Agostinho: olhos

E não era desobediente para me ocupar de coisas melhores, mas por amor ao jogo; buscava nos combates orgulhosas vitórias; deleitava-me com histórias frívolas, com as quais incentivava sempre mais minha curiosidade. Igualmente curiosos, meus OLHOS se abriam sempre mais para os jogos e espetáculos dos adultos, jogos que dão tao grande dignidade a quem os oferece, que quase todos desejam as mesmas dignidades para seus filhos. Contudo, gostam de os castigar se com tais espetáculos fogem dos estudos, por meio dos quais desejam que eles venham um dia a oferecer espetáculos semelhantes. Senhor, olha misericordiosamente para essas coisas, e livra-nos delas a nós que já te invocamos; mas livra também aos que ainda não te invocam, a fim de que te invoquem, e sejam igualmente libertados. Confissões I, X

Aquelas primeiras letras, pelas quais podia, como ainda faço, chegar e ler tudo o que há escrito e a escrever tudo o que quero, eram melhores e mais úteis que aquelas outras nas quais me obrigavam a decorar os erros de um tal Eneias, esquecido dos meus, e a chorar a morte de Dido, que se suicidou por amor, enquanto isso, eu, miserabilíssimo, suportava a minha própria morte com OLHOS enxutos, morrendo para ti, ó meu Deus, minha vida! Na verdade, que pode haver de mais miserável do que um infeliz que não se compadece de si mesmo e que, chorando a morte de Dido por amor de Eneias, não chora sua própria morte por falta de amor a ti, ó Deus, luz de meu coração, pão interior de minha alma, virtude fecundante de meu pensamento? Não te amava; prevaricava longe de ti, e ouvia de todas as partes: “Muito bem! Muito bem!” — porque a amizade deste mundo é adultério contra ti; e se aclamam a alguém dizendo: “Muito bem! Muito bem!” — é para que este não se envergonhe de ser assim. Eu não chorava estas faltas, chorava a morte de Dido “que se suicidou com a espada”, eu procurava as últimas de tuas criaturas, abandonando-te a ti, como terra que eu era, atraída pela terra. Se então me proibissem a leitura de tais coisas, me afligiriam por não ler aquilo que me comovia até a dor. Confissões I, XIII

Digo e confesso diante de ti, meu Deus, essas misérias, que me angariavam o louvor daqueles cuja simpatia equivalia para mim a uma vida honesta, pois não via o abismo pois não via o abismo de torpeza em que tudo isso me lançara, longe dos teus OLHOS. A teus OLHOS quem era mais repelente do que eu? E eu até desagradava tais homens, enganando com infinidade de mentiras a meus criados, mestres e pais por amor dos jogos, por gosto de ver espetáculos frívolos e o desejo inquieto de os imitar. Confissões I, XIX

Tempo houve de minha adolescência em que ardi em desejos de me fartar dos prazeres mais baixos, e ousei a bestialidade de vários e sombrios amores, e se murchou minha beleza, e me transformei em podridão diante de teus OLHOS, para agradar a mim mesmo e desejar agradar aos OLHOS dos homens. Confissões II, I

Quem desatará este nó, tão enredado e emaranhado? Como é asqueroso! Não quero voltar para ele os OLHOS, não quero vê-lo. Só a ti quero, justiça e inocência, tão bela e graciosa aos OLHOS puros, e com insaciável saciedade. Só em ti se acha o descanso supremo e a vida imperturbável. Quem entra em ti, entra no gozo do seu Senhor, e não temerá, e estará perfeitamente bem no sumo bem. Eu me afastei de ti e andei errante, meu Deus, mui longe de teu esteio em minha adolescência, e cheguei a ser para mim mesmo uma região de esterilidade. Confissões II, X

Entre essa gente estudava eu, em tão tenra idade, os livros da eloquência, na qual desejava sobressair com o fim condenável e vão de satisfazer à vaidade humana. Mas, seguindo o programa usado no ensino desses estudos, cheguei a um livro de Cícero, cuja linguagem, mais do que seu conteúdo, quase todos admiram. Esse livro contém uma exortação à filosofia, e se chama Hortênsio. Esse livro mudou meus sentimentos, e transferiu para ti, Senhor, minhas súplicas, e fez com que mudassem meus votos e desejos. Subitamente, tornou-se vil a meus OLHOS toda vã esperança, e com incrível ardor de meu coração suspirava pela sabedoria imortal, e comecei a me reerguer para voltar a ti. Não era para limar a linguagem — aperfeiçoamento que, parece, eu compraria com o dinheiro de minha mãe, naquela idade de meus dezenove anos, fazendo dois que morrera meu pai — não era, repito, para limar o estilo que eu me dedicava à leitura daquele livro, nem era seu estilo o que a ela me incitava, mas o que ele dizia. Confissões III, IV

Diziam: “Verdade! Verdade!” — e, incessantemente, falavam-me da verdade, que nunca existiu neles; antes, diziam muitas falsidades, não apenas de ti, que és verdade por excelência, mas também dos elementos deste mundo, criação tua. Sobre isso, mesmo quando os filósofos diziam a verdade, tive de ultrapassá-los nos raciocínios por amor de ti, ó pai sumamente bom, beleza de todas as belezas! Ó verdade, verdade! Quão intimamente suspiravam por ti as fibras da minha alma, quando eles te faziam soar ao meu redor frequentemente e de muitos modos, embora apenas com as palavras e em seus muitos e volumosos livros. Estes eram as bandejas nas quais, estando eu faminto de ti, serviam-me em teu lugar o sol e a lua, formosas obras de tuas mãos, porém, obras tuas, e não a ti, nem sequer das principais. De fato, tuas obras espirituais são superiores a estas corporais, ainda que estas sejam brilhantes e celestes. Mas eu tinha sede e fome não daquelas primeiras, mas de ti mesmo, ó verdade, na qual não há mudança nem obscuridade momentânea! E eles serviam-me nessas bandejas esplendidas ficções, de acordo com as quais teria sido melhor amar a este sol, verdadeiro pelo menos aos OLHOS, em lugar daquelas falsidades que pelos OLHOS do corpo enganavam o entendimento. Confissões III, VI

Contudo, como as tomava por ti, alimentava-me delas, não certamente com avidez, porque não tinham o teu gosto — pois não eras aqueles vãos fantasmas — nem me nutria com elas, antes sentia-me cada vez mais debilitado. A comida que se toma em sonhos, não obstante ser muito semelhante à do estado de vigília, não alimenta aos que dormem, porque estão dormindo. Aquilo, porém, em nada era semelhantes a ti, como agora me certificou a verdade, pois que eram fantasmas corpóreos ou falsos corpos; comparados com eles, são mais reais estes corpos — celestes ou terrestres — que vemos com os OLHOS da carne assim como os veem os animais e as aves. Confissões III, VI

Assim encontrei aquela mulher insolente e sem prudência — enigma de Salomão — que, sentada em uma cadeira à porta de sua casa, diz aos que passam: Comei à vontade dos pães escondidos, e bebei da doçura da água roubada, a qual me seduziu por andar eu vagando fora de mim, sob o império da vista carnal, ruminando em meu íntimo o que meus OLHOS haviam devorado. Confissões III, VI

Eu, ignorando essas coisas, perturbava-me com essas perguntas. Afastando-me da verdade, parecia-me encaminhar para ela, porque não sabia que o mal é apenas privação do bem, até chegar ao seu limite, o próprio nada. E como poderia ter eu tal conhecimento, se com os OLHOS não conseguia ver mais do que corpos, e com a alma não ia além de fantasmas? Confissões III, VII

Ignorava eu então estas coisas e não as refletia e, embora de todos os lados me ferissem os OLHOS, eu não as via. Quando declamava algum poema, não me era lícito por um pé em qualquer outra parte do verso, senão em uma espécie de metro uns e em outra outros, e em um mesmo verso não podia meter em todas as partes o mesmo pé; e a própria arte da prosódia, apesar de mandar coisas tão distintas, não era diversa em cada parte, senão uma só e coerente. Confissões III, VII

Mas estendeste tua mão do alto, e arrancaste minha alma deste abismo de trevas, enquanto minha mãe, tua fiel serva, chorava-me diante de ti muito mais do que as outras mães costumam chorar sobre o cadáver dos filhos, pois via a morte de minha alma com a e o espírito que havia recebido de ti. E tu a escutaste, Senhor, tu a ouviste e não desprezaste suas lágrimas que, brotando copiosas, regavam o solo debaixo de seus OLHOS por onde fazia sua oração; sim, tu a escutaste, Senhor. Com efeito, donde podia vir aquele sonho, com que a consolaste, ao ponto de me admitir em sua companhia e mesa, fato que havia me negado porque aborrecia e detestava as blasfêmias do meu erro? Confissões III, XI

Seguiram-se, efetivamente, quase nove anos, durante os quais continuei a me revolver naquele abismo de lodo e trevas de erro, afundando-me tanto mais quanto mais esforços fazia para me libertar. Entretanto, aquela piedosa viúva, casta e sóbria como as que tu amas, já um pouco mais alegre com a esperança, porém, não menos solícita em suas lágrimas e gemidos, não cessava de chorar por mim em tua presença em todas as horas de suas orações; e suas preces eram aceitas a teus OLHOS, mas deixava-me ainda revolver-me e envolver-me naquela escuridão. Confissões III, XI

Que dor fez anoitecer o meu coração! Tudo o que via era morte para mim. a pátria me era um suplício, e a casa paterna tormento insuportável, e tudo o que o lembrava transformava-se para mim em crudelíssimo martírio. Buscavam-no por toda parte meus OLHOS, e o mundo não mo devolvia. Cheguei a odiar todas as coisas, porque nada o continha, e ninguém mais me podia dizer como antes, quando chegava depois de alguma ausência: “Ali vem ele”. Transformara-me mesmo num grande problema. Perguntava à minha alma porque andava triste, e se perturbava tanto, e ela não sabia o que responder-me. E se eu lhe dizia: “Espera em Deus” — minha alma não me obedecia, e com razão, porque para mim, era mais real e melhor o amigo querido que perdera, que o fantasma em que mandava tivesse esperança. Só o pranto me era doce. Ocupava o lugar de meu amigo nas delicias de meu coração. Confissões IV, IV

Meu Deus, eis aqui meu coração, ei seu conteúdo! Olha para o meu passado, porque sei, esperança minha, que me purificas da impureza desses afetos, atraindo para ti meus OLHOS, e libertando meus pés dos laços que me aprisionavam. Maravilhava-me de que sobrevivessem os outros mortais a seus amados se nunca houvessem de morrer; e mais me maravilhava ainda de que, morto ele, eu continuasse a viver, porque eu era outro ele. Bem disse um poeta quando chamou ao amigo “metade da sua alma”. E eu senti que minha alma e a sua não eram mais que uma em dois corpos, e por isso causava-me horror a vida, porque não queria viver pela metade; e ao mesmo tempo tinha muito medo de morrer, para que não morresse de todo aquele a quem eu tanto amara. Confissões IV, VI

Por isso fugi de minha pátria, porque meus OLHOS buscariam menos meu amigo onde não estavam acostumados a vê-lo. E assim me fui de Tagaste para Cartago. Confissões IV, VII

Outros prazeres havia neles que cativavam mais fortemente minha alma, como conversar, rir, agradar-nos mutuamente com amabilidade, ler juntos livros bem escritos, gracejar uns com os outros e divertir-nos juntos; às vezes discutir, mas sem ódio, como quando discordamos de nós mesmos para, com tais discórdias muito raras, temperar as muitas conformidades; ensinar ou aprender reciprocamente muitas coisas, suspirar impacientes pelos ausentes e receber alegres os recém-chegados. Estes sinais, e outros semelhantes, que procedem de corações que se amam, e que se manifestam no rosto, na fala, nos OLHOS, e em mil outros gestos graciosos, inflamavam nossas almas, como em uma centelha, fazendo de muitas uma só. Confissões IV, VIII

Daqui passei à natureza da alma, mas o falso conceito que tinha das coisas espirituais não me permitia perceber a verdade. A própria força da verdade saltava-me aos OLHOS, mas logo eu afastava da realidade incorpórea meu espírito inquiridor, voltando-me para as figuras, as cores e as grandezas materiais. E como não podia ver nada semelhantes na alma, julgava que tampouco seria possível ver minha alma. Confissões IV, XV

De que me aproveitava também ler e compreender por mim mesmo todos os livros que pude ter nas mãos sobre as artes chamadas liberais, se eu era então escravo de minhas más inclinações? Comprazia-me em sua leitura, sem atinar de onde vinha quanto de verdadeiro e certo achava neles; eu estava de costas para a luz, e o rosto, para os objetos iluminados, e por isso meus OLHOS, que os viam iluminados, não recebiam luz. Confissões IV, XVI

Antecedera-o a fama de homem erudito em toda espécie de ciência, e particularmente instruído nas artes liberais. E como eu tinha lido muitas teorias dos filosofo, e as guardava na memória, quis comparar algumas destas com as grandes fábulas do maniqueísmo. Pareciam-me mais prováveis as doutrinas daqueles que chegaram a conhecer a ordem do mundo, embora não tivessem encontrado a seu Criador. Porque tu és grande, Senhor, e pondes os OLHOS nas coisas humildes, e as elevadas as conheces de longe, e não te aproximas senão dos contritos de coração. Nem és encontrado pelos soberbos, ainda que sua curiosa perícia seja capaz de contar as estrelas do céu e as areias do mar; seja capaz de medir as regiões do céu e de investigar o curso dos astros. Confissões V, III

Contudo, exigia-me que acreditasse nessas doutrinas, embora não concordassem absolutamente com meus cálculos e com o que meus OLHOS testemunhavam. Confissões V, III

Diante de ti estão meu coração e minha memória, e que já então guiavas no segredo oculto de tua providência, pondo diante de meus OLHOS meu erros vergonhosos, para que os visse e odiasse. Confissões V, VI

Mas, quando apresentei minhas dificuldades à sua consideração e crítica, com grande modéstia, não se atreveu a tomar sobre si tal encargo, pois certamente sabia que ignorava o assunto e não se envergonhava de confessá-lo. Não pertencia à classe de charlatães que me vi obrigado muitas vezes a suportar, que pretendiam ensinar-me tais coisas, mas não me diziam nada. Este, pelo menos, tinha coração, senão dirigido a ti, pelo menos não era incauto consigo mesmo. Não ignorava totalmente sua ignorância, razão pela qual não quis meter-se temerariamente em questões de onde não pudesse sair, ou de mui difícil retirada. Por isso mesmo cresceu aos meus OLHOS, por ser a modéstia de uma alma que se conhece muito mais bela que o saber que eu desejava; e em todas as questões mais difíceis e sutis o encontrei sempre com igual ânimo. Confissões V, VII

Mas o verdadeiro motivo de eu sair de Cartago e ir para Roma só tu, ó Deus, o sabias, sem manifestá-lo a mim nem à minha mãe, que chorou amargamente minha partida, seguindo-me até o mar. Mas tive de enganá-la, porque me agarrava com força, instando-me a desistir de meu propósito ou a levá-la comigo. Fingi pois que tinha que me despedir de um amigo que eu não queria abandonar, até que, soprando o vento, ele pudesse navegar. Assim enganei a minha mãe, e a uma tal mãe! Fugi, e tu também me perdoaste este pecado misericordiosamente, salvando-me a mim, cheio de execráveis imundícies, das águas do mar para que chegasse ás águas de tua graça. Purificado com elas, secariam os rios dos OLHOS de minha mãe, com que todos os dias regava a terra diante de ti, por minha causa. Confissões V, VIII

Na oração, eu ainda não implorava o teu socorro, mas meu espírito achava-se ocupado em investigar e inquieto por discutir. Considerava ao próprio Ambrósio como homem feliz aos OLHOS do mundo, vendo-o tão honrado pelas mais altas autoridades. Somente seu celibato me parecia difícil. Mas eu não podia aquilatar, por nunca as ter experimentado, as esperanças que o animavam, nem a luta que tinha de travar contra as tentações de sua alta posição; nem conhecia os consolos na adversidade, nem os saborosos deleites do interior do seu coração quando ruminava teu alimento. Ele, por sua vez, desconhecia minha inquietação e o abismo em que estava para cair, porque não lhe podia perguntar, como desejava, o que queria. Uma multidão de homens de negócios, a quem ele acudia nas dificuldades, impediam-me de o ouvir ou de lhe falar. Confissões VI, III

No bem pouco tempo que lhe deixavam livre, dedicava-se a reparar as forças do corpo com o alimento necessário, ou as do espírito, com a leitura. Quando lia, seus OLHOS percorriam as páginas e seu espírito penetrava-lhes o sentido, mas sua voz e sua língua repousavam. Confissões VI, III

Dizia-lhes Alípio: “Mesmo que arrasteis para lá meu corpo, e o retenhais ali, podereis por acaso obrigar minha alma e meus OLHOS a contemplar tais espetáculos? Estarei ali como ausente, e assim triunfarei deles e de vós”. Mas eles, não fazendo caso de tais palavras, levaram-no, talvez para verificar se poderia ou não cumprir a palavra. Confissões VI, VIII

Quando chegaram, ocuparam os lugares que puderam, pois todo o anfiteatro já fervia nas paixões mais selvagens. Alípio, fechando a porta dos OLHOS, proibiu que sua alma se envolvesse em tal crueldade. E oxalá também tivesse tapado os ouvidos! Porque, em um lance da luta, foi tão grande o clamor da multidão que, vencido pela curiosidade, e julgando-se preparado para desprezar e vencer a cena, fosse o que fosse, abriu os OLHOS. Foi logo ferido na alma mais profundamente do que a ferida física do gladiador a quem desejou contemplar e caiu. Sua queda foi mais miserável que a do gladiador, causa de tantos gritos. Estes, entrando-lhe pelos ouvidos, abriram-lhe os OLHOS, para ferir e abater sua alma, mais temerária do que forte, e tanto mais fraca por apoiar-se em si mesma, em lugar de se apoiar em ti. Logo que viu sangue, bebeu junto a crueldade, e não se afastou do espetáculo; pelo contrário, prestou mais atenção. Assim, sem o saber, absorvia o furor popular e se deleitava naquela luta criminosa, inebriado de sangrento prazer. Confissões VI, VIII

Discutia com meus amigos Alípio e Nebrídio, sobre o bem e o mal finais; facilmente meu juízo teria dado a palma a Epicuro, se eu não acreditasse na imortalidade da alma e do julgamento de nossos atos, coisas em que Epicuro nunca acreditou. E eu perguntava: “Se fossemos imortais, e vivêssemos em perpétuo gozo sensorial, sem temor algum de perdê-lo, não seriamos felizes? Que mais poderíamos desejar?” Ignorava eu que isto era fruto duma grande miséria. Não podia, tão imerso no vício e cego como estava, imaginar a luz da virtude e uma beleza invisível aos OLHOS da carne, e somente visível das profundezas da alma. Na minha miséria, não indagava de que fonte provinha esse grande gosto em conversar com os amigos, por maior que fosse a abundância dos prazeres carnais, segundo a ideia que eu tinha então? Eu amava a meus amigos desinteressadamente, e também sentia que eles me amavam com o mesmo desinteresse. Confissões VI, XVI

Já havia morrido minha adolescência má e nefanda; entrava na juventude, e quanto mais crescia em idade, mais vergonhosa se tornava minha vaidade, a ponto de não poder imaginar uma substância além da que se pode perceber com os OLHOS. Confissões VII, I

Mas, apenas disperso, em um piscar de OLHOS, tornava a se formar os atropelos sobre minha vista, obscurecendo-a. Apesar de não te atribuir uma figura humana, contudo, necessitava te conceber como algo corporal, situado no espaço, quer imanente ao mundo, quer difundido por fora do mundo, através do infinito; tal era o ser incorruptível, inviolável e imutável que eu colocava acima do que é corruptível, sujeito à deterioração e ás mudanças. O que não ocupava espaço me parecia um nada absoluto, perfeito, e não um simples vazio, como quando se tira um corpo de um lugar, permanecendo o lugar vazio de todo o corpo, terrestre, úmido, aéreo ou celeste, mas, enfim, um lugar vazio, como que um nada espaçoso. Confissões VII, I

Assim, pois, com o coração pesado, sem consciência clara de mim mesmo, considerava como um perfeito nada tudo o que não tivesse extensão por determinado espaço, ou não se difundisse ou pudesse assumir um desses estados. As formas percorridas por meus OLHOS eram os moldes das imagens pelas quais andava meu espírito; não via que a mesma faculdade com que formava essas imagens não era da mesma natureza que elas, não obstante não pudesse formá-las se ela não fosse por sua vez algo grande. Confissões VII, I

Mas era incapaz de entendê-lo com clareza. E esforçando-me por afastar desse abismo os OLHOS do meu espírito, nele me precipitava de novo, e tentando reiteradamente fugir dele, sempre voltava a recair. Confissões VII, III

Eu buscava a origem do mal, mas de modo errôneo, e não via o erro que havia em meu modo de buscá-la. Desfilava diante dos OLHOS de minha alma toda a criação, tanto o que podemos ver — como a terra, o mar, o ar, as estrelas, as árvores e os animais — como o que não podemos ver — como o firmamento, e todos os anjos e seres espirituais. Estes, porém, como se também fossem corpóreos, colocados em minha imaginação em seus respectivos lugares. Fiz de tua criação uma espécie de massa imensa, diferenciada em diversos gêneros de corpos; uns, corpos verdadeiros, e espíritos, que eu imaginava como corpos. Confissões VII, V

Tu só sabes o que eu padecia, mas homem algum o sabia. De fato, quão pouco era o que minha palavra transmitia aos meus amigos mais íntimos! Chegava, porventura, a eles o tumulto de minha alma, que nem o tempo, nem as palavras bastavam para declarar? Contudo, chegavam a teus ouvidos as queixas que em meu coração rugiam, e meu desejo estava diante de ti, mas a luz de meus OLHOS não estava contigo, porque ela estava dentro, e eu olhava para fora. Ela não ocupava espaço algum, e eu só pensava nas coisas que ocupam lugar, e não achava nelas lugar de descanso, nem me acolhiam de modo que pudesse dizer: “Basta, Aqui estou bem!” — Nem me permitiam que eu fosse para onde me sentisse satisfeito. Eu era superior a estas coisas, mas sempre inferior a ti. Serias minha verdadeira alegria se eu te fosse submisso, pois sujeitasse a mim tudo o que criaste inferior a mim. Tal seria o justo equilíbrio e a região central de minha salvação: permanecer como imagem tua, e servindo-te, ser o senhor de meu corpo. Mas, como me levantei soberbamente contra ti, investindo contra meu Senhor coberto com o escudo de minha dura cerviz, até mesmo as criaturas inferiores se fizeram superiores a mim, e me oprimiam, e não me davam um momento de alívio e de descanso. Confissões VII, VII

Quando as olhava, elas me vinham ao encontro atabalhoadamente de todos os lados; mas quando nelas me concentrava, tais imagens corporais me barravam para que me retirasse, como se me dissessem: “Para onde vais, indigno e impuro?” E estas recobravam forças com a minha chaga, porque humilhaste o soberbo como a um homem ferido. Minha presunção me separava de ti, e meu rosto de tão inchado, fechava meus OLHOS. Confissões VII, VII

Estimulado por estas leituras a voltar a mim mesmo, entrei, guiado por ti, no profundo de meu coração, e o pude fazer porque te fizeste minha ajuda. Entrei, e vi com os OLHOS da alma, acima desses mesmos OLHOS, acima de minha inteligência, a luz imutável; não esta vulgar e visível a todos os OLHOS de carne, nem outra do mesmo gênero, embora maior. Era muito mais clara e enchendo com sua força todo o espaço. Não, não era esta luz, mas uma luz diferente de todas estas. Confissões VII, X

Por isso fora atrás da teoria das duas substâncias, na qual não achava descanso, e repetia coisas alheias. Desembaraçando-me desses erros, imaginara para si um Deus que se difundia pelos espaços infinitos e, julgando que eras tu, colocou-o em seu coração, e de novo se tornou o templo de seu ídolo, coisa abominável a teus OLHOS. Confissões VII, XIV

Mas, depois que afagaste minha cabeça, sem que eu o percebesse, e fechaste meus OLHOS para não vissem a vaidade, desprendi-me um pouco de mim mesmo, e minha loucura adormeceu profundamente; quando despertei em teus braços, vi que eras infinito não daquele modo, e esta visão não procedia da carne. Confissões VII, XIV

Entendi por experiência que não é de admirar que o pão seja enjoativo ao paladar enfermo, mesmo tão agradável para o paladar sadio, e que OLHOS enfermos considerem odiosa a luz, que para os límpidos é tão cara. Se tua justiça desagrada aos maus, muito mais desagradam a víbora e o caruncho, que criaste bons e adaptados à parte inferior da tua criação, com a qual também os maus se assemelham, tanto mais quanto mais diferem de ti, assim como os justos se assemelham às partes superiores do mundo na medida em que se assemelham a ti. Confissões VII, XVI

Mas teu servo havia posto no Senhor Deus sua esperança, e não tinha mais OLHOS para as vaidades e as enganosas loucuras. Confissões VIII, II

Sentamo-nos para conversar, e, por acaso, deu com os OLHOS em um livro que estava sobre a mesa de jogo, à nossa frente. Pegou-o, abriu-o, viu que eram as epístolas de Paulo e ficou surpreso, pois pensava que se tratasse de algum dos livros cujo estudo me preocupava. Confissões VIII, VI

Então sorriu para mim e, cumprimentando-me, manifestou-me sua admiração por ter encontrado aquele livro, e só aquele, ao alcance dos meus OLHOS. Ponticiano era um cristão fiel, e muitas vezes prostrava-se diante de ti, nosso Deus, na igreja, em frequentes e prolongadas orações. Confissões VIII, VI

Estes dois eram os chamados agentes de negócios do imperador. De repente, tomado de amor santo e casto pudor, irado consigo mesmo, olha para o companheiro, e lhe diz: “Dize-me, te peço, onde pretendemos chegar com todos estes nossos trabalhos? Que buscamos? Qual a finalidade do nosso labor? Podemos aspirar mais no palácio do que ser amigos do imperador? E mesmo nisto, quanta incerteza, quantos perigos! E quantos perigos teremos de passar para chegar a um perigo ainda maior? E quando chegaremos a isso? Mas, se eu quiser ser amigo de Deus, posso sê-lo agora mesmo”. Disse essas palavras, e exaltado pela gestação da nova vida voltou os OLHOS para o livro; ao ler, transformava-se interiormente, o que só tu sabias, e seu espírito se despia do mundo, como logo se evidenciou. Confissões VIII, VI

Eu me via, e enchia-me de horror, mas não tinha para onde fugir de mim mesmo. Se tentava afastar o olhar de mim mesmo, Ponticiano prosseguia com a narração, e de novo me punhas diante de mim, e me empurravas diante de meus OLHOS, para que eu descobrisse minha iniquidade e a odiasse. Eu bem a conhecia, mas a dissimulava, fingia não ver, esquecia. Confissões VIII, VII

Foi mais ou menos o que eu lhe disse, e dele me afastei sob forte emoção. Alípio me olhava atônito em silêncio. Eu não falava como de costume, e muito mais que as palavras, minha fronte, minhas fazes, meus OLHOS, minha cor e o tom de minha voz denunciavam meu estado de espírito. Confissões VIII, VIII

Alípio, atônito, continuou no lugar em que estávamos sentados; mas eu, não sei como, me retirei para a sombra de uma figueira, e dei vazão às lágrimas; e dois rios brotaram de meus OLHOS, sacrifício agradável a teu coração. E embora não com estes termos, mas com o mesmo sentido, muitas coisas te disse como esta: E tu, Senhor, até quando? Até quando, Senhor, hás de estar irritado! Esquece-te de minhas iniquidades passadas! Sentia-me ainda preso a elas, e gemia, e lamentava: “Até quando? Até quando direi amanhã, amanhã? Por que não agora? Por que não pôr fim agora às minhas torpezas?” Confissões VIII, XII

Depressa voltei para o lugar onde Alípio estava sentado, e onde eu deixara o livro do Apóstolo ao me levantar. Peguei-o, abri-o, e li em silêncio o primeiro capítulo que me caiu sob os OLHOS: “Não caminheis em glutonarias e embriaguez, não nos prazeres impuros do leito e em leviandades, não em contendas e rixas; mas revesti-vos de nosso Senhor Jesus Cristo, e não cuideis de satisfazer os desejos da carne”. Confissões VIII, XII

Quem sou eu, e como era? Que males não tive em minhas obras, ou, se não em minhas obras, em minhas palavras, ou, se não em minhas palavras, em minha vontade! Mas tu, Senhor, bom e misericordioso, puseste os OLHOS na profundeza de minha morte, e purificaste com tua destra o abismo de corrupção de minha alma. Tratava-se agora apenas de não querer o que eu queria, e de querer o que tu querias. Confissões IX, I

Estremeci de medo, ao mesmo tempo me abrasei de alegre esperança em tua misericórdia, ó Pai! E todos estes sentimentos saíam pelos meus OLHOS e pela voz quando, dirigindo-se para nós, teu Espírito de bondade nos dizia: Filhos dos homens, até quando sereis duros de coração? Por que amais a vaidade e buscais a mentira? Confissões IX, IV

Meus bens já não eram exteriores, e eu já não os buscava à luz deste sol, com OLHOS carnais. Os que querem gozar externamente, facilmente se dissipam e derramam pelas coisas visíveis e temporais, lambendo com pensamento faminto apenas as aparências. Oh! Se eles se esgotassem com a privação, e perguntassem: Quem nos mostrará o bem? E que ouvissem nossa resposta: Está gravada dentro de nós a luz de teu rosto, Senhor! — Porque não somos nós a luz que ilumina a todo homem, mas somos iluminados por ti, para que sejamos luz em ti, nós que outrora fomos trevas. Confissões IX, IV

Naqueles dias eu não me fartava de considerar a grandeza de teus desígnios para a salvação do gênero humano, pela inefável doçura que sentia. Quanto chorei ao ouvir, profundamente comovido, teus hinos e cânticos que ressoavam suavemente em tua Igreja! Penetravam aquelas vozes em meus ouvidos, e destilavam a verdade em meu coração. Acendia-se em mim um afeto piedoso, corriam-me lágrimas dos OLHOS, e o pranto me consolava. Confissões IX, VI

Com efeito, depois de descobertos e desenterrados, ao serem transladados com as honras convenientes para a basílica ambrosiana, alguns possessos, atormentados pelos espíritos imundos, foram curados, conforme confissão dos próprios demônios. Também um cidadão, cego havia muitos anos, e muito conhecido na cidade, perguntou a razão daquele alvoroço e alegria populares; informado, pediu a seu guia que o levasse até ás relíquias. Lá chegando, obteve permissão para tocar com um lenço o ataúde de teus santos, cuja morte havia sido preciosa a teus OLHOS. Feito isto, aplicou o lenço aos OLHOS, que imediatamente se abriram. Confissões IX, VII

Educada assim na modéstia e na temperança, mais sujeita a seus pais pela tua mão que por seus pais a ti, logo que chegou à idade núbil, foi dada em matrimônio a um homem, a quem serviu como a senhor. Procurou conquistá-lo para ti, falando-lhe de ti com suas virtudes, com as quais tu a tornavas bela e reverentemente amável e admirável ante seus OLHOS. Suportou suas infidelidades conjugais com tanta paciência, que jamais teve com ele a menor briga por isso, pois esperava que tua misericórdia viria sobre ele, e que lhe trouxesse, com a , a castidade. Confissões IX, IX

Ali, sozinhos, conversávamos com grande doçura, esquecendo o passado, ocupados apenas no futuro, indagávamos juntos, na presença da Verdade, que és tu, qual seria a vida eterna dos santos, que nem os OLHOS viram, nem os ouvidos ouviram, nem o coração do homem pode conceber. Abríamos ansiosos os lábios de nosso coração ao jorro celeste de tua fonte — da fonte da vida que está em ti — para que, banhados por ela, pudéssemos de algum modo meditar sobre coisa tão transcendente. Confissões IX, X

Fechei-lhe os OLHOS, e uma tristeza imensa invadiu-me o coração, e já me ia desfazer em lágrimas; ao mesmo tempo, meus OLHOS, obedecendo ao enérgico poder de minha vontade, fechavam sua fonte até secá-la. Como foi angustiosa essa luta! E foi quando ela deu o último suspiro, que o meu filho Adeodato rebentou em soluços; mas, instado por todos nós, se calou. Confissões IX, XII

E agora, Senhor, to confesso nestas linhas: leia-o quem quiser, interprete-o como quiser. E se alguém julgar que pequei nessas lágrimas, que derramei sobre minha mãe por alguns instantes, por minha mãe então morta a meus OLHOS, ela que me havia chorado tantos anos para que eu vivesse aos teus OLHOS, não se ria. Antes, é grande sua caridade, chore por meus pecados diante de ti, Pai de todos os irmãos de teu Cristo! Confissões IX, XII

Mas, que amo eu, quando te amo? Não amo a beleza do corpo, nem o esplendor fugaz, nem a claridade da luz, tão cara a estes meus OLHOS, nem as doces melodias das mais diversas canções, nem a fragrância de flores, de unguentos e de aromas, nem o maná, nem o mel, nem os membros tão afeitos aos amplexos da carne. Nada disto amo quando amo o meu Deus. E, contudo, amo uma luz, uma voz, um perfume, um alimento, um abraço de meu homem interior, onde brilha para minha alma uma luz sem limites, onde ressoam melodias que o tempo não arrebata, onde exalam perfumes que o vento não dissipa, onde se provam iguarias que o apetite não diminui, onde se sentem abraços que a saciedade não desfaz. Eis o que amo quando amo o meu Deus! Então, o que é Deus? Perguntei à terra, e ela me disse: “Eu não sou Deus”. E tudo o que nela existe me respondeu o mesmo. Perguntei ao mar, aos abismos e aos répteis viventes, e eles me responderam: “Não somos teu Deus; busca-o acima de nós”. Perguntei aos ventos que sopram; e todo o ar, com seus habitantes, me disse: “Anaxímenes está enganado eu não sou Deus”. Perguntei ao céu, ao sol, à luz e às estrelas. “Tampouco somos o Deus a quem procuras” Confissões X, VI

Ali se conservam também, distintas em espécies, as sensações que aí penetraram cada qual por sua porta: a luz, as cores, as formas dos corpos, pelos OLHOS; toda espécie de sons, pelos ouvidos; todos os odores, pelas narinas; todos os sabores, pela boca; enfim, pelo tato de todo o corpo, o duro e o brando, o quente e o frio, o suave e o áspero, o pesado e o leve, quer extrínseco, como intrínseco ao corpo. A memória armazena tudo isso em seus vastos recessos, em suas secretas e inefáveis sinuosidades, para lembrá-lo e trazê-lo à luz conforme a necessidade. Todas essas imagens entram na memória por suas respectivas portas, sendo ali armazenadas. Confissões X, VIII

Esta ideia me provoca grande admiração, e me enche de espanto. Viajam os homens para admirar as alturas dos montes, as grandes ondas do mar, as largas correntes dos rios, a imensidão do oceano, a órbita dos astros, e se esquecem de si mesmos! Nem se admiram que eu fale dessas coisas sem vê-las com os OLHOS; contudo, eu não as poderia mencionar se esses montes, se essas ondas, esses rios, esses astros, que eu vi, se esse oceano, no qual acredito pelo testemunho alheio, eu não os visse na memória em toda sua dimensão, como se estivessem diante de mim. mas quando eu os vi com meus OLHOS, eu não os absorvi; não são as coisas que se encontram dentro de mim, mas apenas suas imagens. E sei por qual sentido do corpo recebi a impressão de cada uma delas. Confissões X, VIII

Ouço dizer que há três gêneros de questões a saber: se uma coisa existe, qual a sua natureza e qual sua qualidade — retenho a imagem dos sons de que se compõem estas palavras, e sei que estes atravessaram o ar como ruído, e já não existem. Mas as realidades significadas por tais palavras, eu jamais atingi com nenhum sentido do corpo, nem as vi em nenhuma parte fora de meu espírito; o que gravei na minha memória não são suas imagens, mas as próprias realidades. Que me digam, se o puderem, por onde entraram em mim! percorro em vão todas as portas do meu corpo, e não descubro por onde poderiam ter entrado. Com efeito: os OLHOS dizem: “Se são coloridas, fomos nós que as transmitimos.” — Os ouvidos dizem: “Se eram sonoras, foram por nós comunicadas”. — As narinas dizem: “Se tinham cheiro, passaram por aqui”. — E o gosto diz: “Se não têm sabor, nada me perguntem”. — O tato declara: “Se não são corpóreas, eu não as toquei, e portanto não poderia revelá-las” Confissões X, X

Vi linhas traçadas por artistas, finas como um fio de aranha. Mas as linhas materiais não são a imagem das que vi com meus OLHOS carnais. Para reconhecê-las não há necessidade alguma de se pensar em um corpo qualquer, pois, é no espírito que as reconhecemos. Confissões X, XII

Se alguma coisa desaparece de nossa vista, e não da memória — como sucede com um corpo visível — conservamos interiormente sua imagem e o procuramos até que apareça a nossos OLHOS. Quando for encontrado, será reconhecido de acordo com essa imagem interior. Não podemos dizer que encontramos um objeto perdido se não o reconhecemos; nem o podemos reconhecer se dele não lembramos. Tinha pois desaparecido da nossa vista, mas era conservado pela memória. Confissões X, XVIII

Podemos comparar essa lembrança à que conserva de Cartago, quem a viu? Não, a felicidade não se vê com os OLHOS, pois não é corporal. Seria pois comparável à lembrança dos números? Também não, pois quem conhece os números não deseja adquiri-los. Pelo contrário, a ideia da felicidade nos inclina a amá-la e a querer possuí-la, para sermos felizes. Confissões X, XXI

Ordenas que me abstenha da concupiscência da carne, da concupiscência dos OLHOS e da ambição do século. Proibiste as uniões luxuriosas, e embora tenhas permitido o casamento, ensinaste que há um estado bem melhor. E, pela tua graça, optei por esse estado, antes mesmo de me tornar dispensador de teu sacramento. Confissões X, XXX

Mas em minha memória, de que falei longamente, vivem ainda as imagens dessas voluptuosidades que meus costumes de outrora ali gravaram. Sem forças diante de mim quando estou acordado, durante o sono, elas não somente suscitam em mim o prazer, mas o consentimento do prazer e a ilusão da ação. Tais ilusões têm tal poder sobre minha alma e sobre meu corpo, apesar de tão falsas, que seus fantasmas impelem a meu sono o que a realidade não me pode induzir quando em vigília. Acaso então, Senhor meu Deus, será que eu não sou eu nessas horas? E como vai tão grande diferença dentro de mim mesmo, do momento em que passo da vigília para o sono e vice versa! Onde pois está a razão, que durante a vigília resiste a tais sugestões, e que não se abala mesmo diante da realidade? Acaso se fecha juntamente com os OLHOS? Ou adormece com os sentidos do corpo? Confissões X, XXX

Exposto a estas limitações, luto diuturnamente contra a concupiscência do comer e do beber, pois não é coisa que possa cortar de uma vez por todas, apenas com o propósito de nunca mais recair, como fiz com a luxúria. É uma rédea imposta a meu paladar, ora para afrouxá-la, ora para retesá-la. E quem é, Senhor, que não se deixa arrastar às vezes além dos limites do necessário? Se existe alguém assim, é de fato grande, e deve engrandecer teu nome. eu porém não sou desse número, porque sou pecador. Contudo, também, eu engrandeço teu nome, e Aquele que venceu o mundo intercede junto a ti por meus pecados. Conta-me entre os membros enfermos de seu corpo, porque teus OLHOS viram minhas imperfeições e porque todos serão inscritos em teu livro. Confissões X, XXXI

Resta ainda falar do prazer destes OLHOS carnais. Oxalá que os ouvidos fraternos e piedosos de teu templo ouvissem a minha confissão! Encerrando assim as tentações da concupiscência que ainda me perseguem, apesar de meus gemidos e dos desejos de ser revestido de meu tabernáculo, que é o céu. Confissões X, XXXIV

Meus OLHOS apreciam as formas belas e variadas, as cores brilhantes e amenas. Oxalá elas não me acorrentassem a alma! Oxalá ela só fosse presa pelo Deus que criou coisas tão boas: ele é meu bem, e não elas. Todos os dias, estando acordado, elas me importunam sem o descanso das vozes que se calam, e às vezes de tudo o que existe, quando silencia. A própria rainha das cores, a luz que inunda tudo o que vemos, e onde quer que eu esteja durante o dia, acaricia-me de mil modos, mesmo quando estou ocupado em outra coisa e não lhe dou atenção. Confissões X, XXXIV

Ó luz que Tobias contemplava quando, cego, mostrava ao filho o caminho da vida, caminhando à sua frente com os passos da caridade, sem jamais se perder! Luz que via Isaac, quando seus OLHOS carnais, oprimidos e velados pela velhice, mereceram não abençoar os filhos reconhecendo-os, mas reconhecê-los ao abençoá-los! Luz que via Jacó, também cego pela idade provecta, irradiou os fulgores de seu coração iluminado sobre as gerações do povo futuro, representadas em seus filhos! E a seus netos, os filhos de José, impôs as mãos misticamente cruzadas, não na ordem em que queria dispô-los o pai, que via com os OLHOS corporais, mas de acordo com seu próprio discernimento interior! Eis a verdadeira luz; ela é uma, e todos os que a veem e amam formam um único ser. Confissões X, XXXIV

Quanto à luz corporal, de que falava, com sua doçura sedutora e perigosa, é um dos prazeres da vida para os cegos amantes do mundo. Mas os que nela sabem encontrar motivos para te louvar, Deus, criador de todas as coisas, convertem-na em hino em teu louvor, sem se deixarem dominar por ela no sono. é assim que desejo ser. Resisto às seduções dos OLHOS, para que meus pés, que começam a trilhar teus caminhos, não fiquem enredados. Elevo a ti OLHOS invisíveis, para que libertes meus pés de seus laços. Tu não cessa de livrá-los, porque sempre estão a se prender. Tu não cessas de me livrar, e eu me deixo cair a cada passo nas insídias espalhadas por toda parte, porque não dormirás, nem cochilarás, tu que guardas a Israel. Confissões X, XXXIV

Quantos encantos os homens acrescentaram às seduções dos OLHOS, com a variedade de suas artes, com sua indústria de vestidos, de calçados, de vasos, de objetos de toda espécie, com pinturas e esculturas diversas que de longe ultrapassam os limites do necessário e moderado e da expressão piedosa. Exteriormente perseguem as produções de suas artes, e em seu interior abandonam Àquele que os criou, deturpando em si o que ele fez. Confissões X, XXXIV

Mesmo eu, que exponho e compreendo essas verdades, deixo-me enredar nessas belezas; mas tu me livras de seu laço, tu me libertas, porque tua misericórdia está diante de meus OLHOS. Miseravelmente eu caio, e tu me levantas misericordiosamente, às vezes sem que eu o perceba, quando minha queda foi suave, e outras infligindo-me uma pena, por ter ficado preso ao chão. Confissões X, XXXIV

É a vã curiosidade, que se disfarça sob o nome de conhecimento e de ciência. Como nasce do apetite de tudo conhecer, e como entre os sentidos os OLHOS são os mais aptos para o conhecimento, a Sagrada Escritura chamou-a de concupiscência dos OLHOS. Confissões X, XXXV

De fato, ver é função própria dos OLHOS; mas muitas vezes nós usamos essa expressão mesmo quando se trata de outros sentidos, aplicados ao conhecimento. Nós não dizemos: “Ouve como isto brilha” — nem: “Sente como isso resplandece” — nem: “Apalpa como isto cintila”. — Para exprimir tudo isso dizemos “ver ou olhar”. E até não nos limitamos a dizer: “Olha que luz!”, pois apenas os OLHOS nos podem dar esta sensação — mas, dizemos ainda: “Olha que som! Olha que cheiro! Olha que gosto! Olha como é duro!” Por isso toda experiência que é obra dos sentidos é chamada, como disse, concupiscência dos OLHOS. Essa função da visão, que pertence aos OLHOS, é usurpada metaforicamente pelos outros sentidos, quando buscam conhecer alguma coisa. Confissões X, XXXV

A esse respeito, conheces os lamentos que meu coração te dirige, e os rios de lágrimas que brotam de meus OLHOS. É-me difícil distinguir o quanto estou purificado dessa peste; tenho muito medo de minhas faltas ocultas, que teus OLHOS conhecem, e os meus ignoram. Nos outros gêneros de tentação, tenho recursos para me examinar, mas quanto a este, quase nenhum. Confissões X, XXXVII

Examinei minhas fraquezas de pecador nas três formas de concupiscência, e invoquei tua destra para me salvar. Apesar de ter coração ferido, vi teu esplendor, e forçado a recuar, disse: “Quem pode chegar lá? Fui lançado para longe de teus OLHOS”. — Tu és a verdade que preside a todas as coisas. E eu, minha avareza, não queria perder-te, mas queria possuir ao mesmo tempo a ti e à mentira, como os que não querem mentir a ponto de perderem a noção de verdade. Assim te perdi, porque não admites, nem nenhum coração, conviver com a mentira. Confissões X, XLI

Mas tu, que és soberano sobre tuas criaturas, de que modo ensinas às almas os fator porvir, como revelas aos teus profetas? De que modo ensinas o futuro, tu, para quem o futuro não existe? Ou antes, como ensinas os sinais presentes dos fatos futuros? Pois, o que ainda não existe não pode ser ensinado. O teu modo misterioso de agir está muito acima de minha inteligência, sobrepuja minhas forças. Por mim mesmo eu não o poderia alcançar, mas podê-lo-ei por ti, quando me concederes, ó doce Luz dos OLHOS de minha alma! Confissões XI, XIX

Senhor, meu Deus, que abismos profundos os de teus segredos, e quão longe deles me levaram as consequências de meus pecados! Cura meus OLHOS, para que eu me alegre com tua luz! Se houvesse de fato um espírito de ciência e de presciência tão grandes para conhecer o passado e o futuro, como conheço qualquer canto popular, esse espírito nos encheria de extraordinária admiração e espanto. Nada, com efeito, lhe seria oculto no passado e nos séculos vindouros, exatamente como, ao entoar essa melodia, sei tudo o que cantei desde o começo, e tudo o que falta cantar até o fim. Mas longe de mim a ideia de identificar um tal conhecimento àquele que tens de todas as coisas futuras e passadas, ó Criador do Universo, Criador dos espíritos e dos corpos. Tua ciência é incomparavelmente mais admirável e mais misteriosa. Confissões XI, XXXI

Quero discutir diante de ti apenas com os que reconhecem por verdadeiras as afirmações que tua verdade revelou à minha inteligência. Os que o negam, que ladrem quanto quiserem, até ficar roucos. Tentarei persuadi-los a que se acalmem, e deem acesso em seus corações à tua palavra. Se não o quiserem e me repelirem, peço-te, meu Deus, que não te cales, não te afastes de mim. fala com verdade em meu coração, porque só tu podes falar assim. E eu os deixarei fora, soprando o e levantando terra contra os próprios OLHOS. Retirar-me-ei em mim mesmo, levantando a ti cânticos de amor, soluçando altos gemidos durante meu exílio, lembrando-me de Jerusalém, voltando para ela meu coração — Jerusalém, minha pátria e minha mãe — e para ti, que reinas sobre ela, seu pai, sua luz, seu tutor, seu esposo, suas castas e grandes delícias, sua firme alegria, enfim, todos seus bens inefáveis, porque és o único, soberano e verdadeiro Bem. Não me apartarei de ti até que reúnas todas as partes dispersas e deformadas do meu ser na paz dessa mãe muito amada, onde estão as primícias de meu espírito, e de onde me vêm todas as certezas, e nela me reformes e confirmes por toda a eternidade, ó meu Deus, minha misericórdia. Confissões XII, XVI

Ouço e considero todas essas teorias, mas não quero discutir por questões de palavras, o que não serve para nada, senão para a confusão dos ouvintes. Pelo contrário, a lei é boa para a edificação se dela se faz uso legítimo, porque sua finalidade é a caridade que nasce de um coração puro, de uma boa consciência e de uma não fingida. Nosso Mestre sabe quais dos dois preceitos em que resumiu toda a lei e os profetas. A mim, que observo com zelo tais preceitos, ó meu Deus, luz de meus OLHOS na escuridão, que me importa que possa que possa encontrar sentidos diferentes para essas palavras, se todos são verdadeiros? Que me interessa, digo eu, que outros compreendam o texto de Moisés de modo diferente do meu? Nós todos que o lemos procuramos indagar e compreender o pensamento do autor. E como o julgamos verídico, não ousamos admitir que ele pusesse dizer o que sabemos ou o que consideramos falso. Confissões XII, XVIII

Todas essas verdades, das quais não duvidam os que de ti receberam a graça de ver com os OLHOS da alma, e que creem firmemente que teu servo Moisés falou em espírito de verdade, há quem dê esta interpretação: “No princípio Deus criou o céu e a terra” — isto é, Deus criou, em seu Verbo, que lhe é co-eterno, o mundo racional e sensível, ou espiritual e corporal. Outro diz: “No princípio Deus criou o céu e a terra” — isto é, Deus criou em seu Verbo, que lhe é co-eterno, toda a massa do mundo corpóreo, com tudo o que contém de realidades, manifestamente conhecidas. Confissões XII, XX

É pela plenitude de tua bondade que as criaturas subsistem, para que um bem, para ti de todo inútil, ou de nenhum modo igualável a ti, embora saído de ti, continuasse a existir, pois tu o criaste. Com efeito, que poderiam merecer de ti o céu e a terra, que criaste no princípio? E digam, as naturezas espirituais e corpórea, que méritos tinham a teus OLHOS, que as criaste em tua Sabedoria? Que méritos, para receber de ti o ser, que mostram inacabado e informe, quando tendem à desordem e se afastam de tua semelhança? O que é de natureza espiritual, mesmo informe, é ainda superior a um corpo que recebeu forma; um corpo sem forma é superior ao puro nada; ora, todas essas coisas continuariam informes em teu Verbo, se essa mesma palavra não as recolhesse à tua Unidade, comunicando-lhes a forma e a excelência graças apenas a ti, soberano Bem. Mas que merecimentos antecipados apresentaram a teus OLHOS, para existir mesmo informes essas criaturas que, sem que as criasses nem teriam existido? Confissões XIII, II

Não é justo a teus OLHOS que a luz imutável seja conhecida pelo ser mutável, que ela ilumina, como ela se conhece a si própria. Por isso, minha alma é para ti como terra sem água, porque assim como não pode iluminar a si mesma, não se pode saciar por seus próprios meios. Porque em ti está a fonte da vida, e graças à tua luz é que veremos a luz. Confissões XIII, XVI

As almas sedentas de ti, que aparecem a teu OLHOS separadas do mar com outra finalidade, tu as regas com um orvalho vivo, misterioso e doce, para que a terra produza seu fruto. Confissões XIII, XVII

Senhor, assim como crias e concedes alegria e força, assim te peço que nasça da terra a vontade, e que a justiça lance os OLHOS sobre nós do alto dos céus, e que no firmamento brilhem os astros! Dividamos nosso pão com quem tem fome, acolhamos em nossa casa o pobre sem teto, vistamos quem está nu, e não desprezemos nossos semelhantes! Quando tais frutos nascem de nossa terra, olha, Senhor, e diz: Isso é bom; faze que tua luz brilho no momento oportuno. Por esta humilde messe de boas obras, faze que nos possamos elevar a uma contemplação deliciosa do Verbo da Vida, e que brilhemos no mundo como astros, fixados no firmamento de tua Escritura. Confissões XIII, XVIII

Mas antes, lavai-vos, purificai-vos, arrancai a iniquidade de vossos corações e de meus OLHOS, para que apareça a terra seca. Aprendei a fazer o bem, sede justos para com o órfão e defendei a viúva, para que a terra produza a erva tenra e árvores cheias de frutos. Vinde e dialoguemos, diz o Senhor, e assim no firmamento do céu se ascenderão luminares que brilharão por sobre a terra. Confissões XIII, XIX

Mas vós, geração escolhida, fracos aos OLHOS do mundo, que tudo deixaste para seguir o Senhor, caminhais após ele, confundi os fortes; segui-lo com vossos pés resplandecentes, e brilhai no firmamento para que os céus cantem suas glórias, distinguindo a luz dos perfeitos, que ainda não são semelhantes aos anjos, e as trevas dos pequenos, que ainda não perderam a esperança. Brilhai sobre toda a terra! Que o dia resplandecente de sol transmita ao dia seguinte a palavra de Sabedoria, e que a noite, iluminada pela lua, transmita à noite a palavra de Ciência. A lua e as estrelas brilham na noite, mas a noite não as obscurece, porque são elas que iluminam a noite, de acordo com a sua capacidade. Confissões XIII, XIX

Por isso, na tua Igreja, Senhor, pela graça que lhe concedeste — pois somos obra tua, e criados para obras boas, tanto os que governam como os que obedecem segundo o Espírito tem o dom de julgar. Porque assim fizeste a criatura humana homem e mulher, em tua graça espiritual, onde não há distinção conforme o sexo, nem judeu nem grego, nem escravo nem homem livre. Os espirituais, portanto, tanto os que presidem como os que obedecem, julgam espiritualmente. Eles não julgam conhecimentos espirituais que brilham no firmamento, pois não lhes cabe fazer juízos sobre tão sublime autoridade. Nem julgam tua Escritura, mesmo em suas passagens obscuras: nós lhe submetemos nossa inteligência, e temos certeza de que até aquilo que está oculto à nossa compreensão é justo e verdadeiro. O homem, pois, embora já espiritual e renovado pelo conhecimento, conforme a imagem de seu criador, deve ser cumpridor da lei, e não seu juiz. Nem pode ajuizar sobre o que distingue espirituais e carnais. Somente teus OLHOS, meu Senhor, os distinguem, mesmo que nenhuma obra sua os tenha revelado a nós, para que os reconheçamos por seus frutos. Mas tu, Senhor, já os conheces e os classificaste, e os chamaste no segredo de teu pensamento, antes de ter criado o firmamento. Confissões XIII, XXIII