Permita, porém, que eu fale em presença de tua MISERICÓRDIA, a mim, terra e cinza; deixa que eu fale, porque é à tua MISERICÓRDIA que falo, e não ao homem, que de mim escarnece. Talvez também tu te rias de mim, mas, voltado para mim, terás compaixão. Confissões I, VI
Tu vês, Senhor, estas coisas, e te calas compassivo, paciente, cheio de MISERICÓRDIA e verdade. Mas te calarás para sempre? Arranca, pois, agora deste espantoso abismo a alma que te busca sedenta de teus deleites, e que te diz de coração: Busquei, Senhor, teu rosto; teu rosto, Senhor, buscarei ainda. Longe está de teu rosto quem anda ocupado com afetos tenebrosos, porque não é com os pés carnais, nem cobrindo distâncias que nos aproximamos ou nos afastamos de ti. Porventura aquele teu filho menor procurou cavalos, ou carros, ou naves, ou voou com asas invisíveis, ou viajou a pé para alcançar aquela região longínqua onde dissipou o que lhes havia dado, ó Pai, meigo ao lhe entregar a substância, e mais carinhoso ainda ao recebê-lo andrajoso? Assim, pois, viver nas paixões da luxúria, é o mesmo que viver em paixões tenebrosas, é viver longe de teu rosto. Confissões I, XVIII
Aí está meu coração, Senhor, meu coração que olhaste com MISERICÓRDIA quando se encontrava na profundeza do abismo. Que este meu coração te diga agora que era o que ali buscava, para fazer o mal gratuitamente, não tendo minha maldade outra razão que a própria maldade. Era hedionda, e eu a amei; amei minha morte, amei meu pecado; não o objeto que me fazia cair, mas minha própria queda. Ó torpe minha alma, que saltando para fora do santo apoio, te lançavas na morte, não buscando na ignomínia senão a própria ignomínia? Confissões II, IV
Como agradecerei ao Senhor por poder recordar todas estas coisas sem que minha alma sinta medo algum? Amar-te-ei, Senhor, e dar-te-ei graças, e confessarei teu nome, pois me perdoaste tantas e tão nefandas ações. Devo à tua graça e MISERICÓRDIA teres-me dissolvido os pecados como gelo, como também todo o mal que não pratiquei. De fato, de que pecados não seria capaz, eu que amei gratuitamente o erro? Confissões II, VII
Confesso que todos já me foram perdoados; o mal cometido voluntariamente, e o que deixei de fazer pela tua graça. Quem dentre os homens, conhecendo tua fraqueza, poderá atribuir às próprias forças sua castidade e inocência para amar-te menos, como se tivesse menor necessidade de tua MISERICÓRDIA, com a qual perdoas os pecados aos que se convertem a ti? Confissões II, VII
Caí por fim no amor, em que desejava ser colhido. Porém, ó meu Deus, MISERICÓRDIA minha, quanto fel não misturaste àquela suavidade, e quão bom foste ao fazê-lo! Fui amado, e cheguei secretamente aos laços do prazer, e me deixei alegremente enredar com trabalhosos laços, para ser logo açoitado com as varas de ferro ardente do ciúme, das suspeitas, dos temores, das iras e das contendas. Confissões III, I
Hoje, porém, tenho mais compaixão do homem que se alegra em seus vícios, que do que sofre pela perda de um prazer funesto ou pela perda de uma mísera felicidade. Esta MISERICÓRDIA é certamente mais verdadeira, mas nela a dor não encontra nenhum prazer. E embora seja certo que se aprove quem por caridade se compadece do miserável, contudo, quem é fraternalmente compassivo preferiria que não houvesse razões para se compadecer. Porque assim como não é possível que exista uma benevolência malévola, tampouco o é que haja miseráveis para deles se compadecer. Confissões III, II
Entretanto, tua MISERICÓRDIA, fiel, de longe pairava sobre mim. Em quantas iniquidades não me corrompi, meu Deus, levado por sacrílega curiosidade que, separando-me de ti, conduzia-me aos mais baixos, desleais e enganosos serviços aos demônios, a quem sacrificava minhas más ações, sendo em todas flagelado com duro açoite por ti! Também ousei apetecer ardentemente e procurar meios para conseguir os frutos da morte na celebração de teus mistérios, dentro dos muros de tua igreja. Por isso me açoitaste com duras penas, que nada eram comparadas com minhas culpas, ó Deus, MISERICÓRDIA infinita, e meu refúgio contra os terríveis malfeitores, com os quais vaguei de cabeça erguida, afastando-me cada vez mais de ti, preferindo meus caminhos aos teus, amando a liberdade fugitiva! Os estudos a que era entregue, que se denominavam honestos ou nobres, tinham por objetivo as contendas do foro, nas quais deveria me distinguir com tanto maior louvor quanto mais hábeis fossem as mentiras. Tal é a cegueira dos homens, que até de sua própria cegueira se gloriam! Eu já conseguira, naquele tempo, ser o primeiro da escola de retórica, e por isso me vangloriava soberbamente, e me inflava de orgulho. Contudo, tu sabes, Senhor, que eu era muito mais sossegado que os demais, e totalmente alheio às turbulências dos eversores — ou demolidores — nome sinistro e diabólico que eles consideravam distintivo de urbanidade, entre os quais vivia com imprudente pudor por não pertencer a seu grupo. É verdade que andava com eles, e que me deleitava, às vezes, com sua amizade, porém, sempre aborreci o que faziam, como as troças e a insolência com que surpreendiam e ridicularizavam a timidez dos novatos, sem outra finalidade senão rir de suas trapalhadas, fazendo disso alimento para suas malévolas alegrias. Nada há mais parecido a estas ações que as dos demônios, pelo que nenhum nome lhes cai melhor que o de eversores ou demolidores, por serem eles transformados e pervertidos totalmente pelos espíritos malignos, que assim os burlam e enganam, sem que o saibam, justamente no que eles gostam de ludibriar ou enganar os demais. Confissões III, III
Mas então — tu bem o sabes, luz de meu coração — eu ainda não conhecia o pensamento de teu Apóstolo. Só me deleitava naquelas palavras de exortação, o fato de me excitarem fortemente, inflamando-me a amar, a buscar, a conquistar, a reter e a abraçar não a esta ou àquela seita, senão à própria Sabedoria, onde quer que estivesse. Só uma coisa me arrefecia tão grande ardor: não ver ali o nome de Cristo. Porque este nome, Senhor, este nome de meu Salvador, teu filho, por tua MISERICÓRDIA eu o bebera piedosamente com o leite materno, e o conservava, no mais profundo do meu coração, em alto apreço; e assim, tudo quanto fosse escrito sem este nome, por mais verídico, elegante e erudito que fosse, não me arrebatava totalmente. Confissões III, IV
Desconhecendo eu essas verdades, ria-me de teus santos e profetas. Mas, que fazia eu quando me ria deles, senão dar motivo para que te risses de mim? deixei-me cair insensivelmente, aos poucos, em tais extravagâncias, a ponto de acreditar que o figo, quando colhido, chora lágrimas de leite junto com a mãe figueira, e que se um “santo” da seita comesse o tal figo, colhido não por seu delito, mas de outrem, misturando-o em suas entranhas, gemendo e arrotando enquanto rezava, exalaria anjos e até mesmo partículas de Deus, partículas essas do verdadeiro Deus que ficariam cativas para sempre naquele fruto se não fossem libertadas pelos dentes e pelo estômago do “santo eleito”! Também acreditei, pobre de mim, que se devia ter mais MISERICÓRDIA com os frutos da terra que com os homens para os quais foram criados. Pois, se algum faminto, que não fosse maniqueísta me pedisse de comer, parecia-me que atendê-lo era como merecer, por aquele bocado, a pena de morte. Confissões III, X
Por isso, não cessava de consultar os impostores chamados matemáticos, já que estes não usavam em suas adivinhações de quase nenhum sacrifício, nem dirigiam preces a nenhum espírito o que, consequentemente, é condenado e repelido com razão pela piedade cristã e verdadeira. Porque o bom é confessar-te, Senhor, e dizer-te: Tem MISERICÓRDIA de mim, e cura minha alma, porque pecou contra ti, e não abusar da tua indulgência para pecar mais livremente, mas ter sempre presente a sentença do Senhor: Eis-te curado: não peques mais, para que te não suceda algo pior — Estas palavras, cujo efeito salutar os astrólogos querem destruir, dizendo: “O impulso de pecar vem dos céus; foi Vênus, Saturno ou Marte que fizeram isto” — e tudo para que o homem, que é carne, e sangue, e soberba podridão, se sinta sem culpa, e atribua esta ao criador e ordenador do céu e das estrelas. E quem é este, senão tu, nosso Deus, suavidade e fonte de justiça, que dás a cada um de acordo com suas obras, e não desprezas ao coração contrito e humilhado? Confissões IV, III
Mas eis que, seguindo de perto no encalço de teus servos fugitivos, ó Deus das vinganças, que és a um tempo fonte de MISERICÓRDIA, e nos converte a ti por estranhos caminhos, eis que tu o arrebataste desta vida, quando eu apenas havia gozado um ano de sua amizade, mais doce para mim que todas as doçuras da minha vida. Confissões IV, IV
Também foi obra tua o fato de me convencerem a ir a Roma, para ali lecionar o que ensinava em Cartago. Mas não deixarei de confessar-te o motivo que me moveu, porque também nisso tudo se reconhece a profundidade de teu desígnio, e merece ser meditada e exaltada tua MISERICÓRDIA sempre presente. O motivo que me levou a Roma não foram maiores lucros e maior dignidade, como me prometiam os amigos que tal me aconselhavam — se bem que essas razões ainda fossem importantes para mim nesse tempo — mas o principal e quase único motivo de minha determinação era saber que os jovens de Roma eram mais sossegados nas classes, em virtude da rigorosa disciplina a que estavam sujeitos. Não lhes era lícito entrar desordenada e impudentemente nas aulas dos professores dos quais não eram alunos, nem sequer eram admitidos sem licença; bem o contrário do que acontecia em Cartago, onde a liberdade dos estudantes é tão vergonhosa e destemperada que invadem cínica e furiosamente as aulas, perturbando a ordem estabelecida pelos mestres em seu próprio interesse. Além disso, com incrível insolência cometem uma quantidade de grosserias, que deveriam ser castigadas pelas leis, se a tradição não os protegesse. Tal costume aliás, apenas manifesta a infelicidade no caso desses jovens, que já praticam como lícito o que jamais será permitido por tua lei eterna. Julgam agir impunemente, quando a própria cegueira é seu maior castigo, padecendo eles males incomparavelmente maiores do que os que causam aos outros. Confissões V, VIII
Entretanto, agravando-se as febres, eu estava a ponto de partir e de perecer. Para onde iria eu, se então tivesse que morrer, senão para o fogo e tormentos merecidos por minhas ações, de acordo com a justa ordem por ti estabelecida? Minha mãe tudo ignorava, mas, ausente, orava por mim, e tu, presente em todas as partes onde ela estava, lhe dava ouvidos; exercias tua MISERICÓRDIA para comigo onde eu estava, restituindo-me a saúde do corpo, ainda que meu coração sacrílego continuasse doente. Nem mesmo estando em tão grande perigo desejei teu batismo. Quando menino eu era melhor, porque então o solicitei à piedade de minha mãe, como já recordei e confessei. Mas, para minha vergonha, eu havia crescido e, em minha loucura, zombava dos remédios de tua medicina, que não me deixou morrer duplamente em tal estado. Confissões V, IX
Por isso, não vejo como poderia sarar se minha morte em tal estado tivesse ferido as entranhas de seu amor. E onde estariam tantas orações, continuamente repetidas? Estariam em ti, somente em ti. Seria possível que tu, Deus de MISERICÓRDIA, desprezasses o coração contrito e humilhado de uma viúva casta e sóbria, que frequentemente dava esmolas e servia obsequiosa a teus santos? Que em nenhum dia deixava de levar sua oferenda a teu altar? Que ia duas vezes por dia — de manhã e à tarde — à tua igreja, sem faltar jamais, e não para entreter-se em vãs conversas e cochichos de velhas, mas para te ouvir as palavras e para que a ouvisses em suas orações? Poderias desprezar as lágrimas de uma mãe que não te pedia nem ouro, nem prata, nem bem algum terreno e frágil, mas a salvação da alma de seu filho? Poderias, ó Deus, a quem ela devia tudo o que era, poderias desprezá-la e negar-lhe teu auxílio? De nenhum modo, Senhor; pelo contrário, tu a assistias, e a escutavas, mas pelo caminho determinado por tua providência. Confissões V, IX
Porque, por tua MISERICÓRDIA infinita, gostas de te fazer devedor daqueles a quem perdoas todas as dívidas. Confissões V, IX
Depois, com suavidade e MISERICÓRDIA, começaste, Senhor, a cuidar e à preparar aos poucos o meu coração, e foi aceitando tudo o que eu acreditava sem o ter visto, e a cuja realização não presenciara. Tantos fatos da história dos povos, tantas notícias sobre lugares e cidades que não vira, tudo o que aceitava acreditando em amigos, em médicos e em outras pessoas que, se não as acreditássemos, não poderíamos dar um passo na vida. E, sobretudo, que fé inabalável eu tinha em ser filho de meus pais, coisa que não poderia saber sem prestar fé no que ouvia. Então me convenceste de que os dignos de censura não são os que acreditam em teus livros, cuja autoridade estabeleceste entre quase todos os povos, mas o que não creem neles. E eu não devia dar ouvidos ao que talvez me dissessem: “Como sabes que esses livros foram dados aos homens pelo Espírito de Deus, único e verdadeiro?” Ora, era precisamente isto o que eu devia crer, porque nenhuma objeção caluniosa ou agressiva, das que eu havia lido nos escritos contraditórios dos filósofos, nunca conseguiram arrancar-me a certeza de tua existência, embora ignorasse o que eras, e a certeza de que o governo das coisas humanas está em tuas mãos. Confissões VI, V
Eram três bocas famintas que comunicavam mutuamente a própria fome, esperando que lhes desses comida no tempo oportuno. Na amargura, que graças à tua MISERICÓRDIA sempre seguia nossas ações mundanas, se desejávamos entender a causa dos sofrimentos, encontrávamos trevas. Afastávamos gemendo e dizendo: Até quando durará este sofrimento? E isto repetíamos com frequência, mas não abandonávamos nosso modo de vida, porque não víamos nenhuma certeza a que nos pudéssemos abraçar, se o abandonássemos. Confissões VI, X
Enquanto assim pensava, e os ventos cambiantes impeliam meu coração de um lado para outro, o tempo passava, e eu retardava minha conversão ao Senhor. Adiava de dia para dia o viver em ti, morrendo todavia todos os dias em mim mesmo. Amando a vida feliz, temia buscá-la em sua morada; procurava-a fugindo dela! Pensava que seria mui desgraçado se me visse privado das carícias da mulher. Não pensava ainda no remédio de tua MISERICÓRDIA, que cura esta enfermidade, porque nunca o havia experimentado. Julgava que a continência fosse obra de nossa própria força, que eu pensava não ter. Eu era bastante néscio para ignorar que ninguém, como está escrito, é casto sem que tu lhes dê a força. Essa força certamente ma darias se eu ferisse teus ouvidos com os gemidos de minha alma, e com fé firme lançasse em ti meus cuidados. Confissões VI, XI
Salvas e fortemente arraigadas estas verdades em meu espírito, buscava eu ansiosamente a origem do mal. E que tormentos, como que de parto, eram aqueles de meu coração! Que gemidos, meu Deus! E ali estavam teus ouvidos atentos, e eu não o sabia. Quando, em silêncio, me esforçava em pacientes buscas, altos clamores se elevavam até tua MISERICÓRDIA: eram as silenciosas angústias de minha alma. Confissões VII, VII
Primeiramente, querendo tu mostrar-me como resistes aos soberbos e dás tua graça aos humildes, e com quanta MISERICÓRDIA ensinaste aos homens o caminho da humildade, por se ter feito carne teu Verbo, e ter habitado entre os homens, me fizeste chegar às mãos por meio de um homem inchado de monstruoso orgulho, alguns livros dos platônicos, traduzidos do grego para o latim. Confissões VII, IX
Mas, de onde vinha este prodígio? Qual sua causa? Brilhe a tua MISERICÓRDIA, e perguntarei — se é que me podem responder — aos sombrios castigos infligidos aos homens, e às tenebrosas misérias dos filhos de Adão. De onde vem este prodígio? E qual sua causa? Confissões VIII, XI
Assim sofria e me atormentava, com acusações mais acerbas que de costume, rolando-me e debatendo-me dentro de minha cadeias, para ver se as quebrava por completo. Elas mal me prendiam,mas ainda me prendiam. E tu, Senhor, me espicaçavas no fundo de minha alma, e com severa MISERICÓRDIA redobravas os açoites do temor e da vergonha, para que eu não afrouxasse de novo, e para que quebrasse minha tênue e leve cadeia, antes que ela se revigorasse para me prender mais firmemente. Confissões VIII, XI
E que coisas, meu Deus, que torpezas me sugeriam com o que chamei de isto ou aquilo! Por tua MISERICÓRDIA, afasta-as da alma de teu servo! Oh! Que imundícies me sugeriam, que indecências! Já se reduzira a menos da metade o número de vezes que eu lhes dava ouvidos; não era mais um assalto aberto, frontal, mas segredado por cima dos ombros, e como que puxando-me furtivamente, se me afastava, para que me voltasse para trás. Confissões VIII, XI
Estremeci de medo, ao mesmo tempo me abrasei de alegre esperança em tua MISERICÓRDIA, ó Pai! E todos estes sentimentos saíam pelos meus olhos e pela voz quando, dirigindo-se para nós, teu Espírito de bondade nos dizia: Filhos dos homens, até quando sereis duros de coração? Por que amais a vaidade e buscais a mentira? Confissões IX, IV
Quando poderei recordar tudo o que aconteceu naqueles dias de descanso? Mas não esqueci, nem quero silenciar, a aspereza de um açoite que usaste em mim, e a admirável presteza de tua MISERICÓRDIA. Confissões IX, IV
Educada assim na modéstia e na temperança, mais sujeita a seus pais pela tua mão que por seus pais a ti, logo que chegou à idade núbil, foi dada em matrimônio a um homem, a quem serviu como a senhor. Procurou conquistá-lo para ti, falando-lhe de ti com suas virtudes, com as quais tu a tornavas bela e reverentemente amável e admirável ante seus olhos. Suportou suas infidelidades conjugais com tanta paciência, que jamais teve com ele a menor briga por isso, pois esperava que tua MISERICÓRDIA viria sobre ele, e que lhe trouxesse, com a fé, a castidade. Confissões IX, IX
A esta tua boa serva, em cujo seio me criaste, ó meu deus, minha MISERICÓRDIA, dotaste de outra grande virtude: a de intervir como pacificadora, sempre que podia, nas discórdias e querelas. Daquilo que ouvia de queixas amargas, vomitadas com animosidade ressentida, quando na presença de uma amiga os ódios mal digeridos se desafogam em amargas confidencias a respeito de uma amiga ausente, ela nada referia uma à outra, senão o que poderia servir para a reconciliação. Confissões IX, IX
Reprimido o pranto do Adeodato, Evódio tomou o saltério e começou a cantar um salmo, ao que todos respondíamos “MISERICÓRDIA e justiça te cantarei Senhor”. Conhecia a notícia de sua morte, acorreram muitos irmãos e mulheres piedosas e, enquanto os encarregados dos funerais faziam seu ofício conforme o hábito, retirei-me para um lugar conveniente, junto com os amigos que julgavam oportuno não me deixar só. Falava sobre assuntos próprios das circunstâncias, e com o lenitivo da verdade mitigava meu sofrimento, só conhecido por ti. Eles o ignoravam e me ouviam atentamente, julgando que não sofria nenhuma dor. Confissões IX, XII
Lembrei então a ir aos banhos, por ter ouvido dizer que a palavra banho (bálneo, em latim) vinha dos gregos, que o chamaram balanéion (tirar fora a ania), porque o banho aliviava as tristezas da alma. Mas eu o confesso à tua MISERICÓRDIA — ó Pai dos órfãos: depois do banho fiquei como estava antes, porque meu coração não expulsou o amargor de sua tristeza. Confissões IX, XII
Agora, com a ferida do meu coração já sanada, na qual se podia censurar um afeto muito carnal, derramo diante de ti, meu Deus, por tua serva, outra espécie de lágrimas, bem diferentes, aquelas que brotam do espírito comovido à vista dos perigos que corre toda alma que morre em Adão. É verdade que minha mãe, vivificada em Cristo, antes mesmo de ser livre dos laços da carne, viveu de tal modo, que teu nome era louvado em sua fé e em seus costumes. Contudo, não me atrevo a dizer que desde que a regeneraste no batismo não saiu de sua boca nenhuma palavra contrária à tua lei. Porque a Verdade, que é teu Filho, disse: “Quem chamar a seu irmão de louco será réu do fogo da geena”. Ai da vida dos homens, por mais louvável que seja, se tu a julgares sem a tua MISERICÓRDIA! Mas porque não examinas nossos pecados com rigor, confiadamente esperamos tomar lugar a teu lado. Quem enumera diante de ti seus próprios méritos, que mais expõe senão teus dons? Oh! Se os homens se reconhecessem como homens! Se quem se glorifica se glorificasse no Senhor! Por isso, Deus de meu coração, minha vida e minha gloria, esquecendo por um momento as boas ações de minha mãe, pelas quais te dou graças com alegria, peço-te agora perdão por seus pecados. Ouve-me pelos méritos daquele que é o médico de nossas feridas, que foi suspenso do madeiro da cruz e que, sentado agora à tua direita, intercede por nós junto a ti. Eu sei que ela sempre agiu com MISERICÓRDIA, e que perdoou de coração todas as faltas contra ela cometidas; perdoa-lhe também suas dívidas, se algumas contraiu em tantos anos que se seguiram ao batismo. Perdoa-lhe, Senhor, perdoa-lhe, te suplico, e não entres em juízo com ela. Confissões IX, XIII
Triunfe a MISERICÓRDIA sobre a justiça pois as tuas são palavras de verdade, e prometeste MISERICÓRDIA aos misericordiosos. Se alguém o foi, deve-o à tua graça, tu que tens compaixão de quem te apraz, e usas de MISERICÓRDIA com quem queres ser misericordioso. Confissões IX, XIII
Mas tu, Médico da minha alma, faze-me ver claramente a utilidade de meu propósito. As confissões de meus pecados passados — que já perdoaste e esqueceste, para me fazer feliz em ti, transformando minha alma com tua fé e teu sacramento — levam o coração dos que as leem e ouvem a não dormir no desespero dizendo: “Não posso”. Mas despertem para o amor pela tua MISERICÓRDIA e para a doçura de tua graça, que fortalece o fraco e este se dá conta de sua debilidade. Confissões X, III
Mas, Senhor meu — a quem todos os dias se confessa minha consciência, agora mais confiante com a esperança na tua MISERICÓRDIA que na sua inocência — que proveito haverá em confessar aos homens, na tua presença, neste livro, não o que fui, mas o que sou agora? Sobre a confissão do passado, e dos seus eventuais proveitos, já falei acima. Confissões X, III
E tu, Senhor, que te alegras com a fragrância de teu santo templo, tem piedade de mim, segundo tua grande MISERICÓRDIA por causa de teu nome, e tu, que jamais abandonas uma obra começada, aperfeiçoa em mim o que há de incompleto. Confissões X, IV
O que sei, Senhor, sem sombra de dúvida, é que te amo. Feriste meu coração com tua palavra, e te amei. O céu, a terra e tudo quanto neles existe, de todas as partes me dizem que te ame; nem cessam de repeti-lo a todos os homens, para que não tenham desculpas. Terás compaixão mais profunda de quem já te compadeceste; e usarás de MISERICÓRDIA com quem já foste misericordioso. De outro modo, o céu e a terra cantariam teus louvores a surdos. Confissões X, VI
Eis como esquadrinhei minha memória em tua procura, Senhor: não me foi possível encontrar-te fora dela. Nada encontrei de ti que não fosse lembrança, e nunca me esqueci de ti desde que te conheci. Onde encontrei a verdade, aí encontrei a meu Deus, que é a própria verdade; e desde que aprendi a conhecer a verdade, nunca mais a esqueci. Por isso, desde que te conheço, permaneces em minha memória. É lá que te encontro quando me lembro de ti e quando sou feliz em ti. Estas são as santas delicias que me deste em tua MISERICÓRDIA, olhando para minha pobreza. Confissões X, XXIV
Só na grandeza da Tua MISERICÓRDIA coloco toda minha esperança. Dai-me o que me ordenas e ordena-me o que quiserdes. Mandas que sejamos castos. “Sabendo, diz um sábio, que ninguém pode ser casto se Deus não lhe der este dom, já é sabedoria saber de quem procede este dom”. A continência reúne os elementos de nossa pessoa, reconduz-nos à unidade que perdemos dispersando-nos por tantas criaturas. Pouco te ama quem te ama juntamente com alguma criatura, e não a ama por tua causa. Confissões X, XXIX
Ouço a voz de meu Deus que ordena: “Não se façam pesados vossos corações com a intemperança e embriaguez”. A embriaguez está longe de mim; que tua MISERICÓRDIA não a deixe se aproximar. Mas a intemperança, ao contrário, chega às vezes a arrastar teu servo. Tua MISERICÓRDIA há de afastá-la de mim, porque ninguém pode ser temperante senão por tua graça. Confissões X, XXXI
Quanto à sedução dos perfumes, não me preocupo demais. Quando ausentes, não os procuro; quando presentes, não os recuso, mas estou sempre disposto a deles me abster. Pelo menos assim me parece, embora talvez me engane. Trevas deploráveis me envolvem, que me escondem minhas faculdades reais; por isso, quando meu espírito indaga à respeito de suas forças, bem sabe que não pode confiar em si mesmo, por seu íntimo permanecer muitas vezes insondável, até que a experiência lho manifeste. Ninguém pois se deve ter seguro nesta vida, que é tentação perpétua. Pois. Como podemos nos tornar melhores, não aconteça de nos tornar piores. Nossa única esperança, nossa única confiança, nossa firme promessa é tua MISERICÓRDIA. Confissões X, XXXII
Mesmo eu, que exponho e compreendo essas verdades, deixo-me enredar nessas belezas; mas tu me livras de seu laço, tu me libertas, porque tua MISERICÓRDIA está diante de meus olhos. Miseravelmente eu caio, e tu me levantas misericordiosamente, às vezes sem que eu o perceba, quando minha queda foi suave, e outras infligindo-me uma pena, por ter ficado preso ao chão. Confissões X, XXXIV
Dessas quedas está repleta minha vida, e minha única esperança está em tua infinita MISERICÓRDIA. Nosso coração é o receptáculo de tais misérias, e traz em si grande quantidade de vaidades, que muitas vezes até interrompem e perturbam nossas orações; e enquanto em tua presença levantamos a voz de nossa alma até teus ouvidos, tais pensamentos fúteis, vindos não sei de onde, vêm perturbar um ato tão importante. Confissões X, XXXV
Terei também essa miséria como desprezível? Haverá algo que possa restituir-me a esperança, a não ser tua conhecida MISERICÓRDIA, que começou a me transformar? Sabes o quanto já me transformaste; curaste-me primeiro da paixão da vingança, para perdoar-me também todos meus pecados, curar minhas fraquezas, resgatar minha vida da corrupção, conservar-me na piedade e MISERICÓRDIA, e saciar dos teus bens meu desejo. Derrubaste meu orgulho pelo temor, dobrando minha cerviz a teu jugo. Agora eu trago o teu jugo, e o sinto suave, como prometeste e cumpriste. Na verdade, teu jugo já era suave, mas eu não o sabia quando receava tomá-lo sobre mim. Confissões X, XXXVI
Sou pobre e necessitado, e só melhoro quando, com gemidos íntimos e com desagrado de mim mesmo, busco tua MISERICÓRDIA, até que minha indigência seja reparada e sanada com a paz que o olho soberbo ignora! Todavia, as palavras de nossa boca, ou nossos atos conhecidos dos homens, encerram uma tentação muito perigosa, filha do amor dos louvores que, para nos iludir com certa excelência, recolhe e mendiga os aplausos alheios. A vanglória me tenta até quando a critico em mim, e é por isso mesmo que eu a desaprovo. Muitas vezes, por excesso de vaidade, há quem se glorie até mesmo do desprezo da vanglória; mas de fato não é mais do desprezo da vanglória que se orgulha, porque ninguém a despreza quando se gloria de a desprezar. Confissões X, XXXVIII
O verdadeiro mediador que tua insondável MISERICÓRDIA enviou e revelou aos homens, para que aprendessem a humildade pelo seu exemplo, é esse mediador entre Deus e os homens, o homem Jesus Cristo. Apareceu como intermediário entre os pecadores mortais e o Justo imortal, mortal como os homens e justo como Deus. E, como a vida e a paz são a recompensa da justiça, pela justiça que o une a Deus ele suprimiu a morte entre os ímpios justificados, e quis compartilhá-la com eles. Foi revelado aos santos dos antigos tempos, para que eles se salvassem pela fé em sua paixão futura, como nós nos salvamos pela fé em sua paixão passada. De fato, só é mediador enquanto homem; enquanto Verbo não é intermediário, por ser igual a Deus: Deus em Deus e, ao mesmo tempo, Deus único. Confissões X, XLIII
Muitas coisas te narrei, conforme o pude e conforme o desejo de minha alma, porque o exigiste primeiro, para que te confessasse, Senhor, meu Deus, porque és bom, e porque tua MISERICÓRDIA é eterna. Confissões XI, I
Senhor meu Deus, ouve minha prece; que tua MISERICÓRDIA atenda ao meu desejo, pois não arde só por mim, mas também para servir ao amor fraternal, e bem vês em meu coração que é assim. Confissões XI, II
Vê, meu Deus, de onde nasce meu desejo. Os ímpios contaram-me suas alegrias, mas esses prazeres não são como os proporcionados por tua lei. É ela que inspira meu desejo. Olha, ó Pai, olha, e vê, e aprova. Queira tua MISERICÓRDIA que eu encontre graça diante de ti, e que os arcanos secretos de tuas palavras se abram a meu espírito que bate às suas portas! Isso eu te suplico por nosso Senhor, Jesus Cristo, teu filho, aquele que está sentado à tua direita, o Filho do homem, a quem estabeleceste como mediador entre nós e ti. Por ele nos procuraste quanto não te procurávamos, e nos procuraste para que te buscássemos! Em nome de teu Verbo, por quem criaste todas as coisas, e a mim entre outras; de teu Filho unigênito, por quem chamaste à adoção o povo dos crentes, no qual também estou. Confissões XI, II
É nesse princípio, ó Deus, que criaste o céu e a terra; em teu Verbo, em teu Filho, em tua virtude, em tua sabedoria, em tua verdade, falando e agindo de modo admirável. Quem o poderá compreender ou explicar? Que luz é essa que por vezes me ilumina, e que fere meu coração sem o lesar? Atemorizo-me e inflamo-me: tremo porque, de certo modo, sou tão diferente dela; e inflamo-me, porque também sou semelhante a ela. A Sabedoria é a mesma sabedoria que brilha em mim de quando em quando: ela rasga as nuvens de minha alma, que novamente me encobrem quando dela me afasto, pelas trevas e pelo peso de minhas memórias. Na indigência, meu vigor enfraqueceu de tal modo, que nem posso mais suportar o meu bem, até que tu, Senhor que te mostraste compassivo com todas minhas iniquidades, cures também todas as minhas fraquezas. Redimirás minha vida da corrupção; hás de me coroar na piedade e na MISERICÓRDIA, e saciarás com teus bens meus desejos, porque minha juventude será renovada com a da águia. Confissões XI, IX
Minha alma se inflama no desejo de deslindar este enigma tão complicado! Senhor, meu Deus, meu bom Pai, eu to suplico por Cristo; não queiras tolher a meu desejo a solução de tais problemas, tão familiares mas tão obscuros; permite que eu os penetre, e faze com que a luz de tua MISERICÓRDIA os ilumine, Senhor! A quem poderia eu consultar sobre isso? A quem confessaria minha ignorância com mais proveito do que a ti, que não se despraz com o forte zelo que me inflama por tuas Escrituras? Concede-me o que amo, pois este amor é um dom teu. Dá-me, ó Pai, esta graça, tu que sabes presentear com boas dádivas a teus filhos. Concede-me essa luz, porque determinei conhecê-las, e meu esforço será rude até que me reveles esses mistérios. Eu to suplico, por Cristo, em nome do Santo dos Santos, que ninguém perturbe minha investigação. Confissões XI, XXII
Mas porque tua MISERICÓRDIA é superior a todas as vidas, e eis que minha vida não é mais que distensão, e tua destra me acolheu em meu Senhor, o Filho do homem, mediador entre ti, que és uno, e nós, que somos muitos e vivemos divididos por diversas paixões. Assim. Por ele me unirei àquele, que por ele se uniu a nós, e liberto dos antigos dias, recolherei meu ser seguindo tua Unidade. Esquecido do passado, sem me preocupar com as coisas futuras e transitórias, atento apenas àquilo que é eterno, não com dispersão mas com todas as minhas forças buscarei a palma da vocação celeste, onde ouvirei a voz de teu louvor, e onde contemplarei tua alegria, que não conhece futuro nem passado. Confissões XI, XXIX
Quero discutir diante de ti apenas com os que reconhecem por verdadeiras as afirmações que tua verdade revelou à minha inteligência. Os que o negam, que ladrem quanto quiserem, até ficar roucos. Tentarei persuadi-los a que se acalmem, e deem acesso em seus corações à tua palavra. Se não o quiserem e me repelirem, peço-te, meu Deus, que não te cales, não te afastes de mim. fala com verdade em meu coração, porque só tu podes falar assim. E eu os deixarei fora, soprando o pó e levantando terra contra os próprios olhos. Retirar-me-ei em mim mesmo, levantando a ti cânticos de amor, soluçando altos gemidos durante meu exílio, lembrando-me de Jerusalém, voltando para ela meu coração — Jerusalém, minha pátria e minha mãe — e para ti, que reinas sobre ela, seu pai, sua luz, seu tutor, seu esposo, suas castas e grandes delícias, sua firme alegria, enfim, todos seus bens inefáveis, porque és o único, soberano e verdadeiro Bem. Não me apartarei de ti até que reúnas todas as partes dispersas e deformadas do meu ser na paz dessa mãe muito amada, onde estão as primícias de meu espírito, e de onde me vêm todas as certezas, e nela me reformes e confirmes por toda a eternidade, ó meu Deus, minha MISERICÓRDIA. Confissões XII, XVI
Eis que eu, meu Deus, teu servo, te consagrei nesta obra o sacrifício de minhas confissões; peço à tua MISERICÓRDIA que me permita a realização desse desejo, e declaro com toda segurança que criaste todas as coisas, as invisíveis e as visíveis, pelo teu verbo imutável. Confissões XII, XXIV
Eu te invoco, ó meu Deus, minha MISERICÓRDIA, que me criaste, e que não olvidaste aquele que te esqueceu. Chamo-te à minha alma, que preparas para te receber fazendo-te desejar por ela. Confissões XIII, I
Mas porque teu Espírito pairava sobre as águas, tua MISERICÓRDIA não abandonou nossa miséria, e disseste: “Faça-se a luz”. Fazei penitencia, porque está próximo o reino de Deus. Fazei penitencia, faça-se a luz! E porque tínhamos a alma conturbada, nos lembramos de ti, Senhor, às margens do Jordão, sobre essa montanha grande como tu, que te tornaste pequeno por nós. Confissões XIII, XII
Leem, escolhem, amam. Leem perpetuamente, e o que eles leem jamais fenece; escolhendo e amando, leem tua imutável vontade. Teu códice jamais de fecha, jamais se enrola, porque tu mesmo és eternamente esse livro; tu os estabeleceste acima deste firmamento, levantado por ti acima da fraqueza dos povos da terra, para que estes, olhando-o, reconheçam tua MISERICÓRDIA, que te anuncia no tempo, tu criador do tempo. Tua MISERICÓRDIA está no céu, e tua verdade se eleva até às nuvens. As nuvens passam, mas o céu permanece. Os que pregam tua palavra passam para uma outra vida, mas tua Escritura se estende sobre os povos até o fim dos séculos. Confissões XIII, XV
E a terra o produz; ao teu comando, ó Senhor que és seu Deus, nossa alma germina obras de MISERICÓRDIA, de acordo com sua condição: ela ama o próximo e vai em auxílio de suas necessidades materiais. Carrega em si a semente da compaixão, por uma semelhança de natureza, porque é o sentimento de nossa fraqueza que nos leva a compadecer as misérias dos que são necessitados, a socorrê-los, como desejaríamos que nos socorressem se tivéssemos as mesmas necessidades. E não se trata só de dar apoio fácil, como ervas nascidas de sementes, mas de proteção enérgica, vigorosa como a árvore que carrega frutos, símbolos das obras que arrebatam à mão do poderoso a vítima da injustiça, dando-lhe um abrigo à sombra protetora de um julgamento justo. Confissões XIII, XVII
Ele julga e aprova o que acha bom, e reprova o que acha mau, quer na celebração dos sacramentos, com que são iniciados os que na tua MISERICÓRDIA tira das águas profundas, quer no banquete em que se serve o peixe tirado das profundezas para alimento da terra fiel; quer nas palavras e expressões sujeitas à autoridade de teu Livro que, semelhantes aos pássaros, voam sob o firmamento: interpretações, exposições, discussões, bênçãos e invocações que brotam sonoras da boca, para que o povo responda: Amém! É necessário que essas palavras sejam enunciadas fisicamente, por causa do abismo do mundo e da cegueira da carne que, impossibilitada de ver o pensamento, tem necessidade de sons que firam os ouvidos. Assim, sem dúvida é sobre a terra que as aves se multiplicam, embora tenham suas origens na água. Confissões XIII, XXIII
Quer dizer, então, ó minha Luz, ó Verdade? Que tais palavras carecem de senso e foram ditas em vão? De nenhum modo, ó Pai de MISERICÓRDIA. Longe de mim, longe do servidor de teu Verbo, uma tal afirmação! Apenas não compreendo o sentido dessas palavras, e espero que os melhores que eu, ou seja, os mais inteligentes, a entendam melhor, segundo a sabedoria que deste, meu Deus, a cada um. Que te agrade ao menos a confissão, que faço diante de ti, de minha certeza de que não falaste em vão aquelas palavras. Confissões XIII, XXIV
E note ainda nisto, meu leitor. Há uma frase que a Escritura declara de uma só forma, e que a voz fala apenas dessa maneira: “No princípio criou Deus o céu e a terra” — E não pode a frase ser interpretada diversamente — descartando o erro ou o sofisma — conforme os diversos pontos de vista legítimos? É assim que crescem e se multiplicam as gerações dos homens! Se consideramos a natureza das coisas, não alegoricamente, mas em sentido próprio, a sentença: “Crescei e multiplicai-vos” — se aplica a todas as criaturas que nascem de uma semente. Se, ao contrário, a interpretamos em sentido figurado, como penso que foi a intenção da Escritura, que não limita inutilmente essa benção aos peixes e aos homens, encontramos então multidões de criaturas espirituais e temporais, como no céu e na terra; de almas justas e injustas, como na luz e nas trevas; de escritores sagrados que nos anunciaram a Lei, como no firmamento estabelecido entre as águas; na sociedade amargurada dos povos, como no mar; no zelo das almas piedosas, como em terra enxuta; nas obras de MISERICÓRDIA praticadas nesta vida, como nas plantas que nascem de semente e nas árvore frutíferas; nos dons espirituais concedidos para o bem de todos, como nos luminares do céu; nas paixões dominadas pela temperança, como na alma viva. Em todas essas coisas encontramos multidões, fecundidade, crescimento. Mas que esse crescimento e essa proliferação exprimam uma mesma ideia de vários modos e que uma só expressão possa ser entendida de muitas maneiras, esse fato, apenas o encontramos nos sinais sensíveis e nos conceitos intelectuais. Confissões XIII, XXIV
Tu nos deste para alimento todas as ervas que produzem semente e que cobrem a terra, e todas as árvore que contém em si, em germe, seus frutos. E não foi somente a nós que deste esse alimento, mas também às aves do céu, aos animais da terra e aos répteis, mas não aos peixes e aos grandes cetáceos. Dizíamos que esses frutos da terra significam e representam alegoricamente as obras de MISERICÓRDIA, que a terra fecunda produz para as necessidades desta vida. Era semelhante a uma terra assim o piedoso Onesíforo, cuja casa recebeu a graça de tua MISERICÓRDIA, porque muitas vezes assistira a teu Paulo, sem se envergonhar por suas cadeias. Confissões XIII, XXV
Também meditei sobre o significado simbólico da ordem pela qual se fez tua criação e da ordem pela qual a Escritura relata. Vimos que tuas obras, consideradas cada uma em si, são boas, e em seu conjunto, muito boas. Em teu Verbo, em teu Filho único, vimos o céu e a terra, a cabeça e o corpo da Igreja, predestinadas antes de todos os tempos, quando ainda não havia nem manhã, nem tarde. Depois começaste a executar no tempo o que predestinaste antes do tempo, a fim de revelar teus desígnios ocultos e de dar ordem às nossas desordens — porque pesavam sobre nós nossos pecados, e nos perdíamos longe de ti em voragens de trevas. Teu Espírito misericordioso pairava sobre nós, para nos socorrer no momento oportuno. Justificaste os ímpios; tu os separaste dos pecadores e confirmaste a autoridade de teu Livro entre os superiores, que te eram dóceis, e os inferiores, para que a eles se submetessem. Reuniste em um corpo único, de mesmas aspirações, a sociedade dos infiéis, para que aparecesse o zelo dos fiéis fecundo em obras de MISERICÓRDIA, e distribuindo aos pobres os bens da terra para adquirir os do céu. Confissões XIII, XXXIV