Foi assim que comecei a comunicar meus desejos às pessoas entre as quais vivia, e entrei a fazer parte do tempestuoso MUNDO da sociedade, dependendo da autoridade de meus pais e obedecendo às pessoas mais velhas. Confissões I, VIII
Ó meu Deus, meu Deus! Que de misérias e enganos não experimentei então, quando se me propunha, em criança, como norma de bem viver, obedecer os mestres que me instigavam a brilhar neste MUNDO, e me ilustrar nas artes da língua, fiel instrumento para obter honras humanas e satisfazer a cobiça! Mudaram-me à escola, para que aprendesse as letras, nas quais eu, miserável, desconhecia o que havia de útil. Contudo, se era preguiçoso para aprendê-las, era fustigado, num sistema louvado pelos mais velhos; muitos deles, que levavam esse gênero de vida antes de nós, nos traçaram caminhos tão dolorosos pelos quais éramos obrigados a caminhar, multiplicando assim o trabalho e a dor aos filhos de Adão. Confissões I, IX
Porventura, Senhor, haverá alguma alma tão grande, unida a ti com tão ardente afeto, pois isto também pode ser produzido pela estultice — repito, uma alma que alcance tal grandeza de ânimo que despreze os cavaletes e garfos de ferro, e os demais instrumentos de martírio — para fugir dos quais se te dirigem súplicas de todas as partes do MUNDO? Haverá uma alma que assim os despreze — rindo-se dos que têm deles tanto horror — como se riam nossos pais dos tormentos que éramos castigados por nossos mestres quando meninos? Porque, na verdade, não os temíamos menos, nem te rogávamos com menor fervor para que nos livrasses deles. Confissões I, IX
Aquelas primeiras letras, pelas quais podia, como ainda faço, chegar e ler tudo o que há escrito e a escrever tudo o que quero, eram melhores e mais úteis que aquelas outras nas quais me obrigavam a decorar os erros de um tal Eneias, esquecido dos meus, e a chorar a morte de Dido, que se suicidou por amor, enquanto isso, eu, miserabilíssimo, suportava a minha própria morte com olhos enxutos, morrendo para ti, ó meu Deus, minha vida! Na verdade, que pode haver de mais miserável do que um infeliz que não se compadece de si mesmo e que, chorando a morte de Dido por amor de Eneias, não chora sua própria morte por falta de amor a ti, ó Deus, luz de meu coração, pão interior de minha alma, virtude fecundante de meu pensamento? Não te amava; prevaricava longe de ti, e ouvia de todas as partes: “Muito bem! Muito bem!” — porque a amizade deste MUNDO é adultério contra ti; e se aclamam a alguém dizendo: “Muito bem! Muito bem!” — é para que este não se envergonhe de ser assim. Eu não chorava estas faltas, chorava a morte de Dido “que se suicidou com a espada”, eu procurava as últimas de tuas criaturas, abandonando-te a ti, como terra que eu era, atraída pela terra. Se então me proibissem a leitura de tais coisas, me afligiriam por não ler aquilo que me comovia até a dor. Confissões I, XIII
Pelo menos eu deveria atender com mais diligencia à voz de tuas nuvens: Também eles sofrerão as tribulações da carne; mas eu quisera poupar-vos; e bom é ao homem não tocar em mulher; o que está sem mulher pensa nas coisas de Deus, de como o há de agradar; mas o que está ligado pelo matrimonio pensa nas coisas do MUNDO, e em como há de agradar à mulher. Confissões II, II
Pelo contrário, meu pai, certo dia, percebendo ao banho sinais de minha puberdade e vendo-me revestido de inquieta adolescência, como se já se alegrasse pensando nos netos, foi contá-lo alegre à minha mãe. Alegria esta gerada pela embriaguez com que este MUNDO esquece de ti, seu criador, e em teu lugar ama tua criatura; embriaguez que nasce do vinho sutil de sua perversa e mal inclinada vontade para as coisas baixas. Confissões II, III
Como ardia, meu Deus, como ardia meus desejos de voar para ti das coisas terrenas, sem que eu soubesse o que obravas em mim! Porque em ti está a sabedoria, pela qual aquelas páginas me apaixonavam. Não faltam os que nos iludam servindo-se da filosofia, colocando ou encobrindo seus erros com nome tão grande, tão doce e honesto. Mas quase todos os que assim fizeram em seu tempo e em épocas anteriores, são apontados e refutados nesse livro. Também se encontra ali bem claro aquele salutar aviso de teu Espírito, dado por meio de teu servo bom e piedoso (Paulo): Vede que ninguém vos engane com vãs filosofias e argúcias sedutoras, de acordo com a tradição dos homens e os ensinamentos deste MUNDO, e não de acordo com Cristo, porque é nele que habita corporalmente toda a plenitude da divindade. Confissões III, IV
Diziam: “Verdade! Verdade!” — e, incessantemente, falavam-me da verdade, que nunca existiu neles; antes, diziam muitas falsidades, não apenas de ti, que és verdade por excelência, mas também dos elementos deste MUNDO, criação tua. Sobre isso, mesmo quando os filósofos diziam a verdade, tive de ultrapassá-los nos raciocínios por amor de ti, ó pai sumamente bom, beleza de todas as belezas! Ó verdade, verdade! Quão intimamente suspiravam por ti as fibras da minha alma, quando eles te faziam soar ao meu redor frequentemente e de muitos modos, embora apenas com as palavras e em seus muitos e volumosos livros. Estes eram as bandejas nas quais, estando eu faminto de ti, serviam-me em teu lugar o sol e a lua, formosas obras de tuas mãos, porém, obras tuas, e não a ti, nem sequer das principais. De fato, tuas obras espirituais são superiores a estas corporais, ainda que estas sejam brilhantes e celestes. Mas eu tinha sede e fome não daquelas primeiras, mas de ti mesmo, ó verdade, na qual não há mudança nem obscuridade momentânea! E eles serviam-me nessas bandejas esplendidas ficções, de acordo com as quais teria sido melhor amar a este sol, verdadeiro pelo menos aos olhos, em lugar daquelas falsidades que pelos olhos do corpo enganavam o entendimento. Confissões III, VI
Mas onde estavas então para mim? e quão longe peregrinava eu, longe de ti, privado até as bolotas com que eu alimentava os porcos! Quão melhores eram as fábulas dos gramáticos e poetas que todos aqueles enganos! Porque os versos, a poesia e a fábula de Medeia soando pelo ar são certamente mais úteis que os cinco elementos do MUNDO em seus mil disfarces, conforme os cinco antros de trevas, que não existem, mas que matam a quem nele acredita. Porém, versos e poesia eu os posso converter em iguaria para meu espírito e, quanto ao voo de Medeia, se o recitava bem, não lhe afirmava veracidade e, se me agradava ouvi-lo, não lhe dava crédito. Mas — ai de mim! — eu acreditei naqueles erros dos maniqueístas. Confissões III, VI
Que dor fez anoitecer o meu coração! Tudo o que via era morte para mim. a pátria me era um suplício, e a casa paterna tormento insuportável, e tudo o que o lembrava transformava-se para mim em crudelíssimo martírio. Buscavam-no por toda parte meus olhos, e o MUNDO não mo devolvia. Cheguei a odiar todas as coisas, porque nada o continha, e ninguém mais me podia dizer como antes, quando chegava depois de alguma ausência: “Ali vem ele”. Transformara-me mesmo num grande problema. Perguntava à minha alma porque andava triste, e se perturbava tanto, e ela não sabia o que responder-me. E se eu lhe dizia: “Espera em Deus” — minha alma não me obedecia, e com razão, porque para mim, era mais real e melhor o amigo querido que perdera, que o fantasma em que mandava tivesse esperança. Só o pranto me era doce. Ocupava o lugar de meu amigo nas delicias de meu coração. Confissões IV, IV
Dali, como o esposo que sai do tálamo, deu saltos como um gigante, para correr seu caminho. E não se deteve; correu clamando com suas palavras, com suas obras, com sua própria morte, com sua vida, com sua descida aos ínferos e com sua ascensão, clamando para que voltássemos a ele. Se ele se afastou de nossa vista, foi para que entremos em nosso coração, e ali o encontremos; se partiu, ainda está conosco. Não quis ficar por muito tempo entre nós, mas não nos abandonou. Retirou-se de onde nunca se afastou, pois o MUNDO foi criado por ele, e no MUNDO estava, e ao MUNDO veio para salvar os pecadores. E a ele se confessa minha alma, a ele que a cura e contra quem pecou. Confissões IV, XII
Assim como se cometem crimes quando o movimento do espírito é vicioso e se atira insolente e turbulento, e se cometem infâmias quando o afeto da alma, fonte dos prazeres carnais, é imoderado, assim os erros e falsas opiniões contaminam a vida se a alma racional está viciada, como estava a minha então. Ignorava que ela deveria ser ilustrada por outra luz para participar da verdade, por não ser da mesma essência da verdade, porque tu, Senhor, alumiarás minha lâmpada; tu, meu Deus, iluminarás minhas trevas, e todos participamos de tua plenitude, porque és a luz verdadeira que ilumina a todo homem que vem a este MUNDO, e porque em ti não há mudança nem a momentânea obscuridade. Confissões IV, XV
Antecedera-o a fama de homem erudito em toda espécie de ciência, e particularmente instruído nas artes liberais. E como eu tinha lido muitas teorias dos filosofo, e as guardava na memória, quis comparar algumas destas com as grandes fábulas do maniqueísmo. Pareciam-me mais prováveis as doutrinas daqueles que chegaram a conhecer a ordem do MUNDO, embora não tivessem encontrado a seu Criador. Porque tu és grande, Senhor, e pondes os olhos nas coisas humildes, e as elevadas as conheces de longe, e não te aproximas senão dos contritos de coração. Nem és encontrado pelos soberbos, ainda que sua curiosa perícia seja capaz de contar as estrelas do céu e as areias do mar; seja capaz de medir as regiões do céu e de investigar o curso dos astros. Confissões V, III
Com a inteligência e o engenho que lhes deste investigam os segredos do MUNDO, e descobriram muitos deles; predisseram com muitos anos de antecedência os eclipses do sol e da lua, no dia e hora em que hão de suceder, sem que nunca lhes falhasse o cálculo, acontecendo sempre tal e como haviam anunciado. Deixaram ainda por escrito as leis por eles descobertas, as quais ainda hoje se leem, e de acordo com elas se prediz em que ano, e em que mês do ano, e em que dia do mês, e em que hora do dia, e em que parte de sua luz se hão de eclipsar o sol e a lua; e tudo acontece como está predito. Confissões V, III
É melhor aquele que reconhece estar na posse de uma árvore e te dá graças por sua utilidade, embora ignore quantos côvados tem de altura e de largura, que o que a mede, e conta todos os seus ramos, mas não a possui, nem conhece, nem ama a seu Criador. Assim o homem fiel, a quem pertencem todas as riquezas do MUNDO, e que, nada possuindo, possui tudo, por estar unido a ti, a quem servem todas as coisas — embora desconheça até o curso das estrelas da Ursa — e seria insensatez duvidar — é certamente melhor do que o que mede os céus, conta as estrelas e pesa os elementos, mas despreza a ti, que dispuseste todas as coisas em número, peso e medida. Confissões V, IV
Também a estes odiava meu coração, porém, não com rancor perfeito, porque na realidade, mas os aborrecia pelo prejuízo que me podiam causar do que pela simples injustiça de seu comportamento. Sem dúvida são infames os que assim agem, e se maculam longe de ti, amando passatempos efêmero e a recompensa de lodo, que rende imundas as mãos ao ser colhida, agarrando-se a um MUNDO fugaz, e desprezando a ti, que permaneces eternamente, a ti que chamas e perdoas à alma humana adúltera quando se volta para ti. Ainda agora aborrece-me gente tão depravada e sem modos, embora agora deseje que se corrijam, para que prefiram ao dinheiro a ciência que aprendem, e à essa ciência prefiram a ti, Deus, verdade e abundância de verdadeiro bem e paz castíssima. Mas naquele tempo — confesso — preferia que não fossem maus para meu interesse do que bons por teu amor. Confissões V, XII
Contudo, refletindo e comparando sempre mais o que os filósofos haviam teorizado acerca do MUNDO material e de toda a natureza sensível, cada vez mais me capacitava de que eram muito mais prováveis as doutrinas destes que as dos maniqueus. Por isso, duvidando de tudo e flutuando por entre as doutrinas, à maneira dos acadêmicos, como os julga a opinião geral, resolvi abandonar os maniqueus, julgando que enquanto tivesse em dúvida não devia permanecer em uma seita à qual eu já antepunha alguns filósofos. Recusava-me, contudo, terminantemente, a confiar-lhes a cura das enfermidades de minha alma, por ser-lhes desconhecido o nome salutar de Cristo. Confissões V, XIV
Na oração, eu ainda não implorava o teu socorro, mas meu espírito achava-se ocupado em investigar e inquieto por discutir. Considerava ao próprio Ambrósio como homem feliz aos olhos do MUNDO, vendo-o tão honrado pelas mais altas autoridades. Somente seu celibato me parecia difícil. Mas eu não podia aquilatar, por nunca as ter experimentado, as esperanças que o animavam, nem a luta que tinha de travar contra as tentações de sua alta posição; nem conhecia os consolos na adversidade, nem os saborosos deleites do interior do seu coração quando ruminava teu alimento. Ele, por sua vez, desconhecia minha inquietação e o abismo em que estava para cair, porque não lhe podia perguntar, como desejava, o que queria. Uma multidão de homens de negócios, a quem ele acudia nas dificuldades, impediam-me de o ouvir ou de lhe falar. Confissões VI, III
Eu acreditava nisso, ora mais fortemente, ora mais frouxamente; mas em tua existência e que cuidava do gênero humano, sempre acreditei, embora ignorasse a natureza, ou qual o caminho que nos conduz ou reconduz a ti. Por isso, persuadido de nossa impotência para achar a verdade só por meio da razão, e que para isso nos é necessária a autoridade das Sagradas Escrituras, comecei a crer que nunca terias conferido tão soberana autoridade a essas Escrituras em todo o MUNDO, se não quiséssemos que crêssemos e te buscássemos por elas. Confissões VI, V
Pensava eu nessas coisas, e me assistias; suspirava, e me ouvias, vacilava, e me governavas; seguia pela via larga do MUNDO, e não me abandonavas. Confissões VI, V
“Perca-se tudo! Deixemos essas coisas vãs e fúteis. Entreguemo-nos por completo à busca da verdade. A vida é miserável, e a hora da morte, incerta. Se esta me surpreender de repente, em que estado sairei do MUNDO? E onde aprenderei o que deixei de aprender aqui? Não serei antes castigado por essa negligência? Mas, e se a própria morte cortar e for o fim a todo cuidado e sentimento? Também seria conveniente investigar este ponto. Mas afastemos tais pensamentos! Não é por acaso nem é em vão que se difunde por todo o MUNDO a fé cristã, com grande prestígio. Deus jamais teria criado tantas e tais coisas por nós, se com a morte do corpo terminasse também a vida da alma. Por que hesitar, pois, em abandonar as esperanças do MUNDO para me consagrar à busca de Deus e da bem-aventurança?” Confissões VI, XI
Mas, apenas disperso, em um piscar de olhos, tornava a se formar os atropelos sobre minha vista, obscurecendo-a. Apesar de não te atribuir uma figura humana, contudo, necessitava te conceber como algo corporal, situado no espaço, quer imanente ao MUNDO, quer difundido por fora do MUNDO, através do infinito; tal era o ser incorruptível, inviolável e imutável que eu colocava acima do que é corruptível, sujeito à deterioração e ás mudanças. O que não ocupava espaço me parecia um nada absoluto, perfeito, e não um simples vazio, como quando se tira um corpo de um lugar, permanecendo o lugar vazio de todo o corpo, terrestre, úmido, aéreo ou celeste, mas, enfim, um lugar vazio, como que um nada espaçoso. Confissões VII, I
E também a ti, vida de minha vida, imaginava-te como um Ser imenso, penetrando por todas as partes, através dos espaços infinitos, toda a massa do MUNDO, alastrando-se sem limites na imensidão, de sorte que a terra, o céu e todas as coisas te continham, e tudo isso tinha em ti seu limite, sem que te limitasses em parte alguma. E assim como a massa do ar — deste ar que está sobre a terra — não impede a passagem da luz do sol, não o impede de a atravessar, de a penetrar sem romper ou cortar, antes enchendo-a totalmente, assim eu pensava que não somente a substância do céu, do ar e do mar, mas também a da terra se deixava atravessar e penetrar por ti em todas as suas partes, grandes e pequenas, que receberiam tua presença, que, com secreta inspiração, governa interior e exteriormente tudo o que criaste. Confissões VII, I
Assim é que eu concebia a tua criação finita, cheia de ti, infinito, e dizia: “Eis aqui Deus, e eis aqui as coisas que Deus criou; Deus é bom, imenso e infinitamente mais excelente que suas criaturas; e, como é bom, fez boas todas as coisas; e vede como as abraça e penetra! Onde está pois o mal? De onde e por onde conseguiu penetrar no MUNDO? Qual é a sua raiz e sua semente? Confissões VII, V
Ainda por isso, meu Deus, quero confessar-te tuas misericórdias desde o mais íntimo de minha alma! Foste tu, e só tu — pois, quem pode afastar-nos da morte do erro, senão a Vida que desconhece a morte, a Sabedoria que ilumina as pobres inteligências sem precisar de outra luz, e que governa o MUNDO até as folhas que tremulam nas árvores? Foste tu que medicaste a obstinação com que me opunha ao sábio velho Vindiciano e ao magnânimo jovem Nebrídio, que diziam — o primeiro, com veemência, o segundo com alguma hesitação, mas frequentemente — não existir a tal arte de predizer as coisas futuras, e que as conjecturas dos homens muitas vezes têm concurso do acaso e que, de tanto repetir, acertavam em predizer algumas coisas, sem que os mesmos que as diziam o soubessem. Confissões VII, VI
Tendo começado o trabalho de parto, informaram um ao outro o que se passava em suas casas, e enviaram mensageiros um ao outro, a fim de anunciar com igual rapidez o nascimento das crianças; e conseguiram-no fazer facilmente, como se o fato se passasse em suas próprias casas. E Firmino contava que os mensageiros que haviam sido enviados vieram a se encontrar à mesma distância de suas respectivas casas, de modo que não se podia notar a menor diferença na posição das estrelas, assim como nas demais frações de tempo. No entanto Firmino, como filho de grande família, corria pelos mais brilhantes caminhos do MUNDO, crescia em riquezas e era coberto de honras, ao passo que o escravo, sujeito ainda ao jugo da escravidão, tinha que servir a seus senhores, segundo ele próprio contava, pois o conhecia. Confissões VII, VI
Neles eu li — não com estas palavras, mas substancialmente o mesmo e expresso com muitos e diversos argumentos — que “no princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Este estava desde o princípio em Deus. Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada foi feito do que foi feito. O que foi feito é vida nele, e a vida era a luz dos homens. E a luz brilha nas trevas, mas as trevas não a compreenderam. Diziam também que a alma do homem, embora dê testemunho da luz, não é a luz, mas o Verbo, Deus, é a verdadeira luz, que ilumina a todo homem que vem a este MUNDO. E que neste MUNDO estava, e que o MUNDO é criatura sua, e que o MUNDO não o conheceu”. Confissões VII, IX
Entendi por experiência que não é de admirar que o pão seja enjoativo ao paladar enfermo, mesmo tão agradável para o paladar sadio, e que olhos enfermos considerem odiosa a luz, que para os límpidos é tão cara. Se tua justiça desagrada aos maus, muito mais desagradam a víbora e o caruncho, que criaste bons e adaptados à parte inferior da tua criação, com a qual também os maus se assemelham, tanto mais quanto mais diferem de ti, assim como os justos se assemelham às partes superiores do MUNDO na medida em que se assemelham a ti. Confissões VII, XVI
Que fará esse homem infeliz? Quem o livrará deste corpo de morte, senão tua graça, por Jesus Cristo, nosso Senhor, a quem tu geraste co-eterno e criaste no princípio de teus caminhos, ele, em quem o príncipe deste MUNDO não achou nada que merecesse a morte, e a quem, contudo, matou? Com o que foi anulada a sentença que havia contra nós? Confissões VII, XXI
Quanto a mim, aborrecia-me a vida que levava no MUNDO, e era para mim fardo pesadíssimo, agora que os apetites mundanos, como a esperança de honras e riquezas, já não me animavam para suportar tão pesada servidão. Essas paixões haviam perdido para mim o encanto, diante de tua doçura e da beleza de tua casa, que já amava. Mas sentia-me ainda fortemente amarrado à mulher. Sem dúvida o Apóstolo não me proibia de casar, embora em seu ardente desejo de ver todos os homens semelhantes a ele, exortasse a um estado mais elevado. Confissões VIII, I
Fui ter pois com Simpliciano, pai espiritual do então bispo Ambrósio, que o amava verdadeiramente como pai. Contei-lhe os labirintos do meu erro. E quando lhe disse que havia lido alguns livros dos platônicos, traduzidos para o latim por Vitorino, outrora retórico em Roma — e do qual ouvira dizer que morrera cristão — ele me felicitou por não ter caído nas obras de outros filósofos, falazes e enganosas, segundo os elementos deste MUNDO, mas apenas estes, que insinuam por mil modos a Deus e a seu Verbo. Confissões VIII, II
Depois, para me exortar à humildade de Cristo, escondida aos sábios e revelada aos humildes, evocou a lembrança do próprio Vitorino, que conhecera intimamente, quando estava em Roma. Não guardarei silêncio sobre o que me contou dele, porque me dará azo de proclamar os grandes louvores de tua graça a seu respeito. Esse erudito ancião, profundo conhecedor de todas as ciências liberais, leitor e crítico de tantos livros de filosofia, fora mestres de muitos nobres senadores. O prestígio de seu magistério lhe valera uma estátua no foro romano, que ele aceitara (coisa que os cidadãos desse MUNDO têm em grande conta). Até aquela idade avançada, havia adorado os ídolos, participando de cultos sacrílegos, de que participava quase toda a nobreza romana da época que inspirava ao povo sua devoção por Osíris, por “toda sorte de monstros divinizados, pelo lavrador Anúbis”, monstros que outrora “pegaram em armas contra Netuno, Vênus e Minerva”, e a quem, vencidos, a própria Roma dirigia súplicas, esse velho Vitorino, que durante tantos anos havia defendido esses deuses com sua terrível eloquência, não se envergonhou de se tornar servo de teu Cristo e criança de tuas águas, dobrando o pescoço ao jugo da humildade, e dobrando sua fronte ante o opróbrio da cruz. Confissões VIII, II
Mas se estes são menos conhecidos pelo MUNDO dos homens, mesmo os que os conhecem se alegram menos; mas quando a alegria é partilhada por muitos, ainda é maior em cada um, porque se aquece e inflama de uns para os outros. Confissões VIII, IV
Mas, longe de mim pensar que no teu tabernáculo são mais aceitos os ricos que os pobres, e os nobres mais do que os plebeus, porque escolheste os fracos segundo o MUNDO para confundir os fortes; o que é vil e desprezível segundo o MUNDO, a que não é nada, para aniquilar o que é. Confissões VIII, IV
Eu já não tinha aquela desculpa, com a qual persuadia-me de que, se ainda não desprezava o MUNDO para te servir, era porque não tinha visão clara da verdade, uma vez que agora já a conhecia de modo indiscutível. Mas, ainda apegado à terra, recusava-me a combater em tuas fileiras, e temia ver-me livre dos meus laços, quando devia temer estar por eles atado. Confissões VIII, V
Assim, sentia-me docemente oprimido pelo peso do MUNDO, como em um sonho, e os pensamentos com que meditava em ti eram semelhantes aos esforços dos que desejam despertar, mas, vencidos pela sonolência, voltam dormir. Não há ninguém que queira dormir sempre, e segundo dita o bom senso, é melhor estar desperto que dormir. Contudo, às vezes retarda-se o despertar, quando o torpor torna os membros pesados, e, mesmo a contragosto, continua-se a dormir mesmo depois de chegada a hora de despertar. Assim eu estava certo que era melhor entregar-me a teu amor que ceder à minha paixão. O primeiro me agradava, me dominava; o segundo me encantava, me prendia. Confissões VIII, V
Agora contarei de que modo me arrancaste do vínculo do desejo carnal, que me prendia fortemente, e da servidão dos negócios do MUNDO, e confessarei teu nome, ó Senhor, meu auxílio e minha redenção. Levava minha vida habitual com angústia crescente; todos os dias suspirava por ti, frequentava tua igreja, quando me deixavam livre os negócios, cujo peso me fazia sofrer. Confissões VIII, VI
Não foi, pois, o interesse que moveu a Nebrídio — que poderia auferir bem mais vantagens se ensinasse as letras — mas, como grande amigo que era, não quis recusar nosso pedido em obsequio à amizade. Agia, porém, com muita prudência, evitando fazer-se conhecido dos poderosos deste MUNDO, para evitar as inquietações do espírito que ele queria manter o mais possível livre e desocupado para investigar, ler ou ouvir algo sobre a sabedoria. Confissões VIII, VI
Caminhando a esmo, estes últimos deram com uma cabana, habitada por alguns servos teus, pobres de espírito, a quem pertence o reino dos céus. Lá encontraram um exemplar manuscrito da Vida de Santo Antão. Um deles começou a lê-lo, e, admirado e arrebatado cogitou, enquanto lia, em abraçar aquele gênero de vida, abandonando o serviço do MUNDO, para servir unicamente a ti. Confissões VIII, VI
Estes dois eram os chamados agentes de negócios do imperador. De repente, tomado de amor santo e casto pudor, irado consigo mesmo, olha para o companheiro, e lhe diz: “Dize-me, te peço, onde pretendemos chegar com todos estes nossos trabalhos? Que buscamos? Qual a finalidade do nosso labor? Podemos aspirar mais no palácio do que ser amigos do imperador? E mesmo nisto, quanta incerteza, quantos perigos! E quantos perigos teremos de passar para chegar a um perigo ainda maior? E quando chegaremos a isso? Mas, se eu quiser ser amigo de Deus, posso sê-lo agora mesmo”. Disse essas palavras, e exaltado pela gestação da nova vida voltou os olhos para o livro; ao ler, transformava-se interiormente, o que só tu sabias, e seu espírito se despia do MUNDO, como logo se evidenciou. Confissões VIII, VI
E quanto mais ardentemente amava aqueles jovens, cuja salutar decisão ouvia relatar, por se terem entregue completamente a ti para que os curasses, tanto mais acerbamente me odiava ao me comparar com eles. Com efeito, já tinham decorrido muitos anos — talvez uns doze — desde que, ao dezenove anos, lendo o Hortênsio de Cícero, sentira-me atraído para o estudo da sabedoria. Ia adiando a hora de abandonar a felicidade meramente terrena, quando não somente a sua descoberta, mas a sua própria busca, deveria ser preferida aos maiores tesouros do MUNDO e aos maiores prazeres corporais, que a um aceno, afluíam a meu redor. Confissões VIII, VII
Eles é que são de fato maus, que seguem tais más doutrinas; somente serão bons quando aceitarem a verdade, concordando com os que a possuem. E assim o Apóstolo poderá dizer deles: Outrora fostes trevas, mas agora sois luz no Senhor. Mas esses, querendo ser luz não no Senhor, mas em si mesmos, julgam que a natureza da alma á a mesma que a de Deus; vão-se tornando trevas ainda mais densas, pois em sua terrível arrogância se afastam ainda mais de ti, luz verdadeira, que ilumina a todo homem que vem a este MUNDO. Atentai para o que dizeis, e enchei-vos de vergonha. Aproximai-vos dele, e sereis iluminados, e vossos rostos não serão cobertos de confusão. Confissões VIII, X
De tal forma me converteste a ti, que já não procurava esposa, nem abrigava esperança alguma deste MUNDO, mas estava já naquela “regra de fé” em que há tantos anos me havias mostrado à minha mãe. E assim converteste seu pranto em alegria, muito mais fecunda do que havia desejado, e muito mais preciosa e pura do que a que podia esperar dos netos nascidos de minha carne. Confissões VIII, XII
Que invocações elevei a ti, meu Deus, lendo os Salmos de Davi, cânticos de fé, hinos de piedade, que expulsavam de mim todo sentimento de orgulho? Eu era ainda inexperiente de teu verdadeiro amor, e dividia minhas horas de lazer com Alípio, catecúmeno como eu. Minha mãe estava conosco. Ao aspecto da mulher ela aliava fé varonil, a calma da velhice, a ternura de mãe e a piedade de cristã. Que exclamações elevei a ti naqueles salmos, e como me inflamava com eles em teu amor! Incendiava-me em desejos de recitá-los, se fosse possível, ao MUNDO inteiro, para rebater a soberba do gênero humano! Com efeito, em todo o MUNDO se cantam. Não há ninguém que se subtraia a teu calor. Confissões IX, IV
Foi então que se fixou o costume de cantar hinos e salmos, como se faz no Oriente, para que os fiéis não se consumissem no tédio e na tristeza. Desde esse dia esse costume manteve-se, e no resto do MUNDO, quase todas as tuas comunidades de fiéis passaram a adotá-lo. Confissões IX, VII
Tais coisas dizíamos, embora não deste modo, nem com estas palavras. Mas tu sabes, Senhor, que naquele dia, à medida que falávamos dessas coisas, quanto nos parecia vil este MUNDO, com todos os seus deleites — disse-me minha mãe: “Filho, quanto a mim, já nada me atrai nesta vida. Não sei o que faço ainda aqui, nem por que ainda estou aqui, se já se desvaneceram pra mim todas as esperanças do MUNDO. Uma só coisa me fazia desejar viver um pouco mais, e era ver-te católico antes de morrer. Deus me concedeu esta graça superabundantemente, pois te vejo desprezar a felicidade terrena para servi-lo. Que faço, pois, aqui?” Confissões IX, X
Depois adormeci. Ao despertar, minha dor estava mitigada; só, em meu leito, lembrei-me dos versos cheios de verdade de teu Ambrósio. Porque, na verdade Tu és Deus, criador de quanto existe, De todo o MUNDO supremo governante, Que o dia vestes com tua luz brilhante, E de sonhos gratos a noite triste A fim de que os membros cansados O descanso ao trabalho prepare E as mentes cansadas, repare E os peitos de pena oprimidos Depois, pouco a pouco voltava aos sentimentos de antes sobre tua serva. Recordava de sua piedade para contigo, de sua solicitude e paciência comigo, da qual subitamente me via privado. E senti consolação em chorar diante de ti, por causa dela e por ela, e por minha causa e por mim. E deixei que as lágrimas reprimidas corressem à vontade, estendendo-as como um leito reparador sob meu coração. Teus ouvidos eram os que ali me escutavam, e não os de nenhum homem, que pudesse interpretar com soberba meu pranto. Confissões IX, XII
Grande é o poder da memória! E ela tem algo de terrível, meu Deus, em sua complexidade infinita e profunda. E isto é o espírito, e isto sou eu mesmo. Que sou, pois meu Deus? Qual a minha natureza? Vida vária e multiforme, de amplidão imensa. Eis-me em minha memória, em seus campos, antros, inumeráveis cavernas, tudo isso infinitamente cheio de toda espécie de coisas, também inumeráveis. Umas gravadas em imagens, como os corpos; outras, estão sob a forma de não sei que noções e sinais, como os afetos da alma, que a memória conserva quando a alma já não os sente, embora tudo o que está na memória esteja também no espírito. Percorro em todas as direções este MUNDO interior, vou de um lado para outro, e nele me aprofundo o mais possível, sem encontrar-lhe os limites, tão grande é a vida que reside no homem mortal! Que hei de fazer, pois, meu Deus, minha verdadeira vida? Ultrapassarei também esta faculdade que se chama memória? Ultrapassa-la-ei para chegar a ti, doce luz? Que dizes? Confissões X, XVII
Exposto a estas limitações, luto diuturnamente contra a concupiscência do comer e do beber, pois não é coisa que possa cortar de uma vez por todas, apenas com o propósito de nunca mais recair, como fiz com a luxúria. É uma rédea imposta a meu paladar, ora para afrouxá-la, ora para retesá-la. E quem é, Senhor, que não se deixa arrastar às vezes além dos limites do necessário? Se existe alguém assim, é de fato grande, e deve engrandecer teu nome. eu porém não sou desse número, porque sou pecador. Contudo, também, eu engrandeço teu nome, e Aquele que venceu o MUNDO intercede junto a ti por meus pecados. Conta-me entre os membros enfermos de seu corpo, porque teus olhos viram minhas imperfeições e porque todos serão inscritos em teu livro. Confissões X, XXXI
Quanto à luz corporal, de que falava, com sua doçura sedutora e perigosa, é um dos prazeres da vida para os cegos amantes do MUNDO. Mas os que nela sabem encontrar motivos para te louvar, Deus, criador de todas as coisas, convertem-na em hino em teu louvor, sem se deixarem dominar por ela no sono. é assim que desejo ser. Resisto às seduções dos olhos, para que meus pés, que começam a trilhar teus caminhos, não fiquem enredados. Elevo a ti olhos invisíveis, para que libertes meus pés de seus laços. Tu não cessa de livrá-los, porque sempre estão a se prender. Tu não cessas de me livrar, e eu me deixo cair a cada passo nas insídias espalhadas por toda parte, porque não dormirás, nem cochilarás, tu que guardas a Israel. Confissões X, XXXIV
Mas, Senhor, tu és o único que sabe mandar sem orgulho, porque és o único Senhor verdadeiro, que não tem senhor! Diga-me, terá cessado em mim, se isso pode acontecer nesta vida, esta terceira espécie de tentação, que consiste em querer ser temido e amado pelos homens, com o único fim de obter uma alegria que não é alegria? Que vida miserável, que arrogância indigna! Aí está o principal motivo porque não te amamos e tememos piamente. Por isso resistes aos soberbos, enquanto dás tua graça aos humildes. Trovejas contra as ambições do MUNDO, e faz abalar as montanhas até suas raízes. Confissões X, XXXVI
Quando deixaste de me acompanhar, ó Verdade, para me ensinar o que eu devia evitar ou procurar, sempre te consultei, a ti submetendo, dentro da minha limitação, meus medíocres pontos de vista? Percorri com os sentidos, como pude, o MUNDO exterior. Observei a vida de meu corpo e os meus próprios sentidos. Depois adentrei nas profundezas da memória em seus múltiplos domínios, tão maravilhosamente repletos de inúmeras riquezas; observei tudo isso, estupefato. Sem teu auxílio nada poderia distinguir, mas reconheci que nada disto eras tu. Nem era eu o descobridor de todas essas coisas; me esforcei para distingui-las e avaliá-las em seu devido valor, recebendo-a através dos sentidos e interrogando-as. Senti outras coisas unidas a mim, e as examinei, assim como aos sentidos que mas traziam; revolvi as vastas reservas da memória, analisando certas lembranças, guardando umas e trazendo outras à luz. Porque tu és a luz permanente que eu consultava sobre a existência, o valor e a qualidade de todas as coisas, e eu ouvia teus ensinamentos e tuas ordens. Costumo fazê-lo muitas vezes, pois essa é a minha alegria, e sempre que meus trabalhos me permitem algum descanso, refugio-me nesse prazer. Confissões X, XL
Concede-me, Senhor, que eu ouça e compreenda como no princípio criaste o céu e a terra. Moisés assim o escreveu. Escreveu e partiu deste MUNDO, para onde lhe falaste, para junto de ti, e já não está presente para nós. Se estivesse aqui, detê-lo-ia, e dele indagaria, em teu nome, o sentido de tais palavras, e absorveria com atenção as palavras que brotassem de sua boca. Se me falasse em hebraico, em vão sua voz bateria em meus ouvidos, e nenhuma ideia chegaria à minha mente; mas se me falasse em latim, eu compreenderia suas palavras. Confissões XI, III
Mas como os fizeste? Como criaste, meu Deus, o céu e a terra? Por certo não criaste o céu e a terra no céu e na terra. Nem tampouco os criaste no ar, nem sob as águas que pertencem ao céu e à terra. Não criaste o universo no universo, porque não havia espaço onde pudesse existir. Não tinhas à mão a matéria com que modelar o céu e a terra. E de onde viria essa matéria que não tinhas ainda feito para dela fazer alguma coisa? Que criatura pode existir que não exija tua existência? Contudo, falaste e o MUNDO foi feito. Tua palavra o criou. Confissões XI, V
De fato, todo este MUNDO material, cuja base é a terra, embora não seja inteiramente belo em toda parte, recebeu até em seus últimos elementos, uma aparência atraente. Mas, comparado com esse céu do céu, o céu de nossa terra também não passa de terra. Por isso, não é absurdo chamar de terra esses dois grandes corpos visíveis, se os compararmos a esse céu misterioso que pertence ao Senhor, e não aos filhos dos homens. Confissões XII, II
Que nome darei a esta matéria, como sugerir sua ideia às inteligências mais curtas, senão usando um termo de uso corrente? O que se pode encontrar no MUNDO que seja mais parecido com essa ausência total de forma, que a terra e o abismo? Colocados no mais baixo grau da criação, eles não têm a beleza dos corpos que no alto brilham de luz fulgurante. Confissões XII, IV
Por que, então, não aceitar que essa matéria informe, que criaste sem beleza para com ela moldar um MUNDO cheio de beleza, fosse comodamente designada aos homens pelos termos de terra invisível e informe? Confissões XII, IV
Senhor, criaste o MUNDO de uma matéria sem forma; do nada fizeste este quase nada de onde tiraste as grandes coisas que admiramos, nós, os filhos dos homens. Porque este céu corpóreo é de fato admirável, este firmamento que separa uma água de outra, que criaste no segundo dia, depois da luz, dizendo: “Faça-se — e assim se fez”. Chamaste a este firmamento de céu: o céu desta terra e deste mar que criaste no terceiro dia, dando forma visível à matéria informe, criado por ti antes de todos os dias. Confissões XII, VIII
Já havias criado outro céu antes de haver dia; mas era o céu do céu, porque no princípio criaste o céu e a terra. Quanto a esta mesma terra, nada mais era que matéria informe, sendo invisível, caótica e as trevas reinando sobre o abismo. É desta terra invisível, caótica, desta massa informe, deste quase nada, que formaste todas as coisas de que é formado e não formado este MUNDO mutável, domínio da transformação, que torna possíveis a percepção e a medida do tempo. Porque o tempo é feito da mudança das coisas, de variações e transformações das formas, cuja matéria é esta terra invisível, de que falei acima. Confissões XII, VIII
Tereis por falazes as palavras da Verdade faladas ao ouvido de minha alma: que a espera das coisas futuras se torna contemplação, quando presentes, e que depois se transforma em memória, quando passadas? Que todo pensamento que varia assim é mutável, e que nada do que é mutável é eterno? Ora, nosso Deus é eterno. E, reunindo e condensando estas verdades, deduzo que meu Deus, o Deus eterno, não criou o MUNDO por um novo ato de volição, e que sua ciência não admite nada que seja transitório. Confissões XII, XV
Eles dizem: “Sem dúvida, isso é verdade, mas não era isso que Moisés queria exprimir quando, inspirado pelo Espírito Santo, escreveu: “No princípio criou Deus e céu e a terra” — Pela palavra céu, ele não quis significar essa criatura espiritual ou intelectual, que contempla eternamente a face de Deus; e pela palavra terra, uma matéria informe. — Que quis dizer então? — O que nós afirmamos — respondem — isso é o que Moisés quis dizer, e o que expressou naquelas palavras. — E que é que afirmais? — Pelas palavras céu e terra quis significar, em primeiro lugar, globalmente e de forma concisa, todo o MUNDO visível, para em seguida pormenorizar, enumerando os dias, ponto por ponto, esse conjunto que aprouve ao Espírito Santo designar com uma expressão global. O povo rude e carnal ao qual falava era constituído de homens tais que julgou conveniente dar-lhes a conhecer apenas as obras visíveis de Deus”. Confissões XII, XVII
A verdade, Senhor é que criaste o céu e a terra. A verdade é que o princípio é tua Sabedoria, em que criaste todas as coisas. É também verdade que este MUNDO visível se compõe de duas grandes partes, o céu e a terra, síntese de todas as realidades criadas. É ainda verdade que tudo o que é mutável sugere a nosso pensamento a ideia de algo informe, susceptível de tomar forma, de mudar e de se transformar. Confissões XII, XIX
Todas essas verdades, das quais não duvidam os que de ti receberam a graça de ver com os olhos da alma, e que creem firmemente que teu servo Moisés falou em espírito de verdade, há quem dê esta interpretação: “No princípio Deus criou o céu e a terra” — isto é, Deus criou, em seu Verbo, que lhe é co-eterno, o MUNDO racional e sensível, ou espiritual e corporal. Outro diz: “No princípio Deus criou o céu e a terra” — isto é, Deus criou em seu Verbo, que lhe é co-eterno, toda a massa do MUNDO corpóreo, com tudo o que contém de realidades, manifestamente conhecidas. Confissões XII, XX
E outro ainda: “A terra era invisível e caótica, e as trevas se estendiam sobre o abismo” — isto é, já existia uma matéria informe, da qual a Escritura diz que Deus criou o céu e a terra, toda a massa corporal do MUNDO, dividido em duas grandes partes, uma superior, outra inferior, com todas as criaturas nelas existentes e que nos são familiares. Confissões XII, XXI
Todavia, meu Deus, que me elevas em minha pequenez, que descansas minha fadiga, que ouves minhas confissões e perdoas meus pecados, tu me ordenas que eu ame a meu próximo como a mim mesmo; não posso crer que Moisés, teu servo tão fiel, tenha sido aquinhoado com menos dons do que eu teria desejado e apetecido se tivesse nascido em seu tempo, e me tivesses confiado a tarefa de te servir com meu coração e minha língua, e disseminar essas Escrituras. Estas, tanto tempo depois, deviam ser úteis a todos os homens e, pelo MUNDO afora, triunfar com o prestígio de sua autoridade sobre as afirmações das doutrinas falsas e orgulhosas. Confissões XII, XXVI
Quando leem ou ouvem as palavras de Moisés, veem que tua estável e eterna permanência, ó Deus, domina todos os tempos passados e futuros, e por isso não existe criatura corpórea que não seja obra tua. Veem que tua vontade, confundindo-se com teu ser, criou todas as coisas sem sofrer modificação, sem que nasça nela uma decisão nova, que não existisse antes; que criaste o MUNDO, não tirando de tua substância uma imagem tua, forma substancial de toda realidade, mas tirando do nada uma matéria informe, diferente de ti mesmo; e esta poderia ser formada à tua imagem pela volta à tua Unidade, segundo a medida previamente estabelecida e concedida a cada ser, de acordo com sua espécie. Veem assim que todas as obras da criação são excelentes, ou porque permanecem próximas a ti, ou porque, afastadas de ti no tempo e no espaço, fazem ou sofrem as admiráveis variedades do MUNDO. Reconhecem essas coisas, e por isso se alegram na luz de tua verdade, à medida que o podem com suas forças terrenas. Confissões XII, XXVIII
Tampouco são unânimes os que creem que nesse texto céu e terra se referem às criaturas já formadas e dispostas; um acredita que se trata do MUNDO invisível e visível; outro, apenas do MUNDO visível, onde se contempla o céu luminoso e a terra tenebrosa, com tudo o que eles contêm. Confissões XII, XXVIII
Feliz a criatura que não conheceu outro estado! Seria porém diferente do que é se, apenas criada, teu Espírito, que paira sobre todas as coisas mutáveis, não a tivesse erguido com este apelo: “Faça- te a luz” — e a luz se fez. Em nós, o tempo em que éramos trevas distingue-se do tempo em que nos tornamos luz. Mas dessa criatura só se diz o que teria sido se não fosse iluminada. A Escritura fala dela como se tivesse sido flutuante e tenebrosa, para nos realçar a causa que a transformou, isto é, que a conduziu para a luz inextinguível, para que também fosse luz. Quem o puder, compreenda, quem não o puder, que te peça a graça de o compreender. Por que importunam, como seu fosse a luz que ilumina a todo homem que vem a este MUNDO? Confissões XIII, X
Contudo, somos luz apenas pela fé, e não por uma visão clara. É na esperança que fomos salvos, e a esperança que vê não é mais esperança. O abismo clama pelo abismo, mas é já pela voz de tuas cataratas. Não pude falar-vos como a homens espirituais, mas como a carnais. Quem assim fala, não julga ainda ter atingido sua meta e, esquecendo-se do que ficou para trás, avança para o que está vivo, como o cervo tem sede de água das fontes, e diz: “Quando chegarei?” — Ele deseja o abrigo de sua morada, que está no céu e chama o abismo inferior dizendo: “Não vos conformeis com este MUNDO, mas reformai-vos renovando vosso espírito, e não queirais ser crianças na mente, mas sede pequeninos quanto à malícia, para que sejais perfeitos no espírito…” Confissões XIII, XIII
Senhor, assim como crias e concedes alegria e força, assim te peço que nasça da terra a vontade, e que a justiça lance os olhos sobre nós do alto dos céus, e que no firmamento brilhem os astros! Dividamos nosso pão com quem tem fome, acolhamos em nossa casa o pobre sem teto, vistamos quem está nu, e não desprezemos nossos semelhantes! Quando tais frutos nascem de nossa terra, olha, Senhor, e diz: Isso é bom; faze que tua luz brilho no momento oportuno. Por esta humilde messe de boas obras, faze que nos possamos elevar a uma contemplação deliciosa do Verbo da Vida, e que brilhemos no MUNDO como astros, fixados no firmamento de tua Escritura. Confissões XIII, XVIII
Deste modo já não és mais o único, no segredo de teu discernimento, como eras antes da criação do firmamento, a distinguir entre a luz e as trevas. Também tuas criaturas espirituais, dispostas e ordenadas nesse mesmo firmamento, depois que tua graça se manifestou através do MUNDO, brilham sobre a terra, separam o dia da noite e marcam as diferenças dos tempos. De fato, as coisas antigas passaram, e eis que se fizeram novas, nossa salvação está mais próxima do que quando começamos a crer, a noite avançou e se aproximou o dia, coroas o ano com tua benção, envias teus operários à tua messe, semeada pelo trabalho de outros operários, enviando-os também para outra sementeira, cuja messe será colhida no fim dos séculos. Confissões XIII, XVIII
Mas vós, geração escolhida, fracos aos olhos do MUNDO, que tudo deixaste para seguir o Senhor, caminhais após ele, confundi os fortes; segui-lo com vossos pés resplandecentes, e brilhai no firmamento para que os céus cantem suas glórias, distinguindo a luz dos perfeitos, que ainda não são semelhantes aos anjos, e as trevas dos pequenos, que ainda não perderam a esperança. Brilhai sobre toda a terra! Que o dia resplandecente de sol transmita ao dia seguinte a palavra de Sabedoria, e que a noite, iluminada pela lua, transmita à noite a palavra de Ciência. A lua e as estrelas brilham na noite, mas a noite não as obscurece, porque são elas que iluminam a noite, de acordo com a sua capacidade. Confissões XIII, XIX
Como se Deus tivesse dito: Façam-se luminares no firmamento, e logo se fez ouvir um ruído vindo do céu, semelhante ao de um vento violento, e foram vistas línguas de fogo, que se dividiram e se colocaram sobre cada um deles. E apareceram luminares no céu, que possuíam a palavra de vida. Correi por toda parte, chamas sagradas, fogos admiráveis. Vós sois a luz do MUNDO, e não estais debaixo do alqueire. Aquele a quem vos unistes foi exaltado e ele vos exaltou. Correi e dai-vos a conhecer a todas as nações. Confissões XIII, XIX
Então se operaram grandes maravilhas, semelhantes a enormes cetáceos, e as palavras de teus mensageiros percorreram a terra, sob o firmamento de teu Livro, que com tua autoridade deveria proteger seu voo para onde quer que fossem. Não há língua nem palavras em que não se ouçam suas vozes; seu som espalhou-se por toda a terra, e suas palavras até os confins do MUNDO, porque tu, Senhor, abençoando-os, os multiplicaste. Confissões XIII, XX
Também as aves, ainda que nascidas no mar, multiplicam-se sobre a terra. As primeiras gerações evangélicas foram motivadas pela incredulidade dos homens, mas também fiéis nela encontram diariamente copiosas exortações e bênçãos. Todavia, a alma viva, extrai da terra sua origem, porque somente aos fiéis é meritório abster-se de amar este MUNDO, para que sua alma viva por ti, essa alma que estava morta quando vivia em delícias mortíferas. Ó Senhor, só tu fazes as delicias de um coração puro. Confissões XIII, XXI
Que teus ministros trabalhem na terra, não como nas águas da incredulidade, quando pregavam e falavam utilizando-se de milagres, de sinais misteriosos, de termos místicos, para capturar atenção da ignorância, mãe da admiração, pelo medo desses sinais secretos. Por esta porta, de fato, os filhos de Adão têm acesso à fé, esquecidos de ti enquanto se escondem de tua fade e se tornam abismos. Que teus ministros trabalhem como em terra seca, separada das fauces do abismo; e que sejam modelo para os fiéis, vivendo sob teus olhares e incitando-os à imitação. E assim ouve não só para ouvir, mas também para praticar. “Procurai a Deus, e vossa alma viverá, e a terra dará nascimento a uma alma viva. Não vos conformeis com este MUNDO em que vivemos, abstendo-vos dele. A alma vive evitando as coisas cujo desejo causa-lhe a morte. Confissões XIII, XXI
Abstende-vos das violências selvagens da soberba, das ociosas voluptuosidades da luxúria, da falsidade que engana em nome da ciência, para que os animais ferozes sejam domesticados, os brutos domados e para que as serpentes sejam inofensivas: todos representam alegoricamente os movimentos da alma humana. O fastio do orgulho, as delícias da luxúria, o veneno da curiosidade, são movimentos da alma morta, mas não morta a ponto de carecer de todo movimento; é afastando-se da fonte da vida que ela morre, o MUNDO a arrebata ao passar, e a este se amolda. Confissões XIII, XXI
Mas tua palavra, meu Deus, é a fonte da vida eterna, e não passa. Ela mesma nos proíbe que nos afastemos de ti por essas palavras: “Não vos conformeis com o MUNDO em que vivemos, para que a terra, fertilizada pela fonte da vida, produza uma alma viva, uma alma que busque em tua palavra, transmitida por teus evangelistas, se fortificar, imitando os imitadores de teu Cristo”. — Eis o sentido da expressão “segundo sua espécie”, porque o homem imita a quem ama. “Sede como eu” — diz o Apostolo, – porque sou como vós. — Assim haverá na alma viva apenas feras sem maldade, agindo com doçura. Pois nos deste este mandamento: “Fazei vossas obras com mansidão, e sereis amados por todos” — Também os animais domésticos serão bons: se comerem, não sofrerão fastio e, se não comerem, não terão fome. As serpentes, tornando-se boas, serão incapazes de causar danos, mas continuarão astutas e cautelosas; não investigarão a natureza temporal, senão na medida necessária para compreender e contemplar a eternidade através das coisas criadas. Esses animais, as paixões, obedecem à razão, quando refreados em seus caminhos mortais, vivem e se tornam bons. Confissões XIII, XXI
Assim, Senhor, nosso Deus e nosso Criador, quando nossos afetos mundanos, que nos causam a morte porque nos faziam viver mal, se afastarem do amor do MUNDO, quando nossa alma, vivendo bem, se tornar alma viva, e quando se cumprir a palavra que proferiste pela boca de teu Apostolo: “Não vos conformeis com o MUNDO em que vivemos” — então seguir-se-á aquilo que acrescentaste imediatamente ao dizer: “Mas reformai-vos na novidade de vossa mente”. — E já não será “segundo vossa espécie” — como se fosse imitar nossos predecessores ou viver seguindo os exemplos de alguém melhor que nós. Não disseste: “Que o homem seja feito de acordo com sua espécie” — mas “façamos o homem à nossa imagem e semelhança” — para que pudéssemos reconhecer tua vontade. Para tanto, o divulgador de teu pensamento, que gerou filhos pelo Evangelho, não querendo que continuassem como crianças os que alimentara com leite e agasalhara em teu seio como uma ama, dizia: “Reformai-vos renovando vosso coração, para discernir a vontade de Deus, que é bom, agradável e perfeito”. — Também não dizes: “Faça-se o homem” — mas “à nossa imagem e semelhança”. Aquele que é renovado no espírito, que compreende e conhece tua verdade, não mais carece que um outro lhe ensine a imitar sua espécie. Graças às tuas lições, ele reconhece por si qual é tua vontade, o que é bom, agradável e perfeito. Tu lhe ensinas, pois agora é capaz deste ensinamento, a ver a Trindade da Unidade e a Unidade da Trindade. Eis por que, depois de falar no plural: “Façamos o homem” se diz no singular: “E Deus criou o homem”. Depois deste plural: “À nossa imagem” — este singular: “À imagem de Deus”. Assim o homem “se renova pelo conhecimento de Deus, à imagem de seu criador” — e “tornando-se espiritual, julga todas as coisas”, que certamente hão de ser julgadas, “mas ele não é julgado por ninguém”. Confissões XIII, XXII
Tampouco julga, o homem espiritual, os povos inquietos deste MUNDO. De fato, por que julgaria ele os que estão fora, ignorando quem alcançará a doçura da tua graça, e quem permanecerá na eterna amargura da impiedade? Confissões XIII, XXIII
Ele julga e aprova o que acha bom, e reprova o que acha mau, quer na celebração dos sacramentos, com que são iniciados os que na tua misericórdia tira das águas profundas, quer no banquete em que se serve o peixe tirado das profundezas para alimento da terra fiel; quer nas palavras e expressões sujeitas à autoridade de teu Livro que, semelhantes aos pássaros, voam sob o firmamento: interpretações, exposições, discussões, bênçãos e invocações que brotam sonoras da boca, para que o povo responda: Amém! É necessário que essas palavras sejam enunciadas fisicamente, por causa do abismo do MUNDO e da cegueira da carne que, impossibilitada de ver o pensamento, tem necessidade de sons que firam os ouvidos. Assim, sem dúvida é sobre a terra que as aves se multiplicam, embora tenham suas origens na água. Confissões XIII, XXIII
Ouvi, Senhor, meu Deus, tua voz, e recolhi em meu coração uma gota de doçura de tua verdade. Compreendi que há uns aos quais tuas obras desagradam. Eles sustentam que muitas delas fizeste constrangido pela necessidade, como a estrutura dos céus, a ordem dos astros; afirmam que não as criaste por ti mesmo, mas que elas já existiam alhures, criadas por outra fonte; que te limitaste a reuni-las, a ordená-las, a entrelaçá-las; que com elas construíste as muralhas do MUNDO, depois de vencido teus inimigos, para que essa construção os mantivesse cativos, e não mais pudessem se revoltar contra ti; que não criaste nem organizaste outros seres, como os corpos carnais, os animais pequenos e tudo o que se prende à terra por meio de raízes; que foi um espírito hostil, uma outra natureza, não criada por ti, e que se opõe a ti nas regiões inferiores do MUNDO, que as gerou e organizou. Esses insensatos falam assim porque não veem tuas obras através de teu Espírito, nem te reconhecem neles. Confissões XIII, XXX
O oposto sucede aos que veem tuas obras através de teu Espírito, pois és tu é quem as vê neles. Portanto, quando veem que elas são boas, tu também vês essa bondade; em tudo o que lhes agrada por tua causa, tu és que nos agradas, e o que nos agrada através de teu Espírito é em nós que te agrada. Com efeito, quem dentre os homens sabe das coisas do homem, senão o espírito do homem que nele habita? Do mesmo modo o que pertence a Deus ninguém o sabe, a não ser o Espírito de Deus. “Quanto a nós, diz ainda Paulo, não recebemos e espírito deste MUNDO, mas o Espírito de Deus, para que conheçamos os dons que nos vêm de Deus”. Confissões XIII, XXXI
Graças te damos, Senhor! Vemos o céu e a terra, isto é, a parte superior e inferior do MUNDO material, assim como a criação espiritual e material. E, como adorno dessas partes que se compõe, o conjunto do Universo, e o conjunto de toda a criação, vemos a luz que foi criada e separada pelas trevas. Vemos o firmamento do céu, tanto o que está situado entre as águas espirituais superiores e as águas materiais inferiores, como ainda esses espaços de ar, chamados também de céu, onde volitam as aves do céu entre as águas que se evolam em vapores, e nas noites serenas se condensam em orvalho, e as que correm pesadas sobre a terra. Vemos a beleza das águas reunidas nas planícies do mar, e a terra enxuta, ora nua, ora tomando forma visível e ordenada, mãe das plantas e das árvore . vemos os luminares do céu brilhando acima de nós, o sol bastar para o dia, a lua e as estrelas consolando a noite, e todos esses astros marcando e assinalando a cadência do tempo. Vemos o elementos úmido habitado por peixes, monstros, animais alados, porque a densidade do ar que sustenta o voo dos pássaros é aumentada pela evaporação das águas. Vemos a face da terra embelezar-se de animais terrestres, e o homem, criado à tua imagem e semelhança, senhor de todos os animais irracionais, precisamente porque foi feito à tua imagem e se assemelha a ti, em virtude da razão e da inteligência. E como na alma humana há uma parte que domina pela reflexão e outra que se submete na obediência, assim a mulher foi criada fisicamente para o homem; é fora de dúvida que ela possui um espírito e uma inteligência racional, iguais aos do homem, mas seu sexo a coloca sob a dependência do sexo masculino; é desse modo que o desejo, princípio da ação, se submete à razão que concebe a arte do agir retamente. Eis o que vemos, e que cada uma dessas coisas, tomadas por si, são boas, e que todas, em seu conjunto, são muito boas. Confissões XIII, XXXII