Agostinho de Hipona — SEXTA-FEIRA DE PÁSCOA
Tradução do Padre António Fazenda
2. Quando, pois, o Senhor Jesus Cristo escolheu pescadores de peixes para os fazer pescadores de homens, até das pescas deles se quis servir para nos dar algum ensino sobre a vocação dos povos. Reparai que as pescas são duas, muito diversas e com grande diferença uma da outra. A primeira foi quando o Senhor os escolheu de pescadores para discípulos seus; a segunda, que acabamos de ouvir na leitura do Sagrado Evangelho, depois da ressurreição do Senhor Jesus Cristo; aquela antes da ressurreição, esta depois da ressurreição. Reparai bem na diferença entre estas duas pescas. Esta barca serve para nossa instrução. Serve para nossa lição.
A pregação do Evangelho era nova, estava a começar. Encontrou-os então a pescar. Aproximou-se e disse-lhes: Deitai as redes. Resposta deles: Toda a santa noite nada apanhamos, trabalho inútil. Mas no teu nome, aí vão as redes (Lc 5, 4-5). Fizeram o lanço e a colheita foi tão grande que encheram ambas as barcas e elas com tamanha carga de peixes quase se afundavam. Depois, com a grande quantidade de peixes, rebentaram as redes. Diz-lhes então: Vinde após mim e far-vos-ei pescadores de homens (Mc 1, 17). Deixaram logo redes e barcas e seguiram a Cristo.
Agora, depois da ressurreição, mostrou-nos o Senhor Jesus outra pesca que não se deve confundir com a primeira. Então disse: Lançai as redes; não disse nem «para a esquerda» nem «para a direita»; só disse: Lançai as redes. Se dissesse «para a esquerda» só queria significar os maus; «para a direita» só designaria os bons. Mas como não disse nem «para a direita» nem «para a esquerda» significava os bons e os maus, dos quais diz o Evangelho noutro lugar que mandou o Pai de Família os seus criados, depois de preparada a ceia e trouxeram quantos puderam encontrar, bons e maus, e a sala da boda ficou cheia de convidados (Mt 22, 10).
Tal é agora a Igreja, cheia de bons e de maus. É grande a multidão que a enche e esta multidão faz não raro muito peso e leva-a quase à beira do naufrágio. A multidão dos que vivem mal perturba os que vivem bem, e de tal modo os desorienta que o que vive bem pensa que é tolo quando repara nos outros que vivem mal, sobretudo porque, em relação aos bens deste mundo, há muitos desonestos que são felizes, e há muitos que são infelizes, não obstante honestos. Quanto não é para temer que se oprima e afunde! Quanto não é de temer, irmãos caríssimos, que diga o que vive bem: «Que me aproveita a mim viver bem? Aquele acolá vive mal e é mais estimado do que eu. Que me aproveita a mim viver bem?» Está em perigo, tenho medo que se vá ao fundo. Vou falar a esse homem que vive bem para que não se afunde mais:
«Tu, que vives bem, não te desalentes nem olhes para trás. A promessa do Senhor é verdadeira: Quem perseverar até ao fim é que será salvo (Mt 24, 13). — Não vês, dizes, que aquele vive mal e é feliz?- Estás enganado! É infeliz, e é tanto mais infeliz, quanto mais imagina que é feliz. Loucura é que não reconheça a própria miséria. Tu, se visses a rir-se um homem queimado de febre, terias pena dele como de um louco. Aquilo que te prometeram não chegou ainda. Aquele que parece feliz ceva-se em coisas visíveis e temporais, nelas se delicia; nem as trouxe para cá nem as levará de cá; como entrou nu, nu sairá (Jb 1, 21). Há de passar de gozos falsos a dores verdadeiras. Quanto a ti, o que te prometeram ainda não chegou. Aguenta até o alcançares. Persevera. Não te deixes enganar pelo desalento, porque Deus não te pode enganar.» Aí tendes breves palavras para as barcas se não afundarem.
Sobreveio naquela pesca um caso muito aborrecido e foi que as redes se romperam. Romperam-se as redes, rebentaram as heresias. Que outra coisa são os cismas senão rasgaduras? Tem que se aturar e tolerar a primeira pesca de modo que ninguém se mostre enfadado, embora esteja escrito: Sinto-me enfadado com os pecadores que deixam a tua lei {Sl 118, 53). A barca grita que se afunda com o peso da multidão, como se o próprio batei proferisse estas palavras: Sinto-me enfadado por causa dos pecadores que deixam a tua lei. Ainda que te carregue o peso, tem cuidado de não ir ao fundo. Agora temos que suportar os maus, não se devem separar. Cantaremos ao Senhor a sua misericórdia e a sua justiça (Sl 100, 1). Primeiro oferece-se a misericórdia, mais tarde faz-se o juízo. A separação far-se-á no Juízo. Agora, ouça-me o bom e faça-se melhor, ouça-se também o mau e faça-se bom, enquanto é tempo de penitência e não ainda do juízo.
Passemos desta pesca que tem gostos misturados com lágrimas: gostos porque se ajuntam os bons, misturados com lágrimas porque mal se aturam os maus.
*153 PEIXES