, e assim, purificado pela fé o olhar de meu espírito, pudesse dirigir-se de algum modo à tua verdade, sempre imutável e indefectível. Mas, como sói acontecer a quem caiu nas mãos de um médico ruim, e que depois receia as mãos de um bom, assim me sucedia quanto à saúde de minha alma que, não podendo sarar senão pela fé, recusava-se a sarar por temor de crer, novamente, em falsidades. Minha alma resistia às tuas mãos, ó meu Deus, que preparaste o remédio da fé, e o derramaste sobre as enfermidades da TERRA, dando-lhe tanta autoridade e eficácia. Confissões VI, IV
E também a ti, vida de minha vida, imaginava-te como um Ser imenso, penetrando por todas as partes, através dos espaços infinitos, toda a massa do mundo, alastrando-se sem limites na imensidão, de sorte que a TERRA, o céu e todas as coisas te continham, e tudo isso tinha em ti seu limite, sem que te limitasses em parte alguma. E assim como a massa do ar — deste ar que está sobre a TERRA — não impede a passagem da luz do sol, não o impede de a atravessar, de a penetrar sem romper ou cortar, antes enchendo-a totalmente, assim eu pensava que não somente a substância do céu, do ar e do mar, mas também a da TERRA se deixava atravessar e penetrar por ti em todas as suas partes, grandes e pequenas, que receberiam tua presença, que, com secreta inspiração, governa interior e exteriormente tudo o que criaste. Confissões VII, I
Assim conjeturava eu, por não poder imaginar-te de outra forma; mas minha conjectura era falsa. Porque, se assim fosse, uma porção maior da TERRA conteria parte maior de ti; e uma porção menor da TERRA conteria parte menor. E de tal modo estariam as coisas impregnadas de ti, que o corpo de um elefante conteria tanto mais de teu ser que o corpo do passarinho, pois aquele é maior do que este, e ocupa mais espaço. Assim, fragmentado entre as partes do universo, estarias presente nas grandes partes do universo por grandes partes de ti, e nas pequenas por pequenas, o que não acontece. Mas ainda não tinhas iluminado minhas trevas. Confissões VII, I
Eu buscava a origem do mal, mas de modo errôneo, e não via o erro que havia em meu modo de buscá-la. Desfilava diante dos olhos de minha alma toda a criação, tanto o que podemos ver — como a TERRA, o mar, o ar, as estrelas, as árvores e os animais — como o que não podemos ver — como o firmamento, e todos os anjos e seres espirituais. Estes, porém, como se também fossem corpóreos, colocados em minha imaginação em seus respectivos lugares. Fiz de tua criação uma espécie de massa imensa, diferenciada em diversos gêneros de corpos; uns, corpos verdadeiros, e espíritos, que eu imaginava como corpos. Confissões VII, V
Mas tu, Senhor, permaneces eternamente, e não te iras eternamente contra nós, porque te compadeceste da TERRA e do pó, e foi de teu agrado corrigir minhas deformidades. Tu me aguilhoavas com estímulos interiores para que estivesse impaciente, até que por uma visão interior, te tornasses para mim uma certeza. O inchaço de meu orgulho baixava graças à mão secreta de tua medicina; a vista de minha alma, perturbada e obscurecida, ia sarando dia a dia graças ao colírio das dores salutares. Confissões VII, VIII
Igualmente achei nesses livros, dito de diversos e múltiplos modos, que o Filho, consubstancial ao Pai, não considerou usurpação ser igual a Deus, porque o é por natureza. Não dizem porém que se aniquilou a si mesmo, tomando a forma de escravo, que se fez semelhante aos homens, sendo julgado homem por seu exterior; e que se humilhou, fazendo-se obediente até a morte, e morte de cruz, pelo que Deus o ressuscitou entre os mortos, e lhe deu um nome acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobrem todos os joelhos no céu, na TERRA e no inferno, e toda língua confesse que o Senhor Jesus está na glória de Deus Pai. Confissões VII, IX
Ela não estava sobre meu espírito como o azeite sobre a água, como o céu sobre a TERRA, mas estava acima de mim porque me criou; eu lhe era inferior por ter sido criado por ela. Quem conhece a verdade conhece a luz, e quem a conhece, conhece a eternidade. O amor a conhece! Ó eterna verdade, amor verdadeiro, amada eternidade! Tu és meu Deus. Por ti suspiro dia e noite. Quando te conheci pela primeira vez, ergueste-me para me fazer ver que havia algo para ser visto, mas que eu ainda era incapaz de ver. E deslumbraste a fraqueza de minha vista com o fulgor do teu brilho, e eu estremeci de amor e temor. Pareceu-me estar longe de ti numa região desconhecida, como se ouvira tua voz do alto: “Sou o pão dos fortes; cresce, e comer-me-ás. Não me transformarás em ti, como fazes com o alimento da tua carne, mas tu serás mudado em mim”. Confissões VII, X
E para ti, Senhor, não existe absolutamente o mal; e nem para universalidade da tua criação; porque nada existe fora dela, capaz de romper ou de corromper a ordem que tu lhe impuseste. Todavia, em algumas de suas partes, determinados elementos não se harmonizam com outros, e estes são considerados maus. Mas, como esses mesmos elementos combinam com outros, são da mesma forma bons, e bons em si mesmos. E mesmo esses elementos que não concordam entre si se harmonizam com a parte inferior das criaturas que chamamos TERRA, com seu céu cheio de nuvens e de ventos, como lhe é conveniente. Confissões VII, XIII
Longe de mim dizer: Oxalá não existissem estas coisas! — Embora, considerando-as separadamente, eu as desejasse melhores, somente o fato de existirem deveria bastar para eu te louvar porque o proclamam os dragões da TERRA e todos os abismos; o fogo, o granizo, a neve, o vento da tempestade, que executam tuas ordens; os montes e todas as colinas; as árvores frutíferas e todos os cedros; as feras e todos os gados; os répteis e todas as aves; os reis da TERRA e todos os povos; os príncipes e todos os juízes da TERRA, os jovens e as virgens, os anciões e as crianças; todos louvam teu nome. Confissões VII, XIII
Admirava-me de já te amar, e não a um fantasma em teu lugar, mas não era estável no gozo de meu Deus. Era arrebatado a ti por tua beleza, e logo afastado de ti pelo meu peso, que me precipitava sobre a TERRA a gemer. Meu peso eram os hábitos carnais. Mas tua lembrança me acompanhava. Nem absolutamente duvidava da existência de um ser a quem eu devia me unir, embora não estivesse apto para esta união, porque o corpo, que se corrompe, sobrecarrega a alma, e a morada terrena oprime o espírito carregado de cuidados. Estava certíssimo de que tuas belezas invisíveis se descobrem à inteligência desde a criação do universo, por meio de tuas obras; bem como teu poder eterno e tua divindade. Confissões VII, XVII
Rompeste com grilhões, e te oferecerei um sacrifício de louvor. Contarei como os rompeste, e todos os que te adoram exclamarão quando me ouvirem: “Bendito seja o Senhor no céu e na TERRA! Grande e admirável é seu nome! Tuas palavras, Senhor, tinham-me gravado profundamente em meu coração, e me via cercado apenas por ti de todos os lados. Tinha certeza de tua vida eterna, embora apenas a visse em enigma e como em espelho. Já fora dissolvida toda dúvida quanto à tua substância incorruptível, ao saber que toda substância procedia dela. E o que desejava não era tanto estar mais certo de ti, mas mais firme em ti. Confissões VIII, I
Por que isto, Senhor, meu Deus, quando tu mesmo és tua própria alegria eterna, e as criaturas à tua volta em ti se alegram? Por que esta parte do universo sofre as alternâncias de progressos e quedas, de uniões e separações? Será este o modo de ser que lhe concedeste quando, do mais alto dos céus até às profundezas da TERRA, desde o princípio dos tempos até o fim dos séculos, desde o anjo até o pequenino verme, e desde o primeiro movimento até o último, dispuseste todos os gêneros de bens e todas as tuas obras justas, cada uma em seu lugar e tempo? Confissões VIII, III
Eu já não tinha aquela desculpa, com a qual persuadia-me de que, se ainda não desprezava o mundo para te servir, era porque não tinha visão clara da verdade, uma vez que agora já a conhecia de modo indiscutível. Mas, ainda apegado à TERRA, recusava-me a combater em tuas fileiras, e temia ver-me livre dos meus laços, quando devia temer estar por eles atado. Confissões VIII, V
Então Ponticiano e seu companheiro, que passeavam em outro local do jardim, procurando-os, deram também com a mesma cabana, e os avisaram para que voltassem, pois já entardecia. Mas eles, relataram-lhes sua determinação e propósito, e o modo como nascera e se fixara neles tal desejo, pediram-lhes que, se não quisessem juntar-se a eles, que não os molestassem. Mas estes, sem se converterem, lamentaram a si mesmos, no dizer de Ponticiano, e felicitando-os piedosamente, recomendaram-se às suas orações; depois, arrastando o coração pela TERRA, voltaram ao palácio, enquanto que os convertidos, fixando seu coração no céu, ficaram na cabana. Confissões VIII, VI
Mas de novo a voz da castidade parecia me dizer: Não dês ouvidos às tentações imundas da tua carne impura que te prende à TERRA, a fim de que seja mortificada. Ela te fala de deleites, contrários porém, à lei do Senhor teu Deus. Confissões VIII, XI
Contudo, por causa de teu nome, que santificaste em toda TERRA, nossa decisão e propósito teriam também quem os louvasse. Pareceria de certo modo jactância não aguardar as férias tão próximas; abandonar antes dessa data uma profissão pública, e exposta a todos, seria atrair sobre minha conduta todas as atenções, provocando comentários. Diriam que eu me adiantara às férias iminentes por querer parecer grande personagem. E de que me valeria que pensassem ou discutissem sobre minhas intenções, blasfemando sobre o meu bem? Confissões IX, II
Fiel cumpridor de tuas promessas, concedes a Verecundo a amenidade de teu paraíso sempre florido, por nos ter oferecido sua propriedade de Cassicíaco, na qual descansamos em ti das angústias do século; lhe perdoaste os pecados sobre a TERRA, na tua montanha, a montanha da abundância. Confissões IX, III
Há um livro meu que se intitula O Mestre, no qual Adeodato dialoga comigo. Tu sabes que todos os pensamentos ali manifestados são dele quando tinha dezesseis anos. Muitas outras qualidades maravilhosas notei ainda nele, admirado por sua inteligência. Mas quem, além de ti, poderia ser o autor dessas maravilhas? Cedo o arrebataste desta TERRA; e a lembrança dele se torna mais tranquila, nada mais tendo a temer por sua infância, por sua adolescência ou por toda sua vida adulta. Associamo-lo a nós como irmão na graça, para educá-lo em tua lei. Fomos batizados, e os remorsos de nossa vida passada se afastaram de nós. Confissões IX, VI
Mas, tu, Senhor, governador do céu e da TERRA, que desvias para teus desígnios as águas da torrente e regulas o curso turbulento dos séculos, curaste a loucura de uma alma com a insânia de outra. Por isso ninguém, ao considerar o caso, atribua a seu poder pessoal o mérito de ter corrigido com suas palavras a alguém cuja emenda deseja conseguir. Confissões IX, VIII
Nossa conversa chegou à conclusão que nenhum prazer dos sentidos carnais, por maior que seja, e por mais brilhante e maior que seja a luz material que o cerca, não parece digno de ser comparado à felicidade daquela vida em ti. Elevando nosso sentimento para mais alto, mais ardentemente em direção ao próprio Ser, percorremos uma a uma todas as coisas corporais, até o próprio céu, de onde o sol, a luz e as estrelas iluminam a TERRA. Confissões IX, X
E enquanto assim falávamos dessa Sabedoria e por ela suspirávamos, chegamos a tocá-la momentaneamente com supremo ímpeto de nosso coração; e, suspirando, deixando ali atadas as primícias de nosso espírito, e voltamos ao ruído vazio de nossos lábios, onde nasce e morre a palavra humana, em nada semelhante a teu Verbo, Senhor nosso, que subsiste em si sem envelhecer, renovando todas as coisas! E dizíamos: Suponhamos que se calasse o tumulto da carne, as imagens da TERRA, da água, do ar e até dos céus; e que a própria alma se calasse, e se elevasse sobre si mesma não pensando mais em si; se calassem os sonhos e revelações imaginarias e, por fim, se calasse por completo toda língua, todo sinal, e tudo o que é fugaz — uma vez que todas as coisas dizem a quem sabe ouvi-las: Não fizemos a nós mesmas; fez-nos o que permanece eternamente — se, dito isto, todas se calassem, atentas a seu Criador; e se só ele falasse, não por suas obras, mas por si mesmo, de modo que ouvíssemos sua palavra, não por uma língua material, nem pela voz de um anjo, nem pelo ruído do realidade, e supondo que essa visão se prolongasse, que todas as outras visões cessassem, e unicamente esta arrebatasse a alma de seu contemplador, e a absorvesse e abismasse em íntimas delícias, de modo que a vida eterna seja semelhante a este momento de intuição que nos fez suspirar, não seria isto a realização do entrar em gozo de teu Senhor? Mas quando se dará isto? Por acaso quando todos ressuscitarmos? Mas então não seremos todos transformados? Confissões IX, X
Mas eu, ó Deus invisível, meditando nos dons que infundes no coração de teus fiéis, e nas admiráveis colheitas que deles brotam, alegrava-me e te dava graças. Lembrava-me do grande cuidado que sempre demonstrara acerca de sua sepultura, adquirida e preparada junto ao corpo do marido. Tendo vivido com ele na maior concórdia, assim também queria — visão própria da alma humana incapaz das coisas divinas — ter a felicidade de que os homens recordassem que, depois de sua viagem para além-mar, lhe fora concedida a graça de a mesma TERRA cobrir o pó de ambos os cônjuges. Confissões IX, XI
És tu, Senhor, quem me julga, porque ninguém conhece o que se passa no homem, a não ser o seu espírito que nele está, todavia há no homem coisas que até o espírito que nele habita ignora. Mas tu, Senhor, que o criaste, conheces todas as coisas. E eu, embora diante de ti me despreze e me considere como TERRA e cinza, sei algo de ti que ignoro de mim mesmo. É certo que agora vemos por espelho, em enigmas, e não face a face. Por isso, enquanto peregrino longe de ti, estou mais presente a mim do que a ti. Sei que em nada podes ser prejudicado, mas ignoro a que tentações posso resistir e a quais não posso. Todavia há esperança, pois és fiel, e não permites que sejamos tentados além de nossas forças; com a tentação, dás também meios para suportar, para que possamos resistir. Confissões X, V
O que sei, Senhor, sem sombra de dúvida, é que te amo. Feriste meu coração com tua palavra, e te amei. O céu, a TERRA e tudo quanto neles existe, de todas as partes me dizem que te ame; nem cessam de repeti-lo a todos os homens, para que não tenham desculpas. Terás compaixão mais profunda de quem já te compadeceste; e usarás de misericórdia com quem já foste misericordioso. De outro modo, o céu e a TERRA cantariam teus louvores a surdos. Confissões X, VI
Mas, que amo eu, quando te amo? Não amo a beleza do corpo, nem o esplendor fugaz, nem a claridade da luz, tão cara a estes meus olhos, nem as doces melodias das mais diversas canções, nem a fragrância de flores, de unguentos e de aromas, nem o maná, nem o mel, nem os membros tão afeitos aos amplexos da carne. Nada disto amo quando amo o meu Deus. E, contudo, amo uma luz, uma voz, um perfume, um alimento, um abraço de meu homem interior, onde brilha para minha alma uma luz sem limites, onde ressoam melodias que o tempo não arrebata, onde exalam perfumes que o vento não dissipa, onde se provam iguarias que o apetite não diminui, onde se sentem abraços que a saciedade não desfaz. Eis o que amo quando amo o meu Deus! Então, o que é Deus? Perguntei à TERRA, e ela me disse: “Eu não sou Deus”. E tudo o que nela existe me respondeu o mesmo. Perguntei ao mar, aos abismos e aos répteis viventes, e eles me responderam: “Não somos teu Deus; busca-o acima de nós”. Perguntei aos ventos que sopram; e todo o ar, com seus habitantes, me disse: “Anaxímenes está enganado eu não sou Deus”. Perguntei ao céu, ao sol, à luz e às estrelas. “Tampouco somos o Deus a quem procuras” Confissões X, VI
Para me servirem, tenho um corpo e uma alma: aquele exterior, esta interior. Por qual deles deverei perguntar pelo meu Deus, a quem já havia procurado com o corpo desde a TERRA até o céu, até onde pude enviar os raios de meu olhar como mensageiros? Melhor, sem dúvida, é a parte interior de mim mesmo. É a ela que dirigem suas respostas todos os mensageiros de meu corpo, como a um presidente ou juiz, respostas do céu, da TERRA, e de tudo o que existe, e que proclamam: “Não somos Deus” — e ainda — “Ele nos criou”. O homem interior conhece essas coisas por meio do homem exterior; mas o homem interior, que é a alma, também conhece essas coisas por meio dos sentidos do corpo. Confissões X, VI
Mas o amor às coisas criadas os escraviza, e assim os torna incapazes de julgá-las. Ora, elas só respondem aos que podem julgar-lhes as respostas. Elas não mudam sua linguagem, isto é, sua beleza, quando um só as vê, e outro as interroga; elas não lhes aparecem diferentes mas, para uns ficam mudas, enquanto falam a outros. Ou melhor: eles falam a todos, mas apenas se entendem os que comparam sua expressão exterior com a verdade interior. De fato a verdade me diz: “Teu Deus não é nem o céu, nem a TERRA, nem corpo algum. A natureza das coisas o diz para quem sabe ver; a matéria é menor em seus elementos que em seu todo. Por isso, minha alma, digo-te que és superior ao corpo, pois vivificas sua matéria, dando-lhe vida, como nenhum corpo pode dar a outro corpo. Mas teu Deus é também para ti a vida de tua vida. Confissões X, VI
Tudo isto realizo interiormente, no imenso palácio da memória. Ali eu tenho às minhas ordens o céu, a TERRA, o mar, com tudo o que neles pude perceber, com exceção do que já me esqueci. Ali encontro a mim mesmo, recordo de mim e de minhas ações, de seu tempo e lugar, e dos sentimentos que me dominavam ao praticá-las. Ali encontro a mim mesmo, recordo de mim e de minhas ações, de seu tempo e lugar, e dos sentimentos que me dominavam ao praticá-las. Ali estão todas as lembranças do que aprendi, quer pelo testemunho alheio, quer pela experiência. Confissões X, VIII
Mas, Senhor, esgota-me esta busca e é, portanto, sobre mim mesmo que me canso; tornei-me para mim mesmo uma TERRA de dificuldades e árduos labores. Por que não exploro agora as regiões do firmamento, nem meço as distâncias dos astros, nem busco as leis do equilíbrio da TERRA. Sou eu que me lembro, eu, o meu espírito. Não é de admirar que esteja longe de mim tudo o que não sou eu. Todavia, que há mais perto de mim do que eu mesmo? No entanto, é-me impossível compreender a natureza de minha memória, sem a qual eu nem poderia pronunciar meu próprio nome. Confissões X, XVI
Ai de mim, Senhor, tem piedade de mim! As tristezas do meu mal lutam com minhas santas alegrias, e eu não sei de que lado está a vitória. Ai de mim! Senhor, tem piedade de mim! Eis minhas feridas: eu não as escondo. Tu és o médico, eu o enfermo; és misericordioso, e eu, miserável. Não é contínua tentação a vida do homem sobre a TERRA? Quem quer aborrecimentos e dificuldades? Mandas que os suportemos, e não que os amemos. Ninguém ama o que tolera, ainda que goste de o tolerar; e mesmo que alguém se alegre em tolerar, preferiria nada ter que suportar. Na adversidade, desejo a prosperidade, e na prosperidade temo a adversidade. Entre estes dois extremos, qual será o termo médio onde a vida humana não seja tentação? Confissões X, XXVIII
Ai das prosperidades do século, onde se receia a adversidade e a alegria é corrompida! Ai das adversidades do século, uma, duas, três vezes ai! Pelo desejo da prosperidade, por ser dura a adversidade, e pelo temor que vença a nossa paciência! A vida do homem sobre a TERRA não é pois uma contínua tentação? Confissões X, XXVIII
Mas por ora esta necessidade me é grata, e luto contra essa delícia, para que não me domine; é uma guerra cotidiana que sustento com jejum, reduzindo meu corpo à escravidão. Mas minhas dores são eliminadas pelo prazer, porque a fome e a sede são sofrimentos: queimam e matam como a febre se os alimentos não lhe põem remédio. Mas como esse remédio está sempre à nossa disposição, graças à liberdade de teus dons que põe à disposição de nossa fraqueza a TERRA, a água e o céu, nossas misérias recebem por nós o nome de delícias. Confissões X, XXXI
Teu é o dia e tua é a noite; a um aceno do teu querer, os minutos voam. Concede-me o tempo para meditar nos mistérios de tua lei, e não a feche para os que lhe batem à porta; não foi em vão que quiseste fossem escritas tantas páginas de obscuros segredos. Porventura, estes bosques não terão seus cervos, que ali se abrigam, se alimentam, que aí passeiam, descansam e ruminam? Ó Senhor, aperfeiçoa-me e revela-me o sentido desses mistérios. Tua palavra é minha alegria, tua voz está acima de todos os prazeres. Concede-me o que amo, porque ando enamorado, e amar é um dom que me concedeste. Não abandone teus dons, nem deixe de regar tua erva sedenta. Te exaltarei por tudo o que descobrir em teus livros; que eu ouça a voz de teus louvores. Faz que eu me inebrie de ti, e que eu contemple as maravilhas de tua lei, desde o começo dos tempos, quando fizeste o céu, a TERRA, até que partilharemos do reino do perpétuo de tua cidade santa. Confissões XI, II
Senhor, tem piedade de mim, ouve meu desejo. Julgo que não desejo nada da TERRA, nem ouro, nem prata, nem pedras preciosas, nem belas roupas. Nem honrarias, nem prazeres carnais, nem de coisas necessárias ao corpo de nossa peregrinação desta vida. Tudo, alias, nos é dado por acréscimo quando procuramos teu reino e tua justiça. Confissões XI, II
Concede-me, Senhor, que eu ouça e compreenda como no princípio criaste o céu e a TERRA. Moisés assim o escreveu. Escreveu e partiu deste mundo, para onde lhe falaste, para junto de ti, e já não está presente para nós. Se estivesse aqui, detê-lo-ia, e dele indagaria, em teu nome, o sentido de tais palavras, e absorveria com atenção as palavras que brotassem de sua boca. Se me falasse em hebraico, em vão sua voz bateria em meus ouvidos, e nenhuma ideia chegaria à minha mente; mas se me falasse em latim, eu compreenderia suas palavras. Confissões XI, III
Existem pois o céu e a TERRA, e clamam que foram criados, mediante de suas transformações e mudanças. Mas o que não foi criado em sua forma definitiva, e todavia existe, nada pode conter que antes já não existisse em sua forma potencial, e nisso consiste a mudança e a variação. Proclamam também, os seres, que não foram criados por si mesmos: “Existimos porque fomos criados. Não existíamos antes, de modo que pudéssemos criar a nós mesmos.” — E essa voz é a voz da própria evidência. És tu, Senhor, quem os criaste. E porque és belo, eles são belos; porque és bom, eles são bons; porque existes, eles existem. Mas tuas obras não são belas, não são boas, não existem de modo perfeito como tu, seu Criador. Comparados contigo, os seres nem são bons, nem belos, nem existem. Isso sabemos, e por isso te rendemos graças; mas nosso saber, comparado com tua ciência, é ignorância. Confissões XI, IV
De que modo criaste o céu e a TERRA, e de que instrumento te serviste para levar a cabo tão grandiosa obra? Pois não procedeste como artesão, que forma um corpo de outro, conforme a concepção de seu espírito, que tem o poder de exteriorizar a forma que vê em si mesmo com o olhar do espírito. De onde lhe vem esse poder do espírito, senão de ti, que o criaste? E essa forma, ele a impõe a uma matéria que preexistia, apta para ser transformada, como a TERRA, a pedra, a madeira, o outro e tantas outras substâncias. Confissões XI, V
Mas como os fizeste? Como criaste, meu Deus, o céu e a TERRA? Por certo não criaste o céu e a TERRA no céu e na TERRA. Nem tampouco os criaste no ar, nem sob as águas que pertencem ao céu e à TERRA. Não criaste o universo no universo, porque não havia espaço onde pudesse existir. Não tinhas à mão a matéria com que modelar o céu e a TERRA. E de onde viria essa matéria que não tinhas ainda feito para dela fazer alguma coisa? Que criatura pode existir que não exija tua existência? Contudo, falaste e o mundo foi feito. Tua palavra o criou. Confissões XI, V
Se foi portanto com estas palavras sonoras e passageiras que ordenaste: Que se façam o céu e a TERRA! — se foi assim que os criaste, conclui-se que já havia, antes do céu e da TERRA, uma criatura temporal, cujos movimentos puderam fazer vibrar essa voz no tempo. Ora, não havia corpo algum antes do céu e da TERRA; ou se algum existia, tu certamente já o tinhas criado não por meio de uma voz passageira, justamente para que pudesse soar essa voz passageira para dizer: “Façam-se o céu e a TERRA!” E fosse o que fosse o ser de onde saísse tal voz, não teria existido se não o tivesses criado. Mas para criar esse corpo, necessário à emissão destas palavras, de que palavra e serviste? Confissões XI, VI
É nesse princípio, ó Deus, que criaste o céu e a TERRA; em teu Verbo, em teu Filho, em tua virtude, em tua sabedoria, em tua verdade, falando e agindo de modo admirável. Quem o poderá compreender ou explicar? Que luz é essa que por vezes me ilumina, e que fere meu coração sem o lesar? Atemorizo-me e inflamo-me: tremo porque, de certo modo, sou tão diferente dela; e inflamo-me, porque também sou semelhante a ela. A Sabedoria é a mesma sabedoria que brilha em mim de quando em quando: ela rasga as nuvens de minha alma, que novamente me encobrem quando dela me afasto, pelas trevas e pelo peso de minhas memórias. Na indigência, meu vigor enfraqueceu de tal modo, que nem posso mais suportar o meu bem, até que tu, Senhor que te mostraste compassivo com todas minhas iniquidades, cures também todas as minhas fraquezas. Redimirás minha vida da corrupção; hás de me coroar na piedade e na misericórdia, e saciarás com teus bens meus desejos, porque minha juventude será renovada com a da águia. Confissões XI, IX
Ouça, pois, Tua voz em seu interior, quem puder, e eu quero clamar, cheio de fé em teu oráculo: “Como são magníficas as tuas obras, Senhor, que tudo criaste em tua Sabedoria! Ela é o princípio e nesse princípio criaste o céu e a TERRA”. Confissões XI, IX
Com certeza ainda estão cheios do erro do velho homem os que nos dizem: “Que fazia Deus antes de criar o céu e a TERRA?” — Se estava ocioso, se nada fazia, porque não continuou a se abster sempre de qualquer ação? Se em Deus apareceu um movimento novo, uma vontade nova de dar o ser ao que ainda não tinha criado, como falar de uma verdadeira eternidade se nela nasce uma vontade que não existia antes? Mas a vontade de Deus não é uma criatura, ela é anterior a toda criatura; nenhuma criação seria possível se a vontade do Criador não a precedesse. A vontade, portanto, pertence à própria substância de Deus. Logo, se na substância de Deus nasce algo que antes não existia, não se pode mais com verdade chamá-la eterna. E se, desde toda eternidade, Deus quis a existência da criatura, por que a criatura também não é eterna? Confissões XI, X
Eis minha resposta à questão: “Que fazia Deus antes de criar o céu e a TERRA?” — não responderei jocosamente como alguém para contornar a dificuldade do problema: “Preparava o inferno para os que perscrutam esses mistérios profundos”. — Uma coisa é compreender e outra é brincar. Não, essa não será minha resposta. Prefiro dizer: “Não sei” — pois de fato não sei, que ridicularizar quem faz pergunta tão profunda, ou louvar quem responde com sofismas. Confissões XI, XII
Mas eu digo que tu, meu Deus, és o Criador de toda criatura; e, se por céu e TERRA se entende toda criatura, não temo afirmar: “Antes que Deus criasse o céu e a TERRA, nada fazia. De fato, se tivesse feito alguma coisa, o que poderia ser senão uma criatura? Oxalá eu soubesse tudo o que desejo saber, como sei que nenhuma criatura foi criada antes da criação. Confissões XI, XII
Se algum espírito leviano, vagando por tempos imaginários anteriores à criação, se admirar que o Deus Todo-Poderoso, tu, que criaste e conservas todas as coisas, ó autor do céu e da TERRA, tenha-te mantido inativo até o dia da criação, por séculos sem conta, que esse desperte e tome consciência do erra que gera sua admiração. Como, pois, poderiam transcorrer os séculos se tu, criador, ainda não os tinha criado? E poderia o tempo fluir se não existisse? E como poderiam os séculos passar, se jamais houvessem existido? Portanto, como és o criador de todos os tempos — se é que houve algum tempo antes da criação do céu e da TERRA — como se pode afirmar que ficaste ocioso? Pois também criaste esse mesmo tempo, e este não poderia passar antes que o criasses. Confissões XI, XIII
Se porém, antes do céu e da TERRA não havia tempo algum, porque perguntam o que fazias então? Não poderia haver então se não existia o tempo. Confissões XI, XIII
E repousarei imutável em ti, em tua verdade, na minha forma. não mais tolerarei as perguntas das pessoas que, pela enfermidade que é a pena de seu pecado, tem mais sede de saber do que lhes permite sua capacidade, que dizem: “Que fazia Deus antes de criar o céu e a TERRA?” — ou ainda: “Como lhe veio a ideia de criar algo, se antes nunca fizera nada” — Concede-lhes, Senhor, que reflitam no que dizem, que compreendam que não se pode falar nunca onde não há tempo. Quando se diz que alguém nunca fez nada, que se quer dizer senão que esse tal nada fez em tempo algum? Que eles compreendam que não pode existir tempo na ausência da criação, e deixem de semelhantes falácias. Confissões XI, XXX
Porque aquele que canta ou escuta uma melodia conhecida, dividido entre a expectativa das notas por vir e a lembrança das notas passadas, passa por impressões diferentes. Mas contigo não se dá nada semelhante, tu que és imutável e eterno, Criador verdadeiramente eterno dos espíritos. Como no princípio, conheceste o céu e a TERRA, sem que teu espírito mudasse seu saber, assim criaste o céu e a TERRA, sem que tua ação passasse por etapas distintas. Que aquele que compreende isto te louve, assim como o que não compreende. Oh! Como és sublime! E os de coração humildes são tua morada! Levantas os que caíram, e os que graças a ti continuam eretos, não caem nunca. Confissões XI, XXXI
Que a humildade de minha língua confesse à tua grandeza que criaste o céu e a TERRA; este céu que vejo, esta TERRA que piso, e de onde tiraste a TERRA que trago em mim. sim, criaste tudo isto. Confissões XII, II
Mas, Senhor, onde está o céu de que nos falou a voz do salmista: “O céu do céu pertence ao Senhor, mas ele deu a TERRA aos filhos dos homens?” — Onde está esse céu que não vemos, e diante do qual tudo o que vemos é apenas TERRA? Confissões XII, II
De fato, todo este mundo material, cuja base é a TERRA, embora não seja inteiramente belo em toda parte, recebeu até em seus últimos elementos, uma aparência atraente. Mas, comparado com esse céu do céu, o céu de nossa TERRA também não passa de TERRA. Por isso, não é absurdo chamar de TERRA esses dois grandes corpos visíveis, se os compararmos a esse céu misterioso que pertence ao Senhor, e não aos filhos dos homens. Confissões XII, II
Mas esta TERRA era invisível e informe, era um profundo abismo acima do qual não pairava nenhuma luz, pois não tinha nenhuma forma. Por isso inspiraste estas palavras: “As trevas cobriam o abismo”. — Mas que são trevas, senão ausência da luz? De fato, se então existisse, onde estaria a luz senão sobre a TERRA, para iluminá-la? Mas como a luz ainda não existia, o que era a presença das trevas, senão a ausência da luz? As trevas reinavam sobre o abismo porque a luz não existia, do mesmo modo que onde não há ruído reina o silêncio. E que significa reinar o silêncio, senão falta de som? Confissões XII, III
Que nome darei a esta matéria, como sugerir sua ideia às inteligências mais curtas, senão usando um termo de uso corrente? O que se pode encontrar no mundo que seja mais parecido com essa ausência total de forma, que a TERRA e o abismo? Colocados no mais baixo grau da criação, eles não têm a beleza dos corpos que no alto brilham de luz fulgurante. Confissões XII, IV
Por que, então, não aceitar que essa matéria informe, que criaste sem beleza para com ela moldar um mundo cheio de beleza, fosse comodamente designada aos homens pelos termos de TERRA invisível e informe? Confissões XII, IV
Portanto, és tu, Senhor que não mudas ao sabor das circunstâncias, mas que és sempre o mesmo, o mesmo e o mesmo, santo e santo e santo, Senhor, Deus Todo-Poderoso, és tu, Senhor, que no princípio, que vem de ti, em tua Sabedoria, nascida de tua substância, fizeste algo do nada. Criaste o céu e a TERRA, e isso não com tua substância, pois nesse caso, tua criação seria igual a teu Filho unigênito e, por isso, iguais a ti mesmo. E não seria justo que o que não é da tua substância, fosse igual a ti. Confissões XII, VII
Mas fora de ti nada existia com que pudesses fazer o céu e a TERRA, ó Trindade una, Unidade trina. Por isso criaste do nada o céu e a TERRA; duas realidades, uma imensa e outra pequena. Porque és Todo-Poderoso e bom, e só podes criar coisas boas: o grande céu e a pequena TERRA. Confissões XII, VII
Fora de ti nada havia, e desse nada fizeste o céu e a TERRA, tuas duas obras: uma próxima de ti, a outra próxima do nada. Uma que tem acima de si apenas a ti mesmo, e outra que nada tem inferior a ela. Confissões XII, VII
Mas o céu do céu pertence a ti, Senhor; a TERRA, que deste aos filhos dos homens para que a vissem e tocassem, não era tal como agora e vemos e tocamos. Era invisível e informe: um abismo sobre o qual não havia luz. As trevas se estendiam sobre o abismo — isto é: mais profundas que o abismo. Esse abismo das águas, agora visíveis, tem até em suas profundezas uma luminosidade, perceptível aos peixes e aos animais que se arrastam no fundo. Mas tudo isso era quase o nada, sendo ainda completamente informe; porém já era um ser apto a receber uma forma. Confissões XII, VIII
Senhor, criaste o mundo de uma matéria sem forma; do nada fizeste este quase nada de onde tiraste as grandes coisas que admiramos, nós, os filhos dos homens. Porque este céu corpóreo é de fato admirável, este firmamento que separa uma água de outra, que criaste no segundo dia, depois da luz, dizendo: “Faça-se — e assim se fez”. Chamaste a este firmamento de céu: o céu desta TERRA e deste mar que criaste no terceiro dia, dando forma visível à matéria informe, criado por ti antes de todos os dias. Confissões XII, VIII
Já havias criado outro céu antes de haver dia; mas era o céu do céu, porque no princípio criaste o céu e a TERRA. Quanto a esta mesma TERRA, nada mais era que matéria informe, sendo invisível, caótica e as trevas reinando sobre o abismo. É desta TERRA invisível, caótica, desta massa informe, deste quase nada, que formaste todas as coisas de que é formado e não formado este mundo mutável, domínio da transformação, que torna possíveis a percepção e a medida do tempo. Porque o tempo é feito da mudança das coisas, de variações e transformações das formas, cuja matéria é esta TERRA invisível, de que falei acima. Confissões XII, VIII
Por isso, o Espírito que instruiu teu servo, quando relata que no princípio criaste o céu e a TERRA, cala-se sobre o tempo, guarda silêncio sobre os dias. De fato, o céu do céu, que fizeste no começo, é de alguma maneira uma criatura racional que, mesmo sem ser co-eterna contigo, ó Trindade, participava todavia de tua eternidade. A doçura de te contemplar beatamente a mantém imóvel e unida a ti sem movimento, e desde sua criação escapa às vicissitudes fugazes do tempo. Confissões XII, IX
Porém, esta massa informe, esta TERRA invisível, este caos, tu não o enumeraste entre os dias; de fato, onde não há forma nem ordem, nada vem, nada passa e, portanto não pode haver nem dias, nem sucessão de espaços temporais. Confissões XII, IX
Bem consideradas estas coisas, por graça tua, meu Deus, e como me incitasse a bater, e como me abres quando bato, encontro duas criações tuas não afetadas pelo tempo, embora nenhuma delas te seja co-eterna. Uma, que criaste tão perfeita que jamais deixa de te contemplar, que não sofre nenhuma mudança, embora de natureza mutável, e goza de tua eternidade e de tua imutabilidade. Outra, informe, a ponto de lhe ser impossível passar de uma forma para outra, quer no movimento, quer no repouso, e, portanto, incapaz de estar sujeito ao tempo. Mas tu não a deixaste informe pois, antes de qualquer dia, fizeste no principio o céu e a TERRA, as duas obras de que falava. Confissões XII, XII
Mas a TERRA era invisível e informe, e as trevas reinavam sobre o abismo. Por essas palavras, a Escritura sugere a ideia de algo informe, para ensinar aos poucos aos espíritos que não podem conceber que a falta absoluta de forma não se confunde com o nada. É dessa massa informe que deveria ser criado um segundo céu, uma TERRA visível, ordenada, a água cristalina, e enfim tudo o que foi feito na criação, de acordo com a tradição das Escrituras, em dias sucessivos. Confissões XII, XII
“No princípio criou Deus o céu e a TERRA. A TERRA era invisível e informe, e as trevas se estendiam sobre o abismo.” Ouço estas palavras, meu Deus, e não encontrando menção do dia em que criaste essas coisas, concluo dessa omissão que se trata do céu do céu, do céu intelectual, onde a inteligência conhece simultaneamente e não por partes; não por enigma, ou como um espelho, mas por inteiro, em plena luz, face a face; conhece não ora isto, ora aquilo, mas, como disse, simultaneamente, sem a sequência temporal. Concluo também que se trata da TERRA invisível, informe, estranha às vicissitudes do tempo, que ora causam isto, ora aquilo, pois onde não há forma não pode haver isto ou aquilo. Confissões XII, XIII
Dessas realidades, uma de forma acabada desde o início, a outra absolutamente informe, o céu, isto é: o céu do céu, e a TERRA, isto é: TERRA invisível e informe, é bem a propósito delas que tua Escritura diz, sem mencionar o dia: “No princípio criou Deus o céu e a TERRA”. E acrescenta imediatamente de que TERRA se trata. E, indicando que no segundo dia foi criado o firmamento, que foi chamado de céu, dá a entender também de que céu falara antes, sem precisar o dia. Confissões XII, XIII
Não encontramos o tempo antes dessa criação, porque a sabedoria foi a primeira de todas as tuas criações. E é claro que não me refiro à Sabedoria da qual és Pai, ó nosso Deus, e que te é perfeitamente igual e co-eterna, por quem todas as coisas foram criadas, e que é o princípio em que criaste o céu e a TERRA; refiro-me à sabedoria criada, dessa essência intelectual que, pela contemplação da luz, também é luz; a esta, embora criada, também chamamos de sabedoria. E assim como a luz que ilumina difere da luz refletida, a sabedoria criada difere da sabedoria incriada; e a justiça justificante difere da justiça nascida da justificação. Nós fomos também chamados de tua justiça. Porque um de teus servos disse: “Para que, em Cristo, nos tornemos a justiça de Deus”. — Há portanto, uma sabedoria criada antes de todas as coisas, e ela foi criada como espírito racional e inteligente, que habita tua cidade santa, nossa mãe, que está no alto, livre e eterna nos céus — e em que céus, senão aos céus dos céus, que te louvam, esse céu que pertence ao Senhor? — Se não encontramos o tempo antes dessa sabedoria, é porque ela precede à criação do tempo, tendo sido criada primeiro, mas antes dela há a eternidade de seu Criador, de quem recebeu sua origem, e não do tempo, pois este ainda não existia, mas pela sua condição de criatura criada. Confissões XII, XV
Quero discutir diante de ti apenas com os que reconhecem por verdadeiras as afirmações que tua verdade revelou à minha inteligência. Os que o negam, que ladrem quanto quiserem, até ficar roucos. Tentarei persuadi-los a que se acalmem, e deem acesso em seus corações à tua palavra. Se não o quiserem e me repelirem, peço-te, meu Deus, que não te cales, não te afastes de mim. fala com verdade em meu coração, porque só tu podes falar assim. E eu os deixarei fora, soprando o pó e levantando TERRA contra os próprios olhos. Retirar-me-ei em mim mesmo, levantando a ti cânticos de amor, soluçando altos gemidos durante meu exílio, lembrando-me de Jerusalém, voltando para ela meu coração — Jerusalém, minha pátria e minha mãe — e para ti, que reinas sobre ela, seu pai, sua luz, seu tutor, seu esposo, suas castas e grandes delícias, sua firme alegria, enfim, todos seus bens inefáveis, porque és o único, soberano e verdadeiro Bem. Não me apartarei de ti até que reúnas todas as partes dispersas e deformadas do meu ser na paz dessa mãe muito amada, onde estão as primícias de meu espírito, e de onde me vêm todas as certezas, e nela me reformes e confirmes por toda a eternidade, ó meu Deus, minha misericórdia. Confissões XII, XVI
Eles dizem: “Sem dúvida, isso é verdade, mas não era isso que Moisés queria exprimir quando, inspirado pelo Espírito Santo, escreveu: “No princípio criou Deus e céu e a TERRA” — Pela palavra céu, ele não quis significar essa criatura espiritual ou intelectual, que contempla eternamente a face de Deus; e pela palavra TERRA, uma matéria informe. — Que quis dizer então? — O que nós afirmamos — respondem — isso é o que Moisés quis dizer, e o que expressou naquelas palavras. — E que é que afirmais? — Pelas palavras céu e TERRA quis significar, em primeiro lugar, globalmente e de forma concisa, todo o mundo visível, para em seguida pormenorizar, enumerando os dias, ponto por ponto, esse conjunto que aprouve ao Espírito Santo designar com uma expressão global. O povo rude e carnal ao qual falava era constituído de homens tais que julgou conveniente dar-lhes a conhecer apenas as obras visíveis de Deus”. Confissões XII, XVII
Quanto a esta TERRA invisível e informe, a este abismo de trevas, com que, durante seis dias, foram sucessivamente criadas e ordenadas todas as coisas visíveis que são conhecidas de todos, eles concordam comigo em que se pode entender com isso, sem erro, essa matéria informe de que falei. Confissões XII, XVII
Algum outro dirá, talvez, que a realidade invisível e visível não foi chamada impropriamente de céu e TERRA, e portanto, que o universo criado por Deus na sabedoria, isto é, no princípio, está compreendido sob esses dois termos. Porém as coisas não foram feitas da substância de Deus, mas do nada, e não se confundem com Deus, e nelas existe o princípio da mutabilidade, quer permaneçam como morada eterna de Deus, quer mudando-se como a alma e o corpo do homem. Confissões XII, XVII
Por isso a matéria comum a todas as coisas invisíveis e visíveis, matéria ainda informe, mas susceptível de forma, e de onde se fariam o céu e a TERRA — em outras palavras, a criação invisível e visível — mas uma e outra tendo recebido forma, foi designada por essas expressões de TERRA invisível e informe, e de trevas reinando sobre o abismo. Com a seguinte distinção: por TERRA invisível e informe deve-se entender a matéria corpórea antes de ser qualificada pela forma; e por trevas reinando sobre o abismo, a matéria espiritual antes da restrição de sua, digamos, imoderada fluidez, e antes de ser iluminada pela sabedoria. Confissões XII, XVII
Poderia alguém afirmar, se quisesse: Esses termos céu e TERRA não significam realidades perfeitas e acabadas, lá onde lemos: No princípio Deus criou o céu e a TERRA — mas um esboço ainda informe, uma matéria passível de receber forma e servir para a criação; nela já existiam, como que um embrião, sem distinção de formas e de qualidades, essas criaturas, uma espiritual, e outra material que, ordenadas como estão agora, são chamadas de céu e TERRA. Confissões XII, XVII
A verdade, Senhor é que criaste o céu e a TERRA. A verdade é que o princípio é tua Sabedoria, em que criaste todas as coisas. É também verdade que este mundo visível se compõe de duas grandes partes, o céu e a TERRA, síntese de todas as realidades criadas. É ainda verdade que tudo o que é mutável sugere a nosso pensamento a ideia de algo informe, susceptível de tomar forma, de mudar e de se transformar. Confissões XII, XIX
A verdade é que um ser tão intimamente unido a uma forma mutável que, embora sujeito em si a mudanças, nunca se transforma, não está sujeito ao tempo. A verdade é que a massa sem forma, que é quase o nada, não pode conhecer as vicissitudes do tempo. A verdade é que a matéria que constitui uma coisa, se assim podemos falar, toma o nome dessa coisa, e portanto, podemos chamar de céu e de TERRA a essa massa informe com a qual foram feitos o céu e a TERRA. Confissões XII, XIX
A verdade é que, de tudo o que recebeu forma, nada se aproxima mais do informe que a TERRA e o abismo. A verdade é que não apenas tudo o que foi criado e formado, mas ainda tudo o que possa ser criado se origina de ti, tu que és o autor de tudo que existe. A verdade é que tudo o que é formado a partir do informe, primeiro é informe, e depois recebe forma. Confissões XII, XIX
Todas essas verdades, das quais não duvidam os que de ti receberam a graça de ver com os olhos da alma, e que creem firmemente que teu servo Moisés falou em espírito de verdade, há quem dê esta interpretação: “No princípio Deus criou o céu e a TERRA” — isto é, Deus criou, em seu Verbo, que lhe é co-eterno, o mundo racional e sensível, ou espiritual e corporal. Outro diz: “No princípio Deus criou o céu e a TERRA” — isto é, Deus criou em seu Verbo, que lhe é co-eterno, toda a massa do mundo corpóreo, com tudo o que contém de realidades, manifestamente conhecidas. Confissões XII, XX
Um terceiro diz: “No princípio Deus criou o céu e a TERRA” — isto é, Deus criou em seu Verbo, que lhe é co-eterno, a matéria informe das criaturas espirituais e corporais. Outro afirma: “No princípio Deus criou o céu e a TERRA” — isto é, Deus criou a matéria informe das criaturas corporais, onde estavam ainda confundidos o céu e a TERRA, que agora distinguimos na massa do universo, com suas formas bem distintas e determinadas. Confissões XII, XX
Um último diz: “No princípio Deus criou o céu e a TERRA” — isto é, desde que começou a agir, Deus criou a matéria informe, onde estavam contidos confusamente em potencial o céu e a TERRA, que depois receberam forma própria, e que agora nos aparecem com tudo o que neles existe. Confissões XII, XX
O mesmo ocorre em relação à interpretação das palavras que se seguem. Entre essas, todas verdadeiras, cada um escolhe uma. Este diz: “A TERRA era invisível e caótica, e as trevas se estendiam sobre o abismo” — isto é, essa massa corpórea, que Deus fez, era a matéria ainda sem forma, sem ordem, sem luz, das coisas corpóreas. Confissões XII, XXI
Outro diz: “A TERRA era invisível e caótica, e as trevas se estendiam sobre o abismo” — isto é, esse conjunto que chamamos de TERRA e céu era a matéria ainda informe e tenebrosa, da qual seriam tirados o céu e a TERRA corpóreos, com tudo o que nossos sentidos físicos neles percebem. Confissões XII, XXI
Outro diz: “A TERRA era invisível e caótica, e as trevas se estendiam sobre o abismo” — isto é, esse conjunto que chamamos de céu e de TERRA era a matéria ainda informe e tenebrosa, donde seriam feitos o céu inteligível, noutros termos, o céu do céu, e a TERRA, isto é, toda natureza corpórea, nela incluindo o céu material, ou seja, a matéria de toda criatura visível e invisível. Confissões XII, XXI
Outro diz: “A TERRA era invisível e caótica, e as trevas se estendiam sobre o abismo” — isto é, não quis a Escritura chamar à massa informe de céu e de TERRA, porque ela já existia; é dessa massa que ela chamou de TERRA invisível, caótica, abismo de trevas, é dela, que Deus criou o céu e a TERRA, isto é, a criatura espiritual e a corporal. Confissões XII, XXI
E outro ainda: “A TERRA era invisível e caótica, e as trevas se estendiam sobre o abismo” — isto é, já existia uma matéria informe, da qual a Escritura diz que Deus criou o céu e a TERRA, toda a massa corporal do mundo, dividido em duas grandes partes, uma superior, outra inferior, com todas as criaturas nelas existentes e que nos são familiares. Confissões XII, XXI
Mas a essas últimas opiniões alguém poderia opor a seguinte objeção: “Se não quereis dar o nome de céu e TERRA à matéria informe, havia então alguma coisa não criada por Deus, e de que ele se serviria para criar o céu e a TERRA. De fato, a Escritura, não diz que Deus criou essa matéria, a menos que consideremos que seja ela o que chama céu e TERRA quando diz: “No princípio Deus criou o céu e a TERRA” — No que se segue: “A TERRA era invisível e informe” — ainda que a Escritura quisesse designar assim a matéria informe, nós apenas poderíamos entender com isso a matéria criada por Deus, conforme está escrito: “Criou o céu e a TERRA” — Aos que sustentam as duas últimas opiniões que acabamos de expor, ou de uma das duas, respondem assim: “Não negamos que esta matéria informe seja obra de Deus, de quem procede tudo o que é bom. De fato afirmamos ser um bem superior o que é criado e plenamente formado, mas também dizemos que aquilo que é passível de ser criado e receber forma, embora seja um bem inferior, é ainda um bem. Confissões XII, XXII
A Escritura não menciona a criação por Deus dessa matéria informe, mas deixa também de falar de muitas outras coisas, como, por exemplo, da criação dos querubins, dos serafins, dos tronos, das dominações, dos principados, das potestades, todas criaturas que o Apóstolo menciona claramente, e que Deus evidentemente criou. Se as palavras: “Deus criou o céu e a TERRA” — compreendem todas as coisas, que diremos das águas sobre as quais pairava o Espírito de Deus? Confissões XII, XXII
Se pretendemos que sejam parte do que designa a palavra TERRA, como conceber por isso uma matéria informe, quando vemos as águas tão belas? E, por outro lado, por que está escrito que dessa matéria informe foi criado o firmamento, chamado de céu, quando não se faz menção da criação das águas? Pois as águas que vemos correr com harmoniosa beleza e não são nem informes, nem invisíveis! E se elas receberam sua beleza quando Deus disse: “Que se reúnam as águas que estão sob o firmamento! — e se nessa reunião receberam sua formação, que dizer das águas que estão acima do firmamento? Informes, elas não teriam merecido lugar tão honroso, nem é referido com que palavras foram formadas. Confissões XII, XXII
Assim, se o Gênesis é omisso quanto à criação de certas coisas, criação essa que está acima de dúvidas para uma fé sadia e uma inteligência segura, e se nenhuma doutrina racional ousa sustentar que essas águas são co-eternas a Deus, pelo fato de as vermos mencionadas no Gênesis sem a menção do momento de sua criação , por que haveríamos de aceitar, à luz da verdade, que essa matéria informe, que a Escritura chama de TERRA invisível e desordenada e de abismo tenebroso, foi feita por Deus do nada e por isso não é co-eterna a Deus, embora a narração da Escritura tenha deixado de referir o momento em que foi criada? Confissões XII, XXII
Mas poderei dizer com a mesma certeza que Moisés teve essa intenção, e não outra, quando escreveu: “No princípio, criou Deus o céu e a TERRA”? — Embora esteja persuadido de que isto está claro na tua verdade, não vejo com igual certeza o que Moisés pretendia ao escrever tais palavras. Por essa expressão: “no princípio” pode ter significado: “no começo da criação”. Por céu e TERRA, pode ter querido dar-nos a entender, a natureza espiritual e corporal, não já formada e perfeita, mas uma e outra, só esboçada e sem forma. Vejo que ambos os sentidos são igualmente plausíveis. Mas não posso atinar em qual dos dois pensava Moisés quando escrevia essas palavras. Fosse porém qual fosse sua intenção ao exprimir essas palavras, eu não poderia duvidar de que tão grande homem tenha entrevisto a verdade e a tenha formulado adequadamente. Confissões XII, XXIV
Alguns, lendo ou escutando aquelas palavras, imaginam a Deus como homem ou como massa material dotada de imenso poder que, por decisão nova e repentina, criara fora de si mesma e como que à distância, o céu e a TERRA, esses dois grandes corpos, um superior, outro inferior, onde estão contidas todas as coisas. E ao ouvirem dizer:”Deus disse: faça-se isto! E isto foi feito! — imaginam que se trata de palavras comuns, que começam e terminam, que soam no tempo e passam. Julgam que, logo após pronunciadas, começa existir o que ordenaram que existisse. Todas as suas demais concepções ressentem-se do mesmo hábito de pensar de modo carnal. Confissões XII, XXVII
Outro, ao considerar as mesmas palavras, entende por princípio o começo da criação, e a expressão: “Deus criou no princípio” significa para ele: “Deus primeiramente fez”. E entre os mesmos que por princípio entendem que Deus criou em sua Sabedoria o céu e a TERRA, um acredita que céu e TERRA designam a matéria da qual o céu e a TERRA foram criados; outro pensa que a expressão se aplica a naturezas já formadas e distintas; outro sustenta que a palavra céu significa natureza formada e espiritual, a TERRA, a natureza informe e material. Confissões XII, XXVIII
Aqueles porém que entendem por céu e TERRA a matéria ainda informe, com a qual viriam a ser formados o céu e a TERRA, não têm unanimidade: um concebe essa matéria como origem comum das criaturas sensíveis e espirituais, outro apenas como fonte de massa sensível e corpórea, contendo em seu vasto seio todas as realidades visíveis, oferecidas a nossos sentidos. Confissões XII, XXVIII
Tampouco são unânimes os que creem que nesse texto céu e TERRA se referem às criaturas já formadas e dispostas; um acredita que se trata do mundo invisível e visível; outro, apenas do mundo visível, onde se contempla o céu luminoso e a TERRA tenebrosa, com tudo o que eles contêm. Confissões XII, XXVIII
Mas quem interpreta a palavra: “No princípio criou…” como se ela quisesse dizer: “Primeiramente Deus criou…” — apenas pode entender, por céu e TERRA, se quiser se manter coerente à verdade, a matéria do céu e da TERRA, isto é, da criação universal, tanto espiritual como material. Confissões XII, XXIX
Compreende-se por esse exemplo, que a matéria das coisas foi criada antes, e chamada de céu e TERRA, porque dela foram formados o céu e a terá. Não foi criada antes em sentido cronológico, porque o tempo só tem início com a forma das coisas; ora, a matéria era informe, e se tornou perceptível juntamente com o tempo. Todavia, nada se pode mencionar dessa matéria a não ser alguma prioridade temporal, embora ocupe a última posição na escala de valores, pois o que tem forma é evidentemente superior ao que é informe. Ou que foi precedida pela eternidade do Criador, que a fez para que fossem feitas do nada todas as coisas. Confissões XII, XXIX
Enfim, Senhor, tu que és Deus, e não carne e sangue, se um homem não pôde ver tudo por completo, poderia teu Espírito bom, que me deve conduzir à TERRA da retidão, desconhecer algo do que tencionavas revelar por essas palavras a seus leitores vindouros, apesar de teu mensageiro não entender senão um dos numerosos sentidos verdadeiros? Se assim é, o sentido que ele pensou era o mais elevado de todos. Mas revela a nós, Senhor, esse sentido ou algum outro que for de teu agrado e real; e quer nos mostres o mesmo sentido que ao homem de Deus, quer seja outro, inspirado pelas mesmas palavras, alimenta nosso espírito, guarda-nos da ilusão do erro. Confissões XII, XXXII
Contudo, eis que existo, graças à tua bondade que precedeu tudo o que sou e do que me fizeste. Não tinhas necessidade de mim, eu não sou um bem que te possa ser útil, meu Senhor e meu Deus. Se estou a teu serviço, não é porque a ação te cansa ou porque teu poder, privado de meus serviços, diminua; nem porque meu culto seja para ti o que é a cultura para a TERRA, que sem ela ficaria estéril. Eu devo te honrar para ser feliz em ti, a quem devo meu ser, capaz de felicidade. Confissões XIII, I
É pela plenitude de tua bondade que as criaturas subsistem, para que um bem, para ti de todo inútil, ou de nenhum modo igualável a ti, embora saído de ti, continuasse a existir, pois tu o criaste. Com efeito, que poderiam merecer de ti o céu e a TERRA, que criaste no princípio? E digam, as naturezas espirituais e corpórea, que méritos tinham a teus olhos, que as criaste em tua Sabedoria? Que méritos, para receber de ti o ser, que mostram inacabado e informe, quando tendem à desordem e se afastam de tua semelhança? O que é de natureza espiritual, mesmo informe, é ainda superior a um corpo que recebeu forma; um corpo sem forma é superior ao puro nada; ora, todas essas coisas continuariam informes em teu Verbo, se essa mesma palavra não as recolhesse à tua Unidade, comunicando-lhes a forma e a excelência graças apenas a ti, soberano Bem. Mas que merecimentos antecipados apresentaram a teus olhos, para existir mesmo informes essas criaturas que, sem que as criasses nem teriam existido? Confissões XIII, II
Mas eis que me aparece o enigma da Trindade que és, meu Deus. Porque tu, Pai, criaste o céu e a TERRA no princípio de nossa Sabedoria, que é tua Sabedoria, nascida de ti, igual e co-eterna, a ti, isto é, em teu Filho. Confissões XIII, V
Já falei longamente do céu do céu, da TERRA invisível e informe e do abismo das trevas, onde a natureza espiritual errante e fluida permaneceria tal se não se voltasse para Aquele de quem toda vida procede, para que, por meio de sua luz, se tornasse viva e bela, o céu do céu, criado mais tarde entre a água superior e a água inferior. Confissões XIII, V
Mas, ó luz da verdade, aproximo de ti meu coração para que ele não me ensine falsidades; dissipa-lhe as trevas e dize-me, eu to suplico por nossa mãe, a caridade, dize-me, por que só depois de ter nomeado o céu, a TERRA invisível e informe e as trevas sobre o abismo, por que só então é que as Escrituras falam de teu Espírito? Será porque convinha apresentá-lo assim pairando sobre alguma coisa? E seria isso possível se não mencionasse primeiro sobre o que pairava? De fato, não era sobre o Pai nem sobre o Filho que ele pairava, e seria impróprio falar assim se não pairasse sobre alguma coisa. Confissões XIII, VI
Ó minha fé, vai adiante em tua confissão. Dize a teu Senhor: “Santo, santo, santo! É o Senhor, meu Deus! — Em teu nome fomos batizados, Pai. Filho e Espírito Santo; em teu nome batizamos, Pai, Filho e Espírito Santo. Também entre nós Deus criou, pelo seu Cristo, um céu e uma TERRA, isto é, os espirituais e os carnais de sua Igreja. E nossa TERRA, antes de receber a forma da doutrina, era invisível e informe, e estávamos imersos nas trevas da ignorância, porque castigaste o homem por causa de sua iniquidade, e teus justos juízos são como abismos profundos. Confissões XIII, XII
Leem, escolhem, amam. Leem perpetuamente, e o que eles leem jamais fenece; escolhendo e amando, leem tua imutável vontade. Teu códice jamais de fecha, jamais se enrola, porque tu mesmo és eternamente esse livro; tu os estabeleceste acima deste firmamento, levantado por ti acima da fraqueza dos povos da TERRA, para que estes, olhando-o, reconheçam tua misericórdia, que te anuncia no tempo, tu criador do tempo. Tua misericórdia está no céu, e tua verdade se eleva até às nuvens. As nuvens passam, mas o céu permanece. Os que pregam tua palavra passam para uma outra vida, mas tua Escritura se estende sobre os povos até o fim dos séculos. Confissões XIII, XV
O céu e a TERRA passarão, mas tuas palavras não passarão. O pergaminho será enrolado, e a erva sobre o qual se estendia passará com seu esplendor, mas a tua palavra permanecerá eternamente. Agora ela nos aparece no enigma das nuvens e através do espelho dos céus, e não como é na realidade, porque ainda não se manifestou o que havemos de ser, apesar de amados pelo teu filho. Ele nos olhou através da teia da sua carne e nos acariciou, e nos inflamou de amor, e corremos atrás de sua fragrância. Mas quando ele aparecer seremos semelhantes a ele, porque o veremos tal como ele é. Vê-lo tal qual é será nossa felicidade, mas nós ainda não o podemos contemplar. Confissões XIII, XV
Não é justo a teus olhos que a luz imutável seja conhecida pelo ser mutável, que ela ilumina, como ela se conhece a si própria. Por isso, minha alma é para ti como TERRA sem água, porque assim como não pode iluminar a si mesma, não se pode saciar por seus próprios meios. Porque em ti está a fonte da vida, e graças à tua luz é que veremos a luz. Confissões XIII, XVI
Quem reuniu em um só mar as águas amargas? Seu objetivo é o mesmo: uma felicidade temporal, terrena, alvo de todas as suas ações a despeito da grande diversidade de cuidados que as agitam. Quem, senão tu, Senhor, poderia dizer a essas águas que se reunissem em um só lugar, e à TERRA enxuta que aparecesse, sedenta de ti? O mar é teu, pois tu o fizeste, e tuas mãos formaram a TERRA enxuta. Não é a amargura das vontades mas a reunião das águas que chamamos de mar. Também refreias as paixões más das almas e fixas os limites até onde permites que avancem as águas, para que suas ondas se quebrem sobre si mesmas; e assim, crias o mar, submetido a teu poder universal. Confissões XIII, XVII
As almas sedentas de ti, que aparecem a teu olhos separadas do mar com outra finalidade, tu as regas com um orvalho vivo, misterioso e doce, para que a TERRA produza seu fruto. Confissões XIII, XVII
E a TERRA o produz; ao teu comando, ó Senhor que és seu Deus, nossa alma germina obras de misericórdia, de acordo com sua condição: ela ama o próximo e vai em auxílio de suas necessidades materiais. Carrega em si a semente da compaixão, por uma semelhança de natureza, porque é o sentimento de nossa fraqueza que nos leva a compadecer as misérias dos que são necessitados, a socorrê-los, como desejaríamos que nos socorressem se tivéssemos as mesmas necessidades. E não se trata só de dar apoio fácil, como ervas nascidas de sementes, mas de proteção enérgica, vigorosa como a árvore que carrega frutos, símbolos das obras que arrebatam à mão do poderoso a vítima da injustiça, dando-lhe um abrigo à sombra protetora de um julgamento justo. Confissões XIII, XVII
Senhor, assim como crias e concedes alegria e força, assim te peço que nasça da TERRA a vontade, e que a justiça lance os olhos sobre nós do alto dos céus, e que no firmamento brilhem os astros! Dividamos nosso pão com quem tem fome, acolhamos em nossa casa o pobre sem teto, vistamos quem está nu, e não desprezemos nossos semelhantes! Quando tais frutos nascem de nossa TERRA, olha, Senhor, e diz: Isso é bom; faze que tua luz brilho no momento oportuno. Por esta humilde messe de boas obras, faze que nos possamos elevar a uma contemplação deliciosa do Verbo da Vida, e que brilhemos no mundo como astros, fixados no firmamento de tua Escritura. Confissões XIII, XVIII
Deste modo já não és mais o único, no segredo de teu discernimento, como eras antes da criação do firmamento, a distinguir entre a luz e as trevas. Também tuas criaturas espirituais, dispostas e ordenadas nesse mesmo firmamento, depois que tua graça se manifestou através do mundo, brilham sobre a TERRA, separam o dia da noite e marcam as diferenças dos tempos. De fato, as coisas antigas passaram, e eis que se fizeram novas, nossa salvação está mais próxima do que quando começamos a crer, a noite avançou e se aproximou o dia, coroas o ano com tua benção, envias teus operários à tua messe, semeada pelo trabalho de outros operários, enviando-os também para outra sementeira, cuja messe será colhida no fim dos séculos. Confissões XIII, XVIII
Por desígnio eterno, lanças sobre a TERRA os bens do céu no tempo oportuno; a um, teu Espírito dá a palavra de sabedoria, luminar maior para os que encontram seu deleite na luz de uma verdade clara como o raiar do dia; a outro dás, pelo mesmo Espírito, a palavra de ciência, luminar menor; a outro a fé; a outro o poder de curar; a outro o dom dos milagres; a outro a graça da profecia; a este o discernimento dos espíritos, àquele o dom das línguas. E todos esses dons são como estrelas, são obra de um só e mesmo Espírito, que reparte a cada um os seus dons como lhe agrada, e que faz aparecer tais astros para o bem comum. Confissões XIII, XVIII
Mas antes, lavai-vos, purificai-vos, arrancai a iniquidade de vossos corações e de meus olhos, para que apareça a TERRA seca. Aprendei a fazer o bem, sede justos para com o órfão e defendei a viúva, para que a TERRA produza a erva tenra e árvores cheias de frutos. Vinde e dialoguemos, diz o Senhor, e assim no firmamento do céu se ascenderão luminares que brilharão por sobre a TERRA. Confissões XIII, XIX
Aquele rico perguntava ao bom Mestre o que deveria fazer para ganhar a vida eterna. E o bom Mestre, que é bom porque é Deus, e não um homem como o rico o considerava, lhe declarou: “O que deseja conseguir a vida deve observar os mandamentos, afastar de si a amargura da malícia e da iniquidade, não matar, não cometer adultério, não roubar, não prestar falso testemunho, a fim de que se mostre a TERRA seca, geradora do respeito do pai e da mãe e do amor do próximo. Confissões XIII, XIX
— Tudo isto já fiz — diz o rico. — De onde vêm pois tantos espinhos, se a TERRA é fértil? — Vai, arranca os espessos emaranhados da avareza, vende teus bens, enriquece-te dando tudo aos pobres, e possuirás um tesouro no céu; segue o Senhor se queres ser perfeito, junta-te aos que ele instrui nas palavras de sabedoria, ele que sabe o que se deve dar ao dia e à noite. Também tu o saberás, e eles se tornarão para ti luminares no firmamento do céu. Mas isso não se realizará se ali não estiver teu coração, e teu coração, não estará onde não estiver teu tesouro — Assim falou teu bom Mestre. Mas a TERRA estéril entristeceu, e os espinhos sufocaram a Palavra divina. Confissões XIII, XIX
Mas vós, geração escolhida, fracos aos olhos do mundo, que tudo deixaste para seguir o Senhor, caminhais após ele, confundi os fortes; segui-lo com vossos pés resplandecentes, e brilhai no firmamento para que os céus cantem suas glórias, distinguindo a luz dos perfeitos, que ainda não são semelhantes aos anjos, e as trevas dos pequenos, que ainda não perderam a esperança. Brilhai sobre toda a TERRA! Que o dia resplandecente de sol transmita ao dia seguinte a palavra de Sabedoria, e que a noite, iluminada pela lua, transmita à noite a palavra de Ciência. A lua e as estrelas brilham na noite, mas a noite não as obscurece, porque são elas que iluminam a noite, de acordo com a sua capacidade. Confissões XIII, XIX
Que o mar também conceba e dê à luz tuas obras; que as águas produzam répteis dotados de almas vivas. De fato, separando o precioso do vil, vos tornastes a boca de Deus, pela qual ele diz: “Produzam as águas…” não a alma viva, filha da TERRA, mas répteis dotados de almas vivas, e pássaros que voam sobre a TERRA. Assim como esses répteis, teus sacramentos, ó meu Deus, deslizaram, graças às obras de teus santos, por entre as ondas das tentações do século para regenerarem os povos com teu nome, em teu batismo. Confissões XIII, XX
Então se operaram grandes maravilhas, semelhantes a enormes cetáceos, e as palavras de teus mensageiros percorreram a TERRA, sob o firmamento de teu Livro, que com tua autoridade deveria proteger seu voo para onde quer que fossem. Não há língua nem palavras em que não se ouçam suas vozes; seu som espalhou-se por toda a TERRA, e suas palavras até os confins do mundo, porque tu, Senhor, abençoando-os, os multiplicaste. Confissões XIII, XX
E assim não foi a profundeza do mar, mas a TERRA livre do amargor das águas que, impelida pelo teu Verbo gerou não mais os répteis dotados de almas vivas e os pássaros, mas a alma viva. Confissões XIII, XXI
E esta não mais tem necessidade de batismo (necessário para os gentios), como tinha necessidade enquanto as cobriam. Pois não se entra de outro modo no reino dos céus, desde que assim o determinaste. Para ter fé, ela já não exige grandes maravilhas. Ela crê sem ter visto sinais e prodígios, porque é TERRA fiel, já distinta das águas do mar que a incredulidade torna amargas: e as línguas são um sinal,não para os fiéis, mas para os infiéis. Confissões XIII, XXI
A TERRA que estendeste acima das águas não tem necessidade dessa espécie de aves que as águas produziram por ordem de teu Verbo. Envia-lhe, pois, teu Verbo, por meio de teus mensageiros. Nós falamos de suas obras, mas quem age por seu intermédio, para que produzam uma alma viva, és tu. A TERRA a germina porque é a causa dos fenômenos que ocorrem na superfície, assim como o mar foi causa da produção dos répteis dotados de almas vivas, e das aves sob o firmamento do céu. A TERRA já não necessita destas criaturas, embora ela se alimente de peixes pescados nas profundezas do mar, nessa mesa que preparaste na presença dos crentes; porque eles foram pescados nas profundezas do mar para alimentar a TERRA árida. Confissões XIII, XXI
Também as aves, ainda que nascidas no mar, multiplicam-se sobre a TERRA. As primeiras gerações evangélicas foram motivadas pela incredulidade dos homens, mas também fiéis nela encontram diariamente copiosas exortações e bênçãos. Todavia, a alma viva, extrai da TERRA sua origem, porque somente aos fiéis é meritório abster-se de amar este mundo, para que sua alma viva por ti, essa alma que estava morta quando vivia em delícias mortíferas. Ó Senhor, só tu fazes as delicias de um coração puro. Confissões XIII, XXI
Que teus ministros trabalhem na TERRA, não como nas águas da incredulidade, quando pregavam e falavam utilizando-se de milagres, de sinais misteriosos, de termos místicos, para capturar atenção da ignorância, mãe da admiração, pelo medo desses sinais secretos. Por esta porta, de fato, os filhos de Adão têm acesso à fé, esquecidos de ti enquanto se escondem de tua fade e se tornam abismos. Que teus ministros trabalhem como em TERRA seca, separada das fauces do abismo; e que sejam modelo para os fiéis, vivendo sob teus olhares e incitando-os à imitação. E assim ouve não só para ouvir, mas também para praticar. “Procurai a Deus, e vossa alma viverá, e a TERRA dará nascimento a uma alma viva. Não vos conformeis com este mundo em que vivemos, abstendo-vos dele. A alma vive evitando as coisas cujo desejo causa-lhe a morte. Confissões XIII, XXI
Mas tua palavra, meu Deus, é a fonte da vida eterna, e não passa. Ela mesma nos proíbe que nos afastemos de ti por essas palavras: “Não vos conformeis com o mundo em que vivemos, para que a TERRA, fertilizada pela fonte da vida, produza uma alma viva, uma alma que busque em tua palavra, transmitida por teus evangelistas, se fortificar, imitando os imitadores de teu Cristo”. — Eis o sentido da expressão “segundo sua espécie”, porque o homem imita a quem ama. “Sede como eu” — diz o Apostolo, – porque sou como vós. — Assim haverá na alma viva apenas feras sem maldade, agindo com doçura. Pois nos deste este mandamento: “Fazei vossas obras com mansidão, e sereis amados por todos” — Também os animais domésticos serão bons: se comerem, não sofrerão fastio e, se não comerem, não terão fome. As serpentes, tornando-se boas, serão incapazes de causar danos, mas continuarão astutas e cautelosas; não investigarão a natureza temporal, senão na medida necessária para compreender e contemplar a eternidade através das coisas criadas. Esses animais, as paixões, obedecem à razão, quando refreados em seus caminhos mortais, vivem e se tornam bons. Confissões XIII, XXI
Ele julga tudo, significa que tem autoridade sobre os peixes do mar, sobre os pássaros do céu, sobre os animais domésticos e selvagens, sobre toda a TERRA e sobre todos os répteis que nela se arrastam. Exerce esse poder pela inteligência, pela qual percebe as coisas que são do Espírito de Deus. Mas, elevado a tão grande honra, o homem não entendeu sua dignidade, igualou-se aos jumentos insensatos, tornando-se semelhante a eles. Confissões XIII, XXIII
Por isso, o homem que criaste à tua imagem, não recebeu poder sobre os astros do céu, nem sobre o mesmo céu misterioso, nem sobre o dia e a noite que chamaste á existência antes da criação do céu, nem sobre a massa das águas, que é o mar. Mas recebeu poder sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre todos os animais, sobre toda a TERRA, e sobre tudo o que se arrasta pela superfície do solo. Confissões XIII, XXIII
Ele julga e aprova o que acha bom, e reprova o que acha mau, quer na celebração dos sacramentos, com que são iniciados os que na tua misericórdia tira das águas profundas, quer no banquete em que se serve o peixe tirado das profundezas para alimento da TERRA fiel; quer nas palavras e expressões sujeitas à autoridade de teu Livro que, semelhantes aos pássaros, voam sob o firmamento: interpretações, exposições, discussões, bênçãos e invocações que brotam sonoras da boca, para que o povo responda: Amém! É necessário que essas palavras sejam enunciadas fisicamente, por causa do abismo do mundo e da cegueira da carne que, impossibilitada de ver o pensamento, tem necessidade de sons que firam os ouvidos. Assim, sem dúvida é sobre a TERRA que as aves se multiplicam, embora tenham suas origens na água. Confissões XIII, XXIII
O homem espiritual julga também aprovando o que acha correto e reprovando o que é vicioso nas obras e nos costumes dos fiéis. Julga das suas esmolas, comparáveis aos frutos da TERRA; ele julga a alma viva pelas paixões domadas pela castidade, os jejuns, e pelos pensamentos piedosos, na medida em que essas coisas se manifestam aos sentidos do corpo. Em resumo, é juiz de tudo o que pode se corrigir. Confissões XIII, XXIII
Mas que é isto? Que mistério é este? Abençoas os homens, Senhor, para que eles cresçam, se multipliquem, e encham a TERRA. Não queres nisto dar-nos a entender alguma coisa? Confissões XIII, XXIV
Por que não abençoaste também a luz, que chamaste dia, nem a TERRA, nem o mar? Eu diria, meu Deus, que nos criaste à tua imagem, diria que quiseste conceder especialmente ao homem esta benção, se não houvesses abençoado igualmente os peixes e os cetáceos, para que cresçam, se multipliquem, encham as águas do mar, e os pássaros para que se multipliquem sobre a TERRA. Confissões XIII, XXIV
Afirmaria ainda que essa benção foi reservada às espécies vivas que se reproduzem por meio de geração, caso a encontrasse também nas árvores, nas plantas, nos animais da TERRA. Mas não foi dito nem às plantas, nem às árvore , nem aos répteis: “Crescei e multiplicai-vos” — embora todas essas criaturas se multipliquem pela procriação, como os peixes, os pássaros e os homens, conservando assim sua espécie. Confissões XIII, XXIV
E note ainda nisto, meu leitor. Há uma frase que a Escritura declara de uma só forma, e que a voz fala apenas dessa maneira: “No princípio criou Deus o céu e a TERRA” — E não pode a frase ser interpretada diversamente — descartando o erro ou o sofisma — conforme os diversos pontos de vista legítimos? É assim que crescem e se multiplicam as gerações dos homens! Se consideramos a natureza das coisas, não alegoricamente, mas em sentido próprio, a sentença: “Crescei e multiplicai-vos” — se aplica a todas as criaturas que nascem de uma semente. Se, ao contrário, a interpretamos em sentido figurado, como penso que foi a intenção da Escritura, que não limita inutilmente essa benção aos peixes e aos homens, encontramos então multidões de criaturas espirituais e temporais, como no céu e na TERRA; de almas justas e injustas, como na luz e nas trevas; de escritores sagrados que nos anunciaram a Lei, como no firmamento estabelecido entre as águas; na sociedade amargurada dos povos, como no mar; no zelo das almas piedosas, como em TERRA enxuta; nas obras de misericórdia praticadas nesta vida, como nas plantas que nascem de semente e nas árvore frutíferas; nos dons espirituais concedidos para o bem de todos, como nos luminares do céu; nas paixões dominadas pela temperança, como na alma viva. Em todas essas coisas encontramos multidões, fecundidade, crescimento. Mas que esse crescimento e essa proliferação exprimam uma mesma ideia de vários modos e que uma só expressão possa ser entendida de muitas maneiras, esse fato, apenas o encontramos nos sinais sensíveis e nos conceitos intelectuais. Confissões XIII, XXIV
É assim que as águas do mar se povoam, e não se moveriam sem as várias interpretações das palavras. É assim que a TERRA se povoa de gerações humanas; sua aridez se fecunda pela sua paixão da verdade, sob o poder da razão. Confissões XIII, XXIV
Tu nos deste para alimento todas as ervas que produzem semente e que cobrem a TERRA, e todas as árvore que contém em si, em germe, seus frutos. E não foi somente a nós que deste esse alimento, mas também às aves do céu, aos animais da TERRA e aos répteis, mas não aos peixes e aos grandes cetáceos. Dizíamos que esses frutos da TERRA significam e representam alegoricamente as obras de misericórdia, que a TERRA fecunda produz para as necessidades desta vida. Era semelhante a uma TERRA assim o piedoso Onesíforo, cuja casa recebeu a graça de tua misericórdia, porque muitas vezes assistira a teu Paulo, sem se envergonhar por suas cadeias. Confissões XIII, XXV
É o mesmo que fizeram os irmãos que, de Macedônia, lhe forneceram o que lhe era necessário, produzindo também abundante fruto. E contudo, o Apóstolo se queixa de certas árvore que não lhe tinham dado fruto devido, quando escreve: “em minha primeira defesa ninguém me assistiu; todos me abandonaram. Que isto não lhes seja imputado!” — Tais frutos são devidos aos que nos ministram doutrina racional, ajudando-nos a compreender os mistérios divinos. E nós lhes devemos exemplos de todas as virtudes; e também lhes devemos os frutos como a pássaros do céu, por causa das bênçãos que distribuem abundantemente sobre a TERRA, pois sua voz se fez ouvir por toda a TERRA. Confissões XIII, XXV
Por isso, Senhor, direi diante de ti a verdade. Por vezes, ignorantes e infiéis que, para serem iniciados e conquistados para a fé, precisam desses rituais de iniciação e de milagres mirabolantes, simbolizados, a meu ver, pelos peixes e pelos cetáceos, acolhem teus servos e os socorrem, ou os auxiliam nas necessidades da vida presente, sem saber por que o fazem nem em vista de que devem agir. Desse modo, nem aqueles os alimentam, nem estes são alimentados por eles, pois os primeiros não são movidos por vontade santa e reta, e os segundos não se alegram com os dons recebidos, não descobrindo neles fruto algum. Ora, a alma só se alimenta com o que lhe traz alegria. É esta a razão pela qual os peixes e os cetáceos se nutrem de alimentos que a TERRA só pode produzir depois de separados e purificados de amargura das águas do mar. Confissões XIII, XXVII
Ouvi, Senhor, meu Deus, tua voz, e recolhi em meu coração uma gota de doçura de tua verdade. Compreendi que há uns aos quais tuas obras desagradam. Eles sustentam que muitas delas fizeste constrangido pela necessidade, como a estrutura dos céus, a ordem dos astros; afirmam que não as criaste por ti mesmo, mas que elas já existiam alhures, criadas por outra fonte; que te limitaste a reuni-las, a ordená-las, a entrelaçá-las; que com elas construíste as muralhas do mundo, depois de vencido teus inimigos, para que essa construção os mantivesse cativos, e não mais pudessem se revoltar contra ti; que não criaste nem organizaste outros seres, como os corpos carnais, os animais pequenos e tudo o que se prende à TERRA por meio de raízes; que foi um espírito hostil, uma outra natureza, não criada por ti, e que se opõe a ti nas regiões inferiores do mundo, que as gerou e organizou. Esses insensatos falam assim porque não veem tuas obras através de teu Espírito, nem te reconhecem neles. Confissões XIII, XXX
Graças te damos, Senhor! Vemos o céu e a TERRA, isto é, a parte superior e inferior do mundo material, assim como a criação espiritual e material. E, como adorno dessas partes que se compõe, o conjunto do Universo, e o conjunto de toda a criação, vemos a luz que foi criada e separada pelas trevas. Vemos o firmamento do céu, tanto o que está situado entre as águas espirituais superiores e as águas materiais inferiores, como ainda esses espaços de ar, chamados também de céu, onde volitam as aves do céu entre as águas que se evolam em vapores, e nas noites serenas se condensam em orvalho, e as que correm pesadas sobre a TERRA. Vemos a beleza das águas reunidas nas planícies do mar, e a TERRA enxuta, ora nua, ora tomando forma visível e ordenada, mãe das plantas e das árvore . vemos os luminares do céu brilhando acima de nós, o sol bastar para o dia, a lua e as estrelas consolando a noite, e todos esses astros marcando e assinalando a cadência do tempo. Vemos o elementos úmido habitado por peixes, monstros, animais alados, porque a densidade do ar que sustenta o voo dos pássaros é aumentada pela evaporação das águas. Vemos a face da TERRA embelezar-se de animais terrestres, e o homem, criado à tua imagem e semelhança, senhor de todos os animais irracionais, precisamente porque foi feito à tua imagem e se assemelha a ti, em virtude da razão e da inteligência. E como na alma humana há uma parte que domina pela reflexão e outra que se submete na obediência, assim a mulher foi criada fisicamente para o homem; é fora de dúvida que ela possui um espírito e uma inteligência racional, iguais aos do homem, mas seu sexo a coloca sob a dependência do sexo masculino; é desse modo que o desejo, princípio da ação, se submete à razão que concebe a arte do agir retamente. Eis o que vemos, e que cada uma dessas coisas, tomadas por si, são boas, e que todas, em seu conjunto, são muito boas. Confissões XIII, XXXII
Foram feitas por ti do nada, não de tua substância, nem de nenhuma substância estranha ou inferior a ti, mas de matéria concriada, isto é, criada por ti ao mesmo tempo em que lhe deste forma, sem nenhum intervalo de tempo. Sem dúvida a matéria do céu e da TERRA é uma coisa, e sua forma é outra; a matéria tua a fizeste do nada, a forma, tu a tiraste da matéria informe. Confissões XIII, XXXIII
Também meditei sobre o significado simbólico da ordem pela qual se fez tua criação e da ordem pela qual a Escritura relata. Vimos que tuas obras, consideradas cada uma em si, são boas, e em seu conjunto, muito boas. Em teu Verbo, em teu Filho único, vimos o céu e a TERRA, a cabeça e o corpo da Igreja, predestinadas antes de todos os tempos, quando ainda não havia nem manhã, nem tarde. Depois começaste a executar no tempo o que predestinaste antes do tempo, a fim de revelar teus desígnios ocultos e de dar ordem às nossas desordens — porque pesavam sobre nós nossos pecados, e nos perdíamos longe de ti em voragens de trevas. Teu Espírito misericordioso pairava sobre nós, para nos socorrer no momento oportuno. Justificaste os ímpios; tu os separaste dos pecadores e confirmaste a autoridade de teu Livro entre os superiores, que te eram dóceis, e os inferiores, para que a eles se submetessem. Reuniste em um corpo único, de mesmas aspirações, a sociedade dos infiéis, para que aparecesse o zelo dos fiéis fecundo em obras de misericórdia, e distribuindo aos pobres os bens da TERRA para adquirir os do céu. Confissões XIII, XXXIV