Agostinho: pai

E antes desse tempo, minha doçura e meu Deus, que era eu? Fui alguém, ou era parte de alguma coisa? Dize-mo, porque não tenho quem me responda, nem meu PAI, nem minha mãe, nem a experiência dos outros, nem minha memória. Acaso te ris de mim, porque desejo saber estas coisas, e me mandas que te louve e te confesse pelo que conheci de ti? Confissões I, VI

Nesta época eu já tinha fé verdadeira, juntamente com minha mãe e com todos da casa, à exceção de meu PAI, que, porém, não pôde vencer em mim a ascendência da piedade materna, para que deixasse de acreditar em Cristo, tal como ele não acreditava; minha mãe, solícita, cuidava de que tu, meu Deus, fosses mais PAI para mim do que ele, e a ajudavas a triunfar do marido, a quem servia melhor, porque nele te servia a ti e a tuas ordens. Confissões I, XI

Tu vês, Senhor, estas coisas, e te calas compassivo, paciente, cheio de misericórdia e verdade. Mas te calarás para sempre? Arranca, pois, agora deste espantoso abismo a alma que te busca sedenta de teus deleites, e que te diz de coração: Busquei, Senhor, teu rosto; teu rosto, Senhor, buscarei ainda. Longe está de teu rosto quem anda ocupado com afetos tenebrosos, porque não é com os pés carnais, nem cobrindo distâncias que nos aproximamos ou nos afastamos de ti. Porventura aquele teu filho menor procurou cavalos, ou carros, ou naves, ou voou com asas invisíveis, ou viajou a pé para alcançar aquela região longínqua onde dissipou o que lhes havia dado, ó PAI, meigo ao lhe entregar a substância, e mais carinhoso ainda ao recebê-lo andrajoso? Assim, pois, viver nas paixões da luxúria, é o mesmo que viver em paixões tenebrosas, é viver longe de teu rosto. Confissões I, XVIII

Nesse mesmo ano tive de interromper meus estudos, quando voltei de Madaura, cidade vizinha, onde fora estudar literatura e oratória, enquanto se faziam os preparativos necessários para minha viagem mais longa a Cartago, levado mais pela ambição de meu PAI que pelos seus parcos bens, pois, era mui modesto cidadão de Tagaste. Confissões II, III

Quem então não cumulava a meu PAI de louvores, pois excedendo até seus deveres familiares, gastava com o filho o necessário para tão longa viagem por causa de seus estudos? Confissões II, III

Contudo, este mesmo PAI não se importava de saber se eu crescia para ti, ou que fosse casto, contanto que fosse deserto; mas antes eu era deserto, por carecer de teu cultivo, ó Deus, único, verdadeiro e bom senhor de teu campo, o meu coração. Confissões II, III

Pelo contrário, meu PAI, certo dia, percebendo ao banho sinais de minha puberdade e vendo-me revestido de inquieta adolescência, como se já se alegrasse pensando nos netos, foi contá-lo alegre à minha mãe. Alegria esta gerada pela embriaguez com que este mundo esquece de ti, seu criador, e em teu lugar ama tua criatura; embriaguez que nasce do vinho sutil de sua perversa e mal inclinada vontade para as coisas baixas. Confissões II, III

Mas, nessa época, já tinhas começado a levantar, no coração de minha mãe, teu templo e os alicerces de tua santa morada; meu PAI não era mais que catecúmeno, recente ainda. Por isso minha mãe perturbou-se com santo temor. Embora eu ainda não fosse batizado, temia que eu seguisse as sendas tortuosas por onde andam os que te voltam as costas, e não o rosto. Confissões II, III

Nem então minha mãe carnal, que já fugira do meio da Babilônia, mas que em outras coisas caminhava mais devagar, cuidou — como fizera ao aconselhar-me a castidade — de conter com os laços do matrimonio aquilo de que seu marido lhe falara a meu respeito. Já percebera ela que me era pestilento, e que mais adiante me seria perigoso — já que essa paixão não podia ser cortada pela raiz. Não pensou nisso, digo, por temer que o vínculo matrimonial frustrasse a esperança que sobre mim acalentava; não a esperança da vida futura, que ela já tinha posto em ti, mas a esperança das letras que ambos, meu PAI e minha mãe, desejavam ardentemente; meu PAI, porque não pensava quase nada de ti, mas apenas ambições vãs a meu respeito; minha mãe, porque considerava que tais tradicionais estudos das letras não só não me seriam de estorvo, sendo de não pouca ajuda para chegar a ti. Assim julgo eu, agora, enquanto me é possível pela lembrança, o caráter de meus pais. Confissões II, III

Entre essa gente estudava eu, em tão tenra idade, os livros da eloquência, na qual desejava sobressair com o fim condenável e vão de satisfazer à vaidade humana. Mas, seguindo o programa usado no ensino desses estudos, cheguei a um livro de Cícero, cuja linguagem, mais do que seu conteúdo, quase todos admiram. Esse livro contém uma exortação à filosofia, e se chama Hortênsio. Esse livro mudou meus sentimentos, e transferiu para ti, Senhor, minhas súplicas, e fez com que mudassem meus votos e desejos. Subitamente, tornou-se vil a meus olhos toda vã esperança, e com incrível ardor de meu coração suspirava pela sabedoria imortal, e comecei a me reerguer para voltar a ti. Não era para limar a linguagem — aperfeiçoamento que, parece, eu compraria com o dinheiro de minha mãe, naquela idade de meus dezenove anos, fazendo dois que morrera meu PAI — não era, repito, para limar o estilo que eu me dedicava à leitura daquele livro, nem era seu estilo o que a ela me incitava, mas o que ele dizia. Confissões III, IV

Diziam: “Verdade! Verdade!” — e, incessantemente, falavam-me da verdade, que nunca existiu neles; antes, diziam muitas falsidades, não apenas de ti, que és verdade por excelência, mas também dos elementos deste mundo, criação tua. Sobre isso, mesmo quando os filósofos diziam a verdade, tive de ultrapassá-los nos raciocínios por amor de ti, ó PAI sumamente bom, beleza de todas as belezas! Ó verdade, verdade! Quão intimamente suspiravam por ti as fibras da minha alma, quando eles te faziam soar ao meu redor frequentemente e de muitos modos, embora apenas com as palavras e em seus muitos e volumosos livros. Estes eram as bandejas nas quais, estando eu faminto de ti, serviam-me em teu lugar o sol e a lua, formosas obras de tuas mãos, porém, obras tuas, e não a ti, nem sequer das principais. De fato, tuas obras espirituais são superiores a estas corporais, ainda que estas sejam brilhantes e celestes. Mas eu tinha sede e fome não daquelas primeiras, mas de ti mesmo, ó verdade, na qual não há mudança nem obscuridade momentânea! E eles serviam-me nessas bandejas esplendidas ficções, de acordo com as quais teria sido melhor amar a este sol, verdadeiro pelo menos aos olhos, em lugar daquelas falsidades que pelos olhos do corpo enganavam o entendimento. Confissões III, VI

Contudo, o abismo dos costumes cartagineses, onde ferve o gosto dos espetáculos frívolos, engolfara-o na loucura dos jogos circenses. Alípio revolvia-se miseravelmente nesse abismo na época em que eu ensinava retórica na escola pública, mas ele não me tinha como mestre por causa de uma desavença que surgira entre mim e seu PAI. Eu sabia que Alípio amava morbidamente o circo, e isso muito me angustiava, por me parecer que se iam se perder, se já não estivessem, magníficas esperanças. Mas não achava meios de alertá-lo e repreendê-lo, nem pela amizade, nem pelo magistério, pois julgava que tinha sobre mim a mesma opinião que seu PAI. Mas não era assim. Pondo de parte a vontade paterna sobre isso, começou a me cumprimentar, comparecia à minha aula, ouvia-me um pouco, e logo se retirava. Confissões VI, VII

Depois venceu a resistência paterna para me escolher como mestre, e seu PAI cedeu e consentiu. Voltando a ser meu discípulo, foi envolvido comigo na superstição dos maniqueus, apreciando neles aquela ostentação de continência, que ele julgava legítima e sincera. Na verdade, porém, era um desvario sedutor, um laço onde caíam almas preciosas, ainda incapazes de avaliar a sublimidade da virtude e, por isso mesmo, vítimas fáceis da aparência que mascara uma virtude hipócrita e fingida. Confissões VI, VII

Também Nebrídio deixou sua pátria, vizinha de Cartago, e a própria Cartago, onde gozava de boa fama. Abandonou as magníficas propriedades do PAI, a casa e até a própria mãe, que não o quis seguir; veio para Milão apenas para viver comigo, na busca apaixonada da verdade e da sabedoria. Confissões VI, X

Foste tu que me fizeste encontrar um amigo mui afeiçoado a consultar os astrólogos, não entendido nessa ciência, mas que consultava por curiosidade. Conhecia ele uma história, que ouvira do PAI, segundo dizia. Ignorava ele até que ponto essa história era valiosa para destruir a autoridade daquela arte. Confissões VII, VI

Então, ele me contou que seu PAI tinha grande interesse na leitura de tais livros, e que tivera um amigo igualmente apaixonado. Conversando sobre a matéria, empolgaram-se cada vez mais no estudo daquelas tolices, e chegaram ao ponto de observar os momentos do nascimento até dos animais domésticos, notando a posição das estrelas a fim de coligir dados experimentais daquela pseudo-arte. Confissões VII, VI

Firmino me relatava ter ouvido o PAI contar que, estando sua mãe para o dar à luz, também estava grávida uma serva daquele amigo de seu PAI, coisa que não poderia passar despercebida a seu senhor, que cuidava com extrema diligência e precisão de conhecer até o parto das cadelas. Confissões VII, VI

Após esta abertura e nela baseado, ruminava dentro de mim tais coisas, para que nenhum daqueles loucos que buscam nisso o lucro, e a quem eu então desejava refutar e ridicularizar, não me objetasse que Firmino ou o PAI podia ter contado mentiras. Voltei pois minha atenção ao caso dos gêmeos, muitos dos quais saem do seio materno com tão breve intervalo de tempo, que por mais que o pretendam importante, não pode ser apreciado pela observação humana, nem pode ser considerado nos signos que o astrólogo lançará mão para fazer uma previsão certa. Mas os vaticínios não serão verdadeiros pois, vendo os mesmos signos, deveria predizer a mesma sorte para Esaú e Jacó, sendo que os sucessos da vida de ambos foram muito diversos. Confissões VII, VI

Igualmente achei nesses livros, dito de diversos e múltiplos modos, que o Filho, consubstancial ao PAI, não considerou usurpação ser igual a Deus, porque o é por natureza. Não dizem porém que se aniquilou a si mesmo, tomando a forma de escravo, que se fez semelhante aos homens, sendo julgado homem por seu exterior; e que se humilhou, fazendo-se obediente até a morte, e morte de cruz, pelo que Deus o ressuscitou entre os mortos, e lhe deu um nome acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobrem todos os joelhos no céu, na terra e no inferno, e toda língua confesse que o Senhor Jesus está na glória de Deus PAI. Confissões VII, IX

Fui ter pois com Simpliciano, PAI espiritual do então bispo Ambrósio, que o amava verdadeiramente como PAI. Contei-lhe os labirintos do meu erro. E quando lhe disse que havia lido alguns livros dos platônicos, traduzidos para o latim por Vitorino, outrora retórico em Roma — e do qual ouvira dizer que morrera cristão — ele me felicitou por não ter caído nas obras de outros filósofos, falazes e enganosas, segundo os elementos deste mundo, mas apenas estes, que insinuam por mil modos a Deus e a seu Verbo. Confissões VIII, II

Bom Deus, que se passa no homem para que se alegre mais com a salvação de uma alma desesperada, quando salva de grande perigo, do que se ela sempre tivesse tido esperança, ou se o perigo tivesse sido menor? Também tu, PAI misericordioso, sentes mais alegria por um pecador arrependido do que por noventa e nove justos que não têm necessidade de penitência. Grande é o nosso prazer ao falar da alegria do pastor trazendo de volta sobre os ombros a ovelha desgarrada, e da mulher que repõe em teus tesouros, para satisfação geral dos vizinhos, a dracma perdida. E nos arranca lágrimas a alegria das festas de tua casa quando lemos que teu filho menor estava morto e reviveu; estava perdido e foi encontrado. Confissões VIII, III

Estremeci de medo, ao mesmo tempo me abrasei de alegre esperança em tua misericórdia, ó PAI! E todos estes sentimentos saíam pelos meus olhos e pela voz quando, dirigindo-se para nós, teu Espírito de bondade nos dizia: Filhos dos homens, até quando sereis duros de coração? Por que amais a vaidade e buscais a mentira? Confissões IX, IV

Foste tu quem a educaste, nem seu PAI, nem sua mãe sabiam o que viriam a ser aquela a quem geraram. A disciplina de teu Cristo, a doutrina de teu Filho único educaram-na em teu temor em uma família fiel, digno membro de tua Igreja. Confissões IX, VIII

Nem ela mesma enaltecia o zelo da mãe em educá-la, quanto o de uma velha serva, que carregara seu PAI quando menino, como hoje as meninas maiores costumam carregar as crianças, às costas. Confissões IX, VIII

Onde estava então a prudente anciã, e sua severa proibição? Mas que remédio curaria um mal oculto se tua medicina, Senhor, não velasse sobre nós? Na ausência do PAI, da mãe e das amas, estavas lá tu que nos criaste, que nos chamas, e que por meio dos que nos educam fazes o bem para a salvação das almas. Que fizeste então, meu Deus? Como a socorreste? Como a curaste? Fizeste sair de outra pessoa, segundo tuas secretas providências, um sarcasmo duro e pungente como ferro medicinal, para curar de um só golpe aquela gangrena. Confissões IX, VIII

Lembrei então a ir aos banhos, por ter ouvido dizer que a palavra banho (bálneo, em latim) vinha dos gregos, que o chamaram balanéion (tirar fora a ania), porque o banho aliviava as tristezas da alma. Mas eu o confesso à tua misericórdia — ó PAI dos órfãos: depois do banho fiquei como estava antes, porque meu coração não expulsou o amargor de sua tristeza. Confissões IX, XII

E agora, Senhor, to confesso nestas linhas: leia-o quem quiser, interprete-o como quiser. E se alguém julgar que pequei nessas lágrimas, que derramei sobre minha mãe por alguns instantes, por minha mãe então morta a meus olhos, ela que me havia chorado tantos anos para que eu vivesse aos teus olhos, não se ria. Antes, é grande sua caridade, chore por meus pecados diante de ti, PAI de todos os irmãos de teu Cristo! Confissões IX, XII

Que ela repouse em paz com seu marido, antes e depois do qual não teve outro; a quem serviu, com uma paciência cujo fruto te oferecia, para o ganhar também para ti. Mas inspira, meu Senhor e meu Deus, inspira a teus servos, meus irmãos, a teus filhos, meus senhores, a quem sirvo de coração, com a palavra e com a pena, para que, ao lerem estas páginas, diante do teu altar lembrem de Mônica, tua serva, e de Patrício, outrora seu esposo, pelos quais me introduziste misteriosamente nesta vida. Que lembrem com piedoso afeto daqueles que foram meus pais nesta vida transitória, e meus irmãos em ti, ó PAI, na Igreja Católica, nossa mãe, e meus concidadãos na eterna Jerusalém, pela qual suspira teu povo em sua peregrinação desde a saída até o regresso. Assim, graças às minhas confissões, o último desejo de Mônica será mais amplamente satisfeito com muitas orações do que só pelas minhas. Confissões IX, XIII

Sou como uma criança, mas meu PAI vive sempre, e é meu tutor idôneo; ele é a um tempo o que me gerou e o que me protege. Tu és todo o meu bem, tu, onipotente, que estás comigo mesmo antes de eu estar contigo. Confissões X, IV

“Tu me ensinaste, PAI bondoso, que tudo é puro para os puros, mas que é mau para o homem comer com escândalo, que tudo o que fizeste é bom, e que nada deve ser rejeitado do que se recebe com ação de graças; que os alimentos não nos recomendam a Deus, que ninguém nos deve julgar pela comida ou pela bebida; que o que come não deve julgar o que não come”. — Por essas lições, graças e louvores te dou, meu Deus, meu Mestre, que bateste à porta de meus ouvidos e iluminaste meu coração. Livra-me de toda tentação. Não receio a impureza dos alimentos, mas a impureza do prazer. Confissões X, XXXI

Ó luz que Tobias contemplava quando, cego, mostrava ao filho o caminho da vida, caminhando à sua frente com os passos da caridade, sem jamais se perder! Luz que via Isaac, quando seus olhos carnais, oprimidos e velados pela velhice, mereceram não abençoar os filhos reconhecendo-os, mas reconhecê-los ao abençoá-los! Luz que via Jacó, também cego pela idade provecta, irradiou os fulgores de seu coração iluminado sobre as gerações do povo futuro, representadas em seus filhos! E a seus netos, os filhos de José, impôs as mãos misticamente cruzadas, não na ordem em que queria dispô-los o PAI, que via com os olhos corporais, mas de acordo com seu próprio discernimento interior! Eis a verdadeira luz; ela é uma, e todos os que a veem e amam formam um único ser. Confissões X, XXXIV

Como nos amaste, PAI bondoso! Não poupando teu Filho único, o entregaste por nós pecadores! Oh! Como nos amaste! Foi por amor a nós que teu Filho, que não considerava rapina o ser igual a ti, submeteu-se até a morte de cruz. Ele era o único livre entre os mortos, tendo o poder de dar sua vida e de novamente retomá-la. Por nós se fez diante de ti vencedor e vítima; por nós, diante de ti, se fez sacerdote e sacrifício, e sacerdote porque ele era o sacrifício; de escravos, fez de nós teus filhos; nascidos de ti, se fez nosso escravo. Com razão ponho nele a firme esperança que curarás todas as minhas enfermidades por intermédio dele, que está sentado à tua direita e intercede por nós junto de ti. De outro modo desesperaria, pois são muitos e grandes meus males; porém mais poderoso é o poder do teu remédio. Poderíamos pensar que teu Verbo estava muito longe para se unir ao homem, e desesperar de nós, se ele não se tivesse feito carne, habitando entre nós. Confissões X, XLIII

Também nós oramos e, não obstante, a Verdade nos diz: O PAI sabe do que haveis mister, antes mesmo de lho pedires. — Por isso manifestamos nosso amor por ti, confessando-te nossas misérias e tuas misericórdias para conosco, para que termines a nossa libertação que começaste, e para que deixemos de ser infelizes em nós para sermos felizes em ti. Pois nos chamaste para que fôssemos pobres de espírito, mansos, penitentes, famintos e sedentos de justiça, misericordiosos, puros de coração e pacíficos. Confissões XI, I

Vê, meu Deus, de onde nasce meu desejo. Os ímpios contaram-me suas alegrias, mas esses prazeres não são como os proporcionados por tua lei. É ela que inspira meu desejo. Olha, ó PAI, olha, e vê, e aprova. Queira tua misericórdia que eu encontre graça diante de ti, e que os arcanos secretos de tuas palavras se abram a meu espírito que bate às suas portas! Isso eu te suplico por nosso Senhor, Jesus Cristo, teu filho, aquele que está sentado à tua direita, o Filho do homem, a quem estabeleceste como mediador entre nós e ti. Por ele nos procuraste quanto não te procurávamos, e nos procuraste para que te buscássemos! Em nome de teu Verbo, por quem criaste todas as coisas, e a mim entre outras; de teu Filho unigênito, por quem chamaste à adoção o povo dos crentes, no qual também estou. Confissões XI, II

PAI, apenas pergunto, não estou afirmando; meu Deus, ajuda-me, dirige-me. Quem ousaria afirmar que não existe três tempos, como aprendemos na infância e como ensinamos às crianças, o passado, o presente e o futuro? será que só o presente existe, porque os demais, o passado e o futuro, não existem? Ou será que eles também existem, e então o presente provém de algum lugar oculto, quando de futuro se torna presente, e também se retira para outro esconderijo, quando de presente se torna passado? E os que predisseram o futuro, onde o viram, se ele ainda não existe? É impossível ver-se o que não existe. E os que narram o passado diriam mentiras se não vissem os acontecimentos com o espírito. Ora, se esse passado não tivesse existência alguma, seria absolutamente impossível vê-lo. Por conseguinte, o futuro e o passado também existem. Confissões XI, XVII

Minha alma se inflama no desejo de deslindar este enigma tão complicado! Senhor, meu Deus, meu bom PAI, eu to suplico por Cristo; não queiras tolher a meu desejo a solução de tais problemas, tão familiares mas tão obscuros; permite que eu os penetre, e faze com que a luz de tua misericórdia os ilumine, Senhor! A quem poderia eu consultar sobre isso? A quem confessaria minha ignorância com mais proveito do que a ti, que não se despraz com o forte zelo que me inflama por tuas Escrituras? Concede-me o que amo, pois este amor é um dom teu. Dá-me, ó PAI, esta graça, tu que sabes presentear com boas dádivas a teus filhos. Concede-me essa luz, porque determinei conhecê-las, e meu esforço será rude até que me reveles esses mistérios. Eu to suplico, por Cristo, em nome do Santo dos Santos, que ninguém perturbe minha investigação. Confissões XI, XXII

Agora, porém, meus anos transcorrem em lamentos, e tu, meu consolo, ó Senhor, meu PAI, tu és eterno. Mas eu me dispersei no tempo, cuja ordem ignoro; tumultuosas vicissitudes despedaçam meus pensamentos, entranhas de minha alma, até o dia em que, purificado pelo fogo de teu amor, me una a ti. Confissões XI, XXIX

Não encontramos o tempo antes dessa criação, porque a sabedoria foi a primeira de todas as tuas criações. E é claro que não me refiro à Sabedoria da qual és PAI, ó nosso Deus, e que te é perfeitamente igual e co-eterna, por quem todas as coisas foram criadas, e que é o princípio em que criaste o céu e a terra; refiro-me à sabedoria criada, dessa essência intelectual que, pela contemplação da luz, também é luz; a esta, embora criada, também chamamos de sabedoria. E assim como a luz que ilumina difere da luz refletida, a sabedoria criada difere da sabedoria incriada; e a justiça justificante difere da justiça nascida da justificação. Nós fomos também chamados de tua justiça. Porque um de teus servos disse: “Para que, em Cristo, nos tornemos a justiça de Deus”. — Há portanto, uma sabedoria criada antes de todas as coisas, e ela foi criada como espírito racional e inteligente, que habita tua cidade santa, nossa mãe, que está no alto, livre e eterna nos céus — e em que céus, senão aos céus dos céus, que te louvam, esse céu que pertence ao Senhor? — Se não encontramos o tempo antes dessa sabedoria, é porque ela precede à criação do tempo, tendo sido criada primeiro, mas antes dela há a eternidade de seu Criador, de quem recebeu sua origem, e não do tempo, pois este ainda não existia, mas pela sua condição de criatura criada. Confissões XII, XV

Quero discutir diante de ti apenas com os que reconhecem por verdadeiras as afirmações que tua verdade revelou à minha inteligência. Os que o negam, que ladrem quanto quiserem, até ficar roucos. Tentarei persuadi-los a que se acalmem, e deem acesso em seus corações à tua palavra. Se não o quiserem e me repelirem, peço-te, meu Deus, que não te cales, não te afastes de mim. fala com verdade em meu coração, porque só tu podes falar assim. E eu os deixarei fora, soprando o e levantando terra contra os próprios olhos. Retirar-me-ei em mim mesmo, levantando a ti cânticos de amor, soluçando altos gemidos durante meu exílio, lembrando-me de Jerusalém, voltando para ela meu coração — Jerusalém, minha pátria e minha mãe — e para ti, que reinas sobre ela, seu PAI, sua luz, seu tutor, seu esposo, suas castas e grandes delícias, sua firme alegria, enfim, todos seus bens inefáveis, porque és o único, soberano e verdadeiro Bem. Não me apartarei de ti até que reúnas todas as partes dispersas e deformadas do meu ser na paz dessa mãe muito amada, onde estão as primícias de meu espírito, e de onde me vêm todas as certezas, e nela me reformes e confirmes por toda a eternidade, ó meu Deus, minha misericórdia. Confissões XII, XVI

Mas eis que me aparece o enigma da Trindade que és, meu Deus. Porque tu, PAI, criaste o céu e a terra no princípio de nossa Sabedoria, que é tua Sabedoria, nascida de ti, igual e co-eterna, a ti, isto é, em teu Filho. Confissões XIII, V

Pelo vocábulo “Deus” eu já entendia o PAI, que criou essas coisas; na palavra “princípio” Confissões XIII, V

eu entendia o Filho, em quem ele as criou. E, como eu acreditava na Trindade de meu Deus, eu a procurava em tuas santas palavras. E vi em tuas Escrituras que teu Espírito pairava sobre as águas. Eis tua Trindade, meu Deus, PAI, Filho, Espírito Santo, Criador de toda criatura! Confissões XIII, V

Mas, ó luz da verdade, aproximo de ti meu coração para que ele não me ensine falsidades; dissipa-lhe as trevas e dize-me, eu to suplico por nossa mãe, a caridade, dize-me, por que só depois de ter nomeado o céu, a terra invisível e informe e as trevas sobre o abismo, por que só então é que as Escrituras falam de teu Espírito? Será porque convinha apresentá-lo assim pairando sobre alguma coisa? E seria isso possível se não mencionasse primeiro sobre o que pairava? De fato, não era sobre o PAI nem sobre o Filho que ele pairava, e seria impróprio falar assim se não pairasse sobre alguma coisa. Confissões XIII, VI

Mas o PAI e o Filho, não pairavam também sobre as águas? Se os imaginamos como um corpo pairando no espaço, isso não se pode aplicar nem mesmo ao Espírito Santo. Se porém entendermos por isso a excelência imutável da divindade acima de tudo o que é transitório, então o PAI, o Filho e o Espírito Santo pairavam igualmente sobre as águas. E por que só se menciona o Espírito Santo? Por que se menciona apenas a seu respeito um lugar onde estava, ele que, no entanto, não ocupa espaço? Também apenas dele se disse que era um dom de Deus, e é em teu dom que repousamos; é nele que gozamos de ti. Nosso repouso é nosso lugar. É para lá que o amor nos arrebata, e teu Espírito levanta nossa humildade para longe das portas da morte. A paz, para nós, reside na tua boa vontade. Os corpos tendem, por seu peso, para o lugar que lhes é próprio; mas um peso não tende só para baixo; tende para o lugar que lhe é próprio. O fogo sobe, a pedra cai. Cada um é movido por seu peso, e tende para seu justo lugar. O óleo, lançado à água, flutua; a água, lançada ao óleo, afunda. Ambos são impelidos por seu peso a procurarem o lugar que lhes é próprio. As coisas que não estão em seu lugar se agitam; mas quando o encontram, repousam. Confissões XIII, IX

Ó minha fé, vai adiante em tua confissão. Dize a teu Senhor: “Santo, santo, santo! É o Senhor, meu Deus! — Em teu nome fomos batizados, PAI. Filho e Espírito Santo; em teu nome batizamos, PAI, Filho e Espírito Santo. Também entre nós Deus criou, pelo seu Cristo, um céu e uma terra, isto é, os espirituais e os carnais de sua Igreja. E nossa terra, antes de receber a forma da doutrina, era invisível e informe, e estávamos imersos nas trevas da ignorância, porque castigaste o homem por causa de sua iniquidade, e teus justos juízos são como abismos profundos. Confissões XIII, XII

Senhor, faze que contemplemos os céus, obra de tuas mãos! Dissipa de nossos olhares as nuvens com que os tens velado. Neles está teu testemunho, dando sabedoria aos humildes. Meu Deus completa teu louvor pela boca dos meninos que ainda mamam! Não conhecemos outros livros que assim destruam a soberba, e que abatam tão bem o inimigo que resiste a toda reconciliação contigo, e defende seus pecados. Não, Senhor, não conheci outras palavras tão puras, que tantos me persuadissem à confissão, e sujeitassem minha mente a teu jugo, convidando-me a te servir tão desinteressadamente. Oxalá eu as compreenda, bondoso PAI! Concede esta graça à minha submissão, pois as firmaste para os corações submissos. Confissões XIII, XV

Aquele rico perguntava ao bom Mestre o que deveria fazer para ganhar a vida eterna. E o bom Mestre, que é bom porque é Deus, e não um homem como o rico o considerava, lhe declarou: “O que deseja conseguir a vida deve observar os mandamentos, afastar de si a amargura da malícia e da iniquidade, não matar, não cometer adultério, não roubar, não prestar falso testemunho, a fim de que se mostre a terra seca, geradora do respeito do PAI e da mãe e do amor do próximo. Confissões XIII, XIX

Quer dizer, então, ó minha Luz, ó Verdade? Que tais palavras carecem de senso e foram ditas em vão? De nenhum modo, ó PAI de misericórdia. Longe de mim, longe do servidor de teu Verbo, uma tal afirmação! Apenas não compreendo o sentido dessas palavras, e espero que os melhores que eu, ou seja, os mais inteligentes, a entendam melhor, segundo a sabedoria que deste, meu Deus, a cada um. Que te agrade ao menos a confissão, que faço diante de ti, de minha certeza de que não falaste em vão aquelas palavras. Confissões XIII, XXIV