Agostinho: mim

E como invocarei meu Deus, meu Deus e meu Senhor, se ao invocá-lo o faria certamente dentro de MIM? E que lugar há em MIM para receber o meu Deus, por onde Deus desça a MIM, o Deus que fez o céu e a terra? Senhor, haverá em MIM algum espaço que te possa conter? Acaso te contêm o céu e a terra, que tu criaste, e dentro dos quais também criaste a MIM? Será, talvez, pelo fato de nada do que existe sem Ti, que todas as coisas te contêm? E, assim, se existo, que motivo pode haver para Te pedir que venhas a MIM, já que não existiria se em MIM não habitásseis? Confissões I, II

Eu nada seria, meu Deus, nada seria em absoluto se não estivesses em MIM; talvez seria melhor dizer que eu não existiria de modo algum se não estivesse em ti, de quem, por quem e em quem existem todas as coisas? Assim é, Senhor, assim é. Como, pois, posso chamar-te se já estou em ti, ou de onde hás de vir a MIM, ou a que parte do céu ou da terra me hei de recolher, para que ali venha a MIM o meu Deus, ele que disse: Eu encho o céu e a terra? Confissões I, II

Quem me dera descansar em ti! Quem me dera que viesses a meu coração e que o embriagasses, para que eu me esqueça de minhas maldades e me abrace contigo, meu único bem! Que és para MIM? Tem piedade de MIM, para que eu possa falar. E que sou eu para ti, para que me ordenes amar-te e, se não o fizer, irar-te contra MIM, ameaçando-me com terríveis castigos? Acaso é pequeno o castigo de não te amar? Ai de MIM! Dize-me por tuas misericórdias, meu Senhor e meu Deus, que és para MIM? Dize a minha alma: Eu sou a tua salvação. Que eu ouça e siga essa voz e te alcance. Não queiras esconder-me teu rosto. Morra eu para que possa vê-lo para não morrer eternamente. Confissões I, V

Estreita é a casa de minha alma para que venhas até ela: que seja por ti dilatada. Está em ruínas; restaura-a. Há nela nódoas que ofendem o teu olhar: confesso-o, pois eu o sei; porém, quem haverá de purificá-la? A quem clamarei senão a ti? Livra-me, Senhor, dos pecados ocultos, e perdoa a teu servo os alheios! Creio, e por isso falo. Tu o sabes, Senhor. Acaso não confessei diante de ti meus delitos contra MIM, ó meu Deus? E não me perdoaste a impiedade de meu coração? Não quero contender em juízos contigo, que és a verdade, e não quero enganar-me a MIM mesmo, para que não se engane a si mesma minha iniquidade. Não quero contender em juízos contigo, porque, se dás atenção às iniquidades, Senhor, quem, Senhor, subsistirá? Confissões I, V

Permita, porém, que eu fale em presença de tua misericórdia, a MIM, terra e cinza; deixa que eu fale, porque é à tua misericórdia que falo, e não ao homem, que de MIM escarnece. Talvez também tu te rias de MIM, mas, voltado para MIM, terás compaixão. Confissões I, VI

E que pretendo dizer-te, Senhor, senão que ignoro de onde vim para aqui, para esta não sei se posso chamar vida mortal ou morte vital? Não o sei. Mas receberam-me os consolos de tuas misericórdias, conforme o que ouvi de meus pais carnais, de quem e em quem me formaste no tempo, pois eu de MIM nada recordo. Receberam-me os consolos do leite humano, do qual nem minha mãe, nem minhas amas enchiam os seios; mas eras tu que, por meio delas, me davas aquele alimento da infância, de acordo com o seu desígnio, e segundo os tesouros dispostos por ti até no mais íntimo das coisas. Confissões I, VI

Depois também comecei a rir, primeiro dormindo, depois acordado. Isto disseram de MIM, e o creio, porque o mesmo acontece com outros meninos, pois eu não tenho a menor lembrança dessas coisas. Confissões I, VI

Minha infância morreu há muito tempo, mas eu continuo vivo. Mas, dize-me, Senhor, tu que sempre vives, e em quem nada falece — porque existias antes do começo dos séculos, e antes de tudo o que há de anterior, e és Deus e Senhor de todas as coisas; e esse encontram em ti as causas de tudo o que é instável, e em ti permanecem os princípios imutáveis de tudo o que se transforma, e vivem as razões eternas de tudo o que é transitório — dize-me a MIM, eu to suplico, ó meu Deus, diz-me, misericordioso, a MIM que sou miserável, dize-me: porventura a minha infância sucedeu a outra idade minha, já morta? Será esta aquela que vivi no ventre de minha mãe? Porque também desta me revelaram algumas coisas, e eu mesmo já vi mulheres grávidas. Confissões I, VI

E antes desse tempo, minha doçura e meu Deus, que era eu? Fui alguém, ou era parte de alguma coisa? Dize-mo, porque não tenho quem me responda, nem meu pai, nem minha mãe, nem a experiência dos outros, nem minha memória. Acaso te ris de MIM, porque desejo saber estas coisas, e me mandas que te louve e te confesse pelo que conheci de ti? Confissões I, VI

Acaso alguma criança pequena de hoje, em quem vejo a imagem do que não recordo de MIM? E em que eu poderia pecar nesse tempo? Acaso por desejar o peito da nutriz, chorando? Se agora eu suspirasse com a mesma avidez, não pelo seio materno, mas pelo alimento próprio da minha idade, seria justamente escarnecido e censurado. Logo, era então digno de repreensão o meu proceder; mas como não podia entender a censura, nem o costume nem a razão permitiam que eu fosse repreendido. Prova está que, ao crescermos, extirpamos e afastamos de nós essa sofreguidão; e jamais vi homem sensato que, para limpar uma coisa viciosa, prive-a do que tem de bom. Confissões I, VII

Acaso não foi caminhando da infância até aqui que cheguei à puerícia? Ou melhor, esta veio a MIM e suplantou à infância sem que esta fosse embora, pois, para onde poderia ir? Confissões I, VIII

Contudo deixou de existir, porque eu já não era um bebezinho que não falava, mas um menino que aprendia a falar. Disso me recordo; mas como aprendi a falar, só mais tarde é que vim a perceber. Não mo ensinaram os mais velhos apresentando-me as palavras com certa ordem e método, como logo depois fizeram com as letras; mas foi por MIM mesmo, com o entendimento que me deste, meu Deus, quando queria manifestar meus sentimentos com gemidos, gritinhos, e vários movimentos do corpo, a fim de que atendessem meus desejos; e também ao ver que não podia exteriorizar tudo o que queria, nem ser compreendido por todos aqueles a quem me dirigia. Confissões I, VIII

Mas, por sorte, encontrei homens que te invocavam, Senhor, e com eles aprendi a te sentir, quanto possível, como a um Ser grande que podia escutar-nos e vir em nosso auxílio, embora sem a percepção dos sentidos. Ainda menino, pois, comecei a invocar-te como refúgio e amparo e, para te invocar, desatei os nós de minha língua; e, embora pequeno, te rogava já com grande fervor para que não me açoitassem na escola. E quando não me escutavas, o que servia para meu proveito os mestres, assim como meus próprios pais, que certamente não desejavam o meu mal, riam-se daquele castigo, que então era para MIM grave suplício. Confissões I, IX

Nesta época eu já tinha verdadeira, juntamente com minha mãe e com todos da casa, à exceção de meu pai, que, porém, não pôde vencer em MIM a ascendência da piedade materna, para que deixasse de acreditar em Cristo, tal como ele não acreditava; minha mãe, solícita, cuidava de que tu, meu Deus, fosses mais pai para MIM do que ele, e a ajudavas a triunfar do marido, a quem servia melhor, porque nele te servia a ti e a tuas ordens. Confissões I, XI

Quanto melhor teria sido para MIM receber logo a saúde, e que meus cuidados e os dos meus fossem empregados em conservar intacta debaixo da tua proteção a saúde da minha alma, que me havias concedido! Melhor fora, certamente; porém, como minha mãe, sem dúvida, já previa quantas e quão grandes ondas de tentações me ameaçariam depois da meninice, preferiu expor-me a elas como terra grosseira que depois receberia forma, do que expor-me já como imagem tua. Confissões I, XI

Nesta minha infância, na qual eu tinha menos que temer por MIM do que em minha adolescência, eu não gostava dos estudos, e odiava que a eles me obrigassem. Contudo, era coagido, e me faziam grande bem. Quem não procedia bem era eu, que não estudava a não ser constrangido, pois ninguém faz bem o que faz contra a vontade, mesmo que seja bom o que faz. Confissões I, XII

Não gritem contra MIM aqueles mestres a quem já não temo, enquanto confesso a ti os desejos de minha alma, e aborreço dos meus maus caminhos, a fim de amar os teus. Não gritem contra MIM os comerciantes da gramática, pois, se eu os interrogar sobre se é verdade que Eneias veio uma vez a Cartago, como afirma o poeta, os néscios responderão que não sabem, e os sábios negarão o fato. Porém, se lhes perguntar como se escreve o nome de Eneias, todos os que estudaram me responderão a mesma coisa, de acordo com a convenção com que os homens fixaram o valor das letras do alfabeto. Confissões I, XIII

Do mesmo modo, se lhes perguntar o que seria mais prejudicial para a vida humana: esquecer o ler e o escrever, ou todas as ficções dos poetas, quem não vê o que logo responderia aquele que não estivesse de tudo esquecido de ti? Pequei, pois, em minha infância, ao preferir vãos aos proveitosos, ou para dizer melhor, ao amar àqueles e ao odiar a estes; era para MIM uma cantiga odiosa aquele “um e um, dois; dois e dois, quatro; enquanto considerava espetáculo encantador a história do cavalo de madeira cheio de guerreiros e o incêndio de Tróia, “e até a sombra de Creuza”. Confissões I, XIII

Por que então aborrecia eu a literatura grega na qual se cantam tais coisas? Porque também Homero é mui habilidoso em tecer essas historietas, dulcíssimo na sua frivolidade, embora para MIM, menino, fosse bem amargo. Creio que o mesmo ocorra com Virgilio para os meninos gregos obrigados a estudá-lo, como a MIM com relação a Homero. Era a dificuldade de ter de aprender totalmente uma língua estranha que, como fel, aspergia de amargura todas as doçuras das fábulas gregas. Confissões I, XIV

Digo e confesso diante de ti, meu Deus, essas misérias, que me angariavam o louvor daqueles cuja simpatia equivalia para MIM a uma vida honesta, pois não via o abismo pois não via o abismo de torpeza em que tudo isso me lançara, longe dos teus olhos. A teus olhos quem era mais repelente do que eu? E eu até desagradava tais homens, enganando com infinidade de mentiras a meus criados, mestres e pais por amor dos jogos, por gosto de ver espetáculos frívolos e o desejo inquieto de os imitar. Confissões I, XIX

Também cometia furtos na despensa e na mesa de meus pais, ora impelido pela gula, ora para ter de dar aos meninos para brincar com eles, folguedos que os deleitavam tanto quanto a MIM, e que eles me faziam pagar. No jogo, frequentemente, conseguia vitórias fraudulentas, vencido pelo desejo de me sobressair. Contudo, nada havia que eu quisesse mais evitar e que eu repreendesse mais atrozmente se o descobrisse em outros, que o mesmo eu fazia aos demais. Confissões I, XIX

Não queria ser enganado, tinha boa memória, e me ia instruindo com a conversação. Alegrava-me com a amizade, fugia à dor, ao desprezo, à ignorância. E não seria isto, em tal criatura, digno de admiração e de louvor? Pois todas essas coisas são dons do meu Deus, que eu não dei a MIM mesmo. E todos são bons, e tudo isso constitui o meu eu. Confissões I, XX

O que me criou, portanto, é bom, e ele próprio é o meu bem; a ele louvo por todos estes bens que integravam meu ser de criança. Eu pecava em buscar em MIM próprio e nas demais criaturas, e não nele, os deleites, grandezas e verdades; por isso caia logo em dores, confusões e erros. Confissões I, XX

Graças a ti, minha doçura, minha esperança e meu Deus, graças a ti por teus dons; que eles fiquem em ti conservados. Assim me guardarás também a MIM, e aumentarão e aperfeiçoarão os dons que me deste, e eu estarei contigo, porque também me deste a existência. Confissões I, XX

Tempo houve de minha adolescência em que ardi em desejos de me fartar dos prazeres mais baixos, e ousei a bestialidade de vários e sombrios amores, e se murchou minha beleza, e me transformei em podridão diante de teus olhos, para agradar a MIM mesmo e desejar agradar aos olhos dos homens. Confissões II, I

E que me deleitava, senão amar e ser amada? Mas eu não era moderado, indo de alma para alma de acordo com os sinais luminosos da amizade, pois, da lodosa concupiscência de minha carne e do fervilhar da puberdade levantava-se como que uma névoa que obscurecia e ofuscava meu coração, a ponto de não discernir a serena amizade da tenebrosa libido. Uma e outra, confusamente, me abrasavam; arrastavam minha fraca idade pelo declive íngreme de meus apetites, afogando-me em um mar de torpezas. Tua ira se acumulava sobre MIM, e eu não o sabia. Ensurdeci com o ruído da cadeia de minha mortalidade, e cada vez mais me afastava de ti, e tu o consentias; e me agitava, e me dissipava, e me derramava e fervia em minha devassidão, e tu te calavas — ó alegria que tão tarde encontrei! — tu te calavas então, e eu ia cada vez mais para longe de ti, sempre atrás de estéreis sementes de dores, com vil soberba e inquieto cansaço. Confissões II, II

Mas onde estava eu? Oh! Quão longe, exilado das delicias de tua casa naqueles meus dezesseis anos de idade carnal, quando esta empunhou seu cetro sobre MIM, e eu me rendi totalmente a ela, à fúria da concupiscência que a degradação humana legítima, porém, ilícita, de acordo com as tuas leis. Confissões II, II

Ai de MIM! Como me atrevo a dizer que te calavas quando me afastava de ti? Seria verdade que então te calavas comigo? E de quem eram, senão tuas, aquelas palavras que pela boca de minha mãe, tua serva fiel, sussurraste em meus ouvidos, embora nenhuma delas penetrasse no meu coração, para que a cumprisse? Confissões II, III

Nem então minha mãe carnal, que já fugira do meio da Babilônia, mas que em outras coisas caminhava mais devagar, cuidou — como fizera ao aconselhar-me a castidade — de conter com os laços do matrimonio aquilo de que seu marido lhe falara a meu respeito. Já percebera ela que me era pestilento, e que mais adiante me seria perigoso — já que essa paixão não podia ser cortada pela raiz. Não pensou nisso, digo, por temer que o vínculo matrimonial frustrasse a esperança que sobre MIM acalentava; não a esperança da vida futura, que ela já tinha posto em ti, mas a esperança das letras que ambos, meu pai e minha mãe, desejavam ardentemente; meu pai, porque não pensava quase nada de ti, mas apenas ambições vãs a meu respeito; minha mãe, porque considerava que tais tradicionais estudos das letras não só não me seriam de estorvo, sendo de não pouca ajuda para chegar a ti. Assim julgo eu, agora, enquanto me é possível pela lembrança, o caráter de meus pais. Confissões II, III

Aquele, pois, que, chamado por ti, seguiu tua voz e evitou todas estas coisas que lê de MIM, e que eu recordo e confesso, não se ria de MIM por haver sido curado pelo mesmo médico que o preservou de cair enfermo, ou melhor, de que adoecesse tanto. Antes, esse deve amar-te tanto e ainda mais do que eu, porque o mesmo que me curou de tantas e tão graves enfermidades, esse mesmo o livrou de cair no pecado. Confissões II, VII

Porém, por que me deleitava o não perpetrar sozinho o roubo? Acaso alguém se ri facilmente quando está só? Ninguém o faz, é verdade; porém, também é verdade que às vezes o riso tenta e vence aos que estão sós, sem que ninguém os veja, quando se oferece aos sentidos ou à alma algo extraordinariamente ridículo. Porque a verdade é que eu sozinho nunca teria feito aquilo; não, eu sozinho jamais faria aquilo. Tenho viva, diante de MIM, meu Deus, a lembrança daquele estado de alma, e repito que eu sozinho não teria cometido aquele furto, do qual não me deleitava o objeto, mas a razão do roubo, o que, sozinho, não me teria agradado de modo algum, nem eu o teria feito. Confissões II, IX

Quem desatará este nó, tão enredado e emaranhado? Como é asqueroso! Não quero voltar para ele os olhos, não quero vê-lo. Só a ti quero, justiça e inocência, tão bela e graciosa aos olhos puros, e com insaciável saciedade. Só em ti se acha o descanso supremo e a vida imperturbável. Quem entra em ti, entra no gozo do seu Senhor, e não temerá, e estará perfeitamente bem no sumo bem. Eu me afastei de ti e andei errante, meu Deus, mui longe de teu esteio em minha adolescência, e cheguei a ser para MIM mesmo uma região de esterilidade. Confissões II, X

Cheguei a Cartago, e por toda parte fervilhava a sertã de amores impuros. Ainda não amava, mas já gostava de amar; secretamente sedento, aborrecia a MIM próprio por não me sentir mais indigente de amor. Gostando do amor buscava o que amar, e odiava a segurança e os meus caminhos sem perigos, porque tinha dentro de MIM fonte de alimento interior, de ti mesmo, ó meu Deus. Eu não sentia essa fonte como tal; antes, estava sem apetite algum dos manjares incorruptíveis, não porque estivesse saciado deles, mas porque, quanto mais vazio, tanto mais enfastiado me sentia. Confissões III, I

Amar e ser amado era para MIM a coisa mais doce, sobretudo se podia gozar do corpo da criatura amada. Deste modo manchava com torpe concupiscência a fonte da amizade, e obscurecia seu candor com os vapores infernais da luxúria. E apesar de tão torpe e impuro, desejava com afã e cheio de vaidade, passar por afável e cortês. Confissões III, I

Mas, que admira que eu, infeliz ovelha transviada de teu rebanho, por não aceitar tua proteção, estivesse atacado de ronha asquerosa? De aqui nasciam, sem dúvida, os desejos daquelas emoções de dor que, todavia, não queria que fossem muito profundas em MIM, porque não desejava padecer coisas como as que via representadas. Comprazia-me que aquelas coisas, ouvidas ou fingidas, me tocassem só superficialmente. Mas, como acontece aos que coçam a ferida com as unhas, terminava por provocar em MIM mesmo um tumor abrasador, podridão e pus repelente. Confissões III, II

Entretanto, tua misericórdia, fiel, de longe pairava sobre MIM. Em quantas iniquidades não me corrompi, meu Deus, levado por sacrílega curiosidade que, separando-me de ti, conduzia-me aos mais baixos, desleais e enganosos serviços aos demônios, a quem sacrificava minhas más ações, sendo em todas flagelado com duro açoite por ti! Também ousei apetecer ardentemente e procurar meios para conseguir os frutos da morte na celebração de teus mistérios, dentro dos muros de tua igreja. Por isso me açoitaste com duras penas, que nada eram comparadas com minhas culpas, ó Deus, misericórdia infinita, e meu refúgio contra os terríveis malfeitores, com os quais vaguei de cabeça erguida, afastando-me cada vez mais de ti, preferindo meus caminhos aos teus, amando a liberdade fugitiva! Os estudos a que era entregue, que se denominavam honestos ou nobres, tinham por objetivo as contendas do foro, nas quais deveria me distinguir com tanto maior louvor quanto mais hábeis fossem as mentiras. Tal é a cegueira dos homens, que até de sua própria cegueira se gloriam! Eu já conseguira, naquele tempo, ser o primeiro da escola de retórica, e por isso me vangloriava soberbamente, e me inflava de orgulho. Contudo, tu sabes, Senhor, que eu era muito mais sossegado que os demais, e totalmente alheio às turbulências dos eversores — ou demolidores — nome sinistro e diabólico que eles consideravam distintivo de urbanidade, entre os quais vivia com imprudente pudor por não pertencer a seu grupo. É verdade que andava com eles, e que me deleitava, às vezes, com sua amizade, porém, sempre aborreci o que faziam, como as troças e a insolência com que surpreendiam e ridicularizavam a timidez dos novatos, sem outra finalidade senão rir de suas trapalhadas, fazendo disso alimento para suas malévolas alegrias. Nada há mais parecido a estas ações que as dos demônios, pelo que nenhum nome lhes cai melhor que o de eversores ou demolidores, por serem eles transformados e pervertidos totalmente pelos espíritos malignos, que assim os burlam e enganam, sem que o saibam, justamente no que eles gostam de ludibriar ou enganar os demais. Confissões III, III

Como ardia, meu Deus, como ardia meus desejos de voar para ti das coisas terrenas, sem que eu soubesse o que obravas em MIM! Porque em ti está a sabedoria, pela qual aquelas páginas me apaixonavam. Não faltam os que nos iludam servindo-se da filosofia, colocando ou encobrindo seus erros com nome tão grande, tão doce e honesto. Mas quase todos os que assim fizeram em seu tempo e em épocas anteriores, são apontados e refutados nesse livro. Também se encontra ali bem claro aquele salutar aviso de teu Espírito, dado por meio de teu servo bom e piedoso (Paulo): Vede que ninguém vos engane com vãs filosofias e argúcias sedutoras, de acordo com a tradição dos homens e os ensinamentos deste mundo, e não de acordo com Cristo, porque é nele que habita corporalmente toda a plenitude da divindade. Confissões III, IV

Mas onde estavas então para MIM? e quão longe peregrinava eu, longe de ti, privado até as bolotas com que eu alimentava os porcos! Quão melhores eram as fábulas dos gramáticos e poetas que todos aqueles enganos! Porque os versos, a poesia e a fábula de Medeia soando pelo ar são certamente mais úteis que os cinco elementos do mundo em seus mil disfarces, conforme os cinco antros de trevas, que não existem, mas que matam a quem nele acredita. Porém, versos e poesia eu os posso converter em iguaria para meu espírito e, quanto ao voo de Medeia, se o recitava bem, não lhe afirmava veracidade e, se me agradava ouvi-lo, não lhe dava crédito. Mas — ai de MIM! — eu acreditei naqueles erros dos maniqueístas. Confissões III, VI

Ai de MIM, por que degraus fui descendo até a profundidade do abismo, exaurido e devorado pela falta de verdade quando te buscava! E tudo isso, meu Deus — a quem me confesso porque te compadeceste de MIM quando ainda não te conhecia — tudo por buscar-te, não com a inteligência — com a qual quiseste que eu fosse superior aos animais — mas com os sentidos da carne. E tu estavas dentro de MIM, mais profundo do que o que em MIM existe de mais íntimo, e mais elevado do que o que em MIM existe de mais alto. Confissões III, VI

Assim encontrei aquela mulher insolente e sem prudência — enigma de Salomão — que, sentada em uma cadeira à porta de sua casa, diz aos que passam: Comei à vontade dos pães escondidos, e bebei da doçura da água roubada, a qual me seduziu por andar eu vagando fora de MIM, sob o império da vista carnal, ruminando em meu íntimo o que meus olhos haviam devorado. Confissões III, VI

Desconhecendo eu essas verdades, ria-me de teus santos e profetas. Mas, que fazia eu quando me ria deles, senão dar motivo para que te risses de MIM? deixei-me cair insensivelmente, aos poucos, em tais extravagâncias, a ponto de acreditar que o figo, quando colhido, chora lágrimas de leite junto com a mãe figueira, e que se um “santo” da seita comesse o tal figo, colhido não por seu delito, mas de outrem, misturando-o em suas entranhas, gemendo e arrotando enquanto rezava, exalaria anjos e até mesmo partículas de Deus, partículas essas do verdadeiro Deus que ficariam cativas para sempre naquele fruto se não fossem libertadas pelos dentes e pelo estômago do “santo eleito”! Também acreditei, pobre de MIM, que se devia ter mais misericórdia com os frutos da terra que com os homens para os quais foram criados. Pois, se algum faminto, que não fosse maniqueísta me pedisse de comer, parecia-me que atendê-lo era como merecer, por aquele bocado, a pena de morte. Confissões III, X

Seguiram-se, efetivamente, quase nove anos, durante os quais continuei a me revolver naquele abismo de lodo e trevas de erro, afundando-me tanto mais quanto mais esforços fazia para me libertar. Entretanto, aquela piedosa viúva, casta e sóbria como as que tu amas, já um pouco mais alegre com a esperança, porém, não menos solícita em suas lágrimas e gemidos, não cessava de chorar por MIM em tua presença em todas as horas de suas orações; e suas preces eram aceitas a teus olhos, mas deixava-me ainda revolver-me e envolver-me naquela escuridão. Confissões III, XI

Durante esse período de nove anos — dos dezenove até os vinte e oito anos — fui seduzido e sedutor, enganado e enganador, conforme minhas muitas paixões; publicamente, com aquelas doutrinas que se chamam liberais; ocultamente, com o falso nome de religião, mostrando-me aqui soberbo, ali supersticioso, e em toda parte vaidoso. Ora perseguindo a aura da gloria popular até os aplausos do teatro, os certames poéticos, os torneios de coroas de feno, as bagatelas de espetáculos e a intemperança da luxúria; ora, desejando muito purificar-me dessas imundícies, levando alimento aos chamados “eleitos” e “santos”, para que na oficina de seu estômago fabricasse anjos e deuses que me libertassem. Tais coisas seguia eu e praticava com meus amigos, iludidos comigo e por MIM. Confissões IV, I

Riam-se de MIM os arrogantes, e os que ainda não foram prostrados e salutarmente esmagados por ti, meu Deus; mas eu, pelo contrário, hei de confessar diante de ti minhas torpezas para teu louvor. Permite-me, te suplico, e concede-me que me lembre fielmente dos desvios passados de meu erro, e que eu te sacrifique uma vítima de louvor. Confissões IV, I

De fato, sem ti, que sou eu para MIM mesmo senão um guia que conduz ao abismo? Ou que sou eu, quando tudo me corre bem, senão uma criança que suga o leite, e que se alimenta de ti, alimento incorruptível? E que é o homem, seja ele quem for, se é homem? Confissões IV, I

Lembro-me também de que, querendo participar de um certame de poesia, um arúspide mandou-me indagar que dádiva lhe daria para eu sair vencedor. Mas eu, que abominava aqueles nefandos sortilégios, respondi-lhe que não consentiria que se matasse uma mosca para obter a vitória, mesmo que o prêmio fosse uma coroa de ouro incorruptível; sabia eu que ele teria de matar animais em seus sacrifícios, julgando com tais honras assegurar para MIM os votos do demônio. Confissões IV, II

Por isso, não cessava de consultar os impostores chamados matemáticos, já que estes não usavam em suas adivinhações de quase nenhum sacrifício, nem dirigiam preces a nenhum espírito o que, consequentemente, é condenado e repelido com razão pela piedade cristã e verdadeira. Porque o bom é confessar-te, Senhor, e dizer-te: Tem misericórdia de MIM, e cura minha alma, porque pecou contra ti, e não abusar da tua indulgência para pecar mais livremente, mas ter sempre presente a sentença do Senhor: Eis-te curado: não peques mais, para que te não suceda algo pior — Estas palavras, cujo efeito salutar os astrólogos querem destruir, dizendo: “O impulso de pecar vem dos céus; foi Vênus, Saturno ou Marte que fizeram isto” — e tudo para que o homem, que é carne, e sangue, e soberba podridão, se sinta sem culpa, e atribua esta ao criador e ordenador do céu e das estrelas. E quem é este, senão tu, nosso Deus, suavidade e fonte de justiça, que dás a cada um de acordo com suas obras, e não desprezas ao coração contrito e humilhado? Confissões IV, III

Contudo, deixaste acaso de cuidar de MIM também por meio daquele ancião? Ou talvez desistisse de curar minha alma? Tendo-me familiarizado muito com ele, passei a ser assistente assíduo e frequente de suas conversas, que eram agradáveis e graves, não pela elegância da linguagem, mas pela vivacidade das sentenças. Assim que ficou sabendo, por conversa, que eu me dedicava à leitura dos livros dos astrólogos, admoestou-me benigna e paternalmente a que os deixasse, e a que não gastasse inutilmente nessas quimeras meus cuidados e trabalho, que melhor empregaria em coisas úteis. Acrescentou que também ele havia cultivado aquela arte, a ponto de querer adotá-la, em sua juventude, como profissão para ganhar a vida, pois, se havia entendido Hipócrates, podia também entender aqueles livros; por fim, deixara aqueles estudos pelos da medicina, por causa da sua falsidade, não querendo, como homem sério, ganhar o pão enganando os outros. “Mas tu, disse-me ele — que tens para manter entre os homens tuas aulas de retórica, segues essas mentiras não por necessidade, mas por mera curiosidade; mais um motivo para que acredites no que te digo, pois cuidei de aprendê-la tão perfeitamente que quis viver apenas de seu exercício”. Confissões IV, III

Mas eis que, seguindo de perto no encalço de teus servos fugitivos, ó Deus das vinganças, que és a um tempo fonte de misericórdia, e nos converte a ti por estranhos caminhos, eis que tu o arrebataste desta vida, quando eu apenas havia gozado um ano de sua amizade, mais doce para MIM que todas as doçuras da minha vida. Confissões IV, IV

Que dor fez anoitecer o meu coração! Tudo o que via era morte para MIM. a pátria me era um suplício, e a casa paterna tormento insuportável, e tudo o que o lembrava transformava-se para MIM em crudelíssimo martírio. Buscavam-no por toda parte meus olhos, e o mundo não mo devolvia. Cheguei a odiar todas as coisas, porque nada o continha, e ninguém mais me podia dizer como antes, quando chegava depois de alguma ausência: “Ali vem ele”. Transformara-me mesmo num grande problema. Perguntava à minha alma porque andava triste, e se perturbava tanto, e ela não sabia o que responder-me. E se eu lhe dizia: “Espera em Deus” — minha alma não me obedecia, e com razão, porque para MIM, era mais real e melhor o amigo querido que perdera, que o fantasma em que mandava tivesse esperança. Só o pranto me era doce. Ocupava o lugar de meu amigo nas delicias de meu coração. Confissões IV, IV

Mas para que falar dessas coisas, se agora não é tempo de investigar, mas de me confessar a ti? Eu era miserável, como o é toda alma prisioneira do amor pelas coisas temporais; se sente despedaçar quando as perde, sentindo então sua miséria, que a torna miserável antes mesmo de as perder. Assim é como eu era então e, chorando muito amargamente, descansava na amargura. E como era miserável! Contudo, mais que o amigo caríssimo, eu amava minha vida miserável, porque embora desejasse mudá-la, não queria perdê-la como ao amigo, não sei se gostaria de perdê-la por ele, como se conta de Orestes e Pílades — se não é ficção — que queriam morrer um pelo outro, porque para eles viver separados era pior que a morte. Mas não sei que novo sentimento nascera em MIM, muito contrário a este: sentia pesado tédio de viver, e ao mesmo tempo tinha medo de morrer. Creio que quanto mais amava o amigo tanto mais odiava e temia a morte, como inimigo feroz que mo havia arrebatado; pensava que ela acabaria de repente com todos os homens, como o fizera com ele. Este era meu estado de espírito, pelo que me lembro. Confissões IV, VI

Ó loucura, que não sabe amar os homens humanamente! Ó homem insensato, que sofre desmedidamente os reveses humanos! Assim era eu então, e assim agitava-me, suspirava, chorava, perturbava-me, e não encontrava descanso nem conselho. Trazia a alma em farrapos e ensanguentada, indócil ao meu governo, e eu não encontrava lugar onde a pudesse depor. Nem os bosques amenos, nem os jogos e cantos, nem os lugares suavemente perfumados, nem os banquetes suntuosos, nem os prazeres da alcova e do leito, nem, finalmente, os livros e os versos podiam dar-lhe descanso. Tudo me causava horror, até a própria luz. Tudo o que não era o que ele era, era-me insuportável e odioso, exceto gemer e chorar, pois, somente nisto achava algum repouso. E se minha alma deixava de chorar, logo pesava sobre MIM o grande fardo da desgraça. Confissões IV, VII

Tanto mais que, ao pensar em ti, não tinha em mente algo sólido e firme, mas um fantasma, o meu erro. Se nele tentava descansar minha alma, logo deslizava como quem pisa em falso, e caía de novo sobre MIM. Eu era para MIM mesmo uma infeliz morada, na qual era ruim e da qual não podia sair. E para onde iria meu coração, fugindo de si mesmo? Para onde fugir de MIM mesmo? Confissões IV, VII

O tempo não corre debalde, nem passa inutilmente sobre nossos sentidos; antes, causa na alma efeitos maravilhosos. Assim vinha e passava, dias após dias, e passando deixava em MIM novas esperanças e novas recordações; pouco a pouco restituía-me a meus prazeres de outrora, a que ia cedendo minha dor. Substituíam-na não novas dores, mas sementes de novas dores. Confissões IV, VIII

Mas, por que me penetrara aquela dor tão profundamente, até o mais íntimo de meu ser, senão porque derramei minha alma sobre a areia, amando a um mortal como se não o fora? O que mais me confortava e alegrava eram sobretudo as consolações de outros amigos, com os quais partilhava o amor para o que amava tem teu lugar, isto é, uma fábula enorme, uma longa mentira, cujo contato impuro corrompia nossa mente, arrastada pelo prurido de ouvir aquilo que a agradava; fábula esta que não morria para MIM, ainda que morresse algum de meus amigos. Confissões IV, VIII

Certamente, eu não gostaria de ser louvado e amado como os comediantes, embora eu também os ame e louve; antes, preferiria mil vezes, permanecer desconhecido a ser louvado dessa maneira, e mesmo ser odiado a ser amado assim. De que modo convivem em uma alma gostos tão vários e diversos? Como é que amo em outro o que rejeitaria e afastaria para longe de MIM, sendo ambos homens? Aprecia-se um bom cavalo, sem que se queira ser um cavalo, se isso fosse possível. Mas de um histrião não se pode dizer o mesmo, pois tem a mesma natureza que nós. Logo, amo em um homem o que teria horror de ser, embora também eu seja homem? Confissões IV, XIV

Para MIM era importante que aquele homem conhecesse minhas palavras e meus trabalhos. Se ele os aprovasse, me entusiasmaria ainda mais por ele; mas se os reprovasse, meu coração fútil e vazio de tua firmeza, se lastimaria. Contudo, meu prazer era pensar e refletir no problema do belo e do conveniente, assunto do livro que lhe dedicara, admirando-o na minha imaginação, mesmo que ninguém mais o louvasse. Confissões IV, XIV

Eu não imaginava mais que formas corpóreas; carne, acusava a carne; espírito errante, não conseguia voltar para ti, nem em MIM, nem nos corpos; não eram sugeridas por tua verdade, mas imaginadas por minha vaidade, de acordo com os corpos. E dizia aos pequeninos teus fiéis concidadãos, dos quais eu, ignaro, ainda exilado, dizia-lhes eu, tagarela inepto: “Por que a alma, criatura de Deus, se engana?” Mas não queria que dissessem: “E por que Deus se engana?” E defendia antes que tua substância imutável era obrigada a errar, para não confessar que a minha, mutável, se desencaminhara espontaneamente, ou que era castigada pelo erro. Confissões IV, XV

Teria eu vinte e seis ou vinte e sete anos quando escrevi essas coisas, revolvendo dentro de MIM apenas imagens corporais, cujo ruído aturdia os ouvidos do meu coração. Buscava eu aplicá-los — ó doce verdade — à tua melodia interior, quando meditava sobre o belo e o conveniente. Meu desejo era estar diante de ti, e ouvir tua voz, e alegrar-me intensamente com a voz do esposo, mas não o podia, porque o alarido do meu erro me arrebatava para fora e, sob o peso de minha soberba, caía no abismo. Pois ainda não davas gozo e alegria a meus ouvidos, nem exultavam meus ossos, porque ainda não haviam sido humilhados. Confissões IV, XV

Era pois falso o que pensava de ti, e não verdade; ilusões de minha miséria, e não representação sólida de tua beleza. Havias ordenado, Senhor, e assim se cumpria em MIM tua vontade, que a terra me produzisse abrolhos e espinhos, e que eu só conseguisse meu pão à custa de trabalho. Confissões IV, XVI

De que me aproveitava também ler e compreender por MIM mesmo todos os livros que pude ter nas mãos sobre as artes chamadas liberais, se eu era então escravo de minhas más inclinações? Comprazia-me em sua leitura, sem atinar de onde vinha quanto de verdadeiro e certo achava neles; eu estava de costas para a luz, e o rosto, para os objetos iluminados, e por isso meus olhos, que os viam iluminados, não recebiam luz. Confissões IV, XVI

E onde estava eu quando te buscava? Certamente, estavas diante de MIM, mas eu me havia afastado de MIM mesmo, e não me encontrava, e muito menos de ti! Confissões V, II

Falarei, na presença de meu deus, do ano vigésimo nono de minha vida. Já havia chegado a Cartago um dos bispos maniqueus, chamado Fausto, grande laço do demônio, no qual caíam muitos pelo encanto sedutor de sua eloquência. Apesar de ser exaltada por MIM, eu a sabia contudo discernir das verdades que desejava conhecer. Não era o prato do estilo que eu considerava, mas o alimento doutrinal que nele me era servido por aquele famoso Fausto, tao reputado entre os seus. Confissões V, III

De fato, não achando na ocasião caminho melhor que aquele por onde cegamente me lançara, resolvi continuar provisoriamente na mesma, até que tivesse a fortuna de encontrar algo melhor e preferível. Foi assim que aquele Fausto, que havia sido para muitos laço de morte, começava involuntária e inconscientemente a desfazer o laço que me enredara. É que tuas mãos, meu Deus, no segredo de tua providência, não abandonavam minha alma; e minha mãe, dia e noite, não deixava de te oferecer em sacrifício por MIM o sangue de seu coração, na forma de suas lágrimas. Confissões V, VII

Também foi obra tua o fato de me convencerem a ir a Roma, para ali lecionar o que ensinava em Cartago. Mas não deixarei de confessar-te o motivo que me moveu, porque também nisso tudo se reconhece a profundidade de teu desígnio, e merece ser meditada e exaltada tua misericórdia sempre presente. O motivo que me levou a Roma não foram maiores lucros e maior dignidade, como me prometiam os amigos que tal me aconselhavam — se bem que essas razões ainda fossem importantes para MIM nesse tempo — mas o principal e quase único motivo de minha determinação era saber que os jovens de Roma eram mais sossegados nas classes, em virtude da rigorosa disciplina a que estavam sujeitos. Não lhes era lícito entrar desordenada e impudentemente nas aulas dos professores dos quais não eram alunos, nem sequer eram admitidos sem licença; bem o contrário do que acontecia em Cartago, onde a liberdade dos estudantes é tão vergonhosa e destemperada que invadem cínica e furiosamente as aulas, perturbando a ordem estabelecida pelos mestres em seu próprio interesse. Além disso, com incrível insolência cometem uma quantidade de grosserias, que deveriam ser castigadas pelas leis, se a tradição não os protegesse. Tal costume aliás, apenas manifesta a infelicidade no caso desses jovens, que já praticam como lícito o que jamais será permitido por tua lei eterna. Julgam agir impunemente, quando a própria cegueira é seu maior castigo, padecendo eles males incomparavelmente maiores do que os que causam aos outros. Confissões V, VIII

Mas o verdadeiro motivo de eu sair de Cartago e ir para Roma só tu, ó Deus, o sabias, sem manifestá-lo a MIM nem à minha mãe, que chorou amargamente minha partida, seguindo-me até o mar. Mas tive de enganá-la, porque me agarrava com força, instando-me a desistir de meu propósito ou a levá-la comigo. Fingi pois que tinha que me despedir de um amigo que eu não queria abandonar, até que, soprando o vento, ele pudesse navegar. Assim enganei a minha mãe, e a uma tal mãe! Fugi, e tu também me perdoaste este pecado misericordiosamente, salvando-me a MIM, cheio de execráveis imundícies, das águas do mar para que chegasse ás águas de tua graça. Purificado com elas, secariam os rios dos olhos de minha mãe, com que todos os dias regava a terra diante de ti, por minha causa. Confissões V, VIII

Contudo, como se recusasse a voltar sem MIM, apenas pude persuadi-la a permanecer aquela noite em uma capela próxima a nosso navio, consagrada à memória de São Cipriano. Mas naquela mesma noite parti às escondidas, deixando-a orar e a chorar. E que te pedia ela, meu Deus, com tantas lágrimas, senão que me impedisses de navegar? Mas tu, de visão infinitamente mais ampla, entendendo o intuito de seu desejo, não atendeste ao que ela então te pedia, para fazer em MIM aquilo que sempre te pedia. Confissões V, VIII

Por fim, depois de ter-me chamado de mentiroso e de mau filho, pôs-se de novo a rezar por MIM e voltou para sua vida habitual, enquanto eu me dirigia a Roma. Confissões V, VIII

Em Roma fui colhido pelo flagelo de uma doença corporal, que esteve a ponto de me mandar para a sepultura, carregado de todos os pecados cometidos contra ti, contra MIM e contra o próximo; pecados numerosos e pecados, que se somavam à cadeia do pecado original, pelo qual todos morremos em Adão. Ainda não me tinhas perdoado nenhum deles em Cristo, nem ele havia apagado com sua cruz as inimizades que contraíra contigo com meus pecados. E como poderia ele desfazê-los por uma cruz de onde eu não via pender mais que um fantasma? Porque tão falsa me parecia a morte de sua carne como verdadeira a morte de minha alma, e tão verdadeira a morte de sua carne como falsa a vida de minha alma, que disto se não persuadia. Confissões V, IX

Entretanto, agravando-se as febres, eu estava a ponto de partir e de perecer. Para onde iria eu, se então tivesse que morrer, senão para o fogo e tormentos merecidos por minhas ações, de acordo com a justa ordem por ti estabelecida? Minha mãe tudo ignorava, mas, ausente, orava por MIM, e tu, presente em todas as partes onde ela estava, lhe dava ouvidos; exercias tua misericórdia para comigo onde eu estava, restituindo-me a saúde do corpo, ainda que meu coração sacrílego continuasse doente. Nem mesmo estando em tão grande perigo desejei teu batismo. Quando menino eu era melhor, porque então o solicitei à piedade de minha mãe, como já recordei e confessei. Mas, para minha vergonha, eu havia crescido e, em minha loucura, zombava dos remédios de tua medicina, que não me deixou morrer duplamente em tal estado. Confissões V, IX

Ainda então me parecia que não éramos nós que pecávamos, mas não sei que estranha natureza que pecava em nós; por isso minha soberba se deleitava em me ter como isento de culpa, e portanto de todo desobrigado a confessar meu pecado, quando agia mal, para que pudesses curar minha alma que te ofendia. Antes, gostava de me desculpar, acusando a não sei que ser estranho que estava em MIM, mas que não era eu. Na verdade, eu era tudo aquilo, embora minha impiedade me tivesse dividido contra MIM mesmo. E o mais incurável de meu pecado era justamente o não me considerar pecador, preferindo, minha execrável iniquidade, que fosses vencido em MIM, para minha perdição, ó Deus onipotente, a que vencesses minha alma para minha salvação. Ainda não tinhas posto guarda diante da minha boca, nem porta de proteção ao redor de meus lábios, a fim de que meu coração não se inclinasse para as más palavras, nem buscasse desculpas para seus pecados, como os homens prevaricadores. Eis a razão pela qual eu ainda mantinha relações de amizade com os eleitos dos maniqueus. Mas, desesperado de poder progredir para a verdade dentro daquela falsa doutrina, contentava-me a segui-la até encontrar algo melhor, professando-a já com mais liberdade e frouxidão. Confissões V, X

Daqui se gerou também minha crença de que o mal tivesse substância, também corpórea, massa negra e disforme, ora espessa — a que chamavam terra — ora tênue e sutil, como o ar, a qual julgava ser um espírito maligno que investia sobre a terra. E visto que minha piedade, por pouca que fosse me obrigava a pensar que um Deus bom não podia criar nenhuma natureza má, eu imaginava duas substâncias antagônicas, ambas infinitas, a do mal um pouco menor, a do bem um pouco maior; e deste princípio pestilento originavam-se as demais blasfêmias. Com efeito, quando meu espírito se esforçava por voltar à católica, era rechaçado porque minha ideia de católica não era correta. E me parecia ser mais piedoso, ó Deus, a quem louvam em MIM tuas misericórdias, julgar-te infinito por todas as partes, com exceção de um aspecto, a substância do mal, onde era forçoso reconhecer teus limites, do que julgar-te limitado por todas as partes pelas formas do corpo humano. Confissões V, X

Não cuidava eu de aprender o que dizia, interessado apenas em como o dizia — era este gosto frívolo o único que ainda permanecia em MIM, perdidas já as esperanças de que se abrisse para o homem o caminho para ti. Todavia, infiltravam-se em meu espírito, juntamente com as palavras que me agradavam, as coisas que desprezava. Já não me era possível discernir umas das outras, e assim, ao abrir meu coração à sua eloquência, nele entrava ao mesmo tempo e aos poucos, a verdade. Confissões V, XIV

Ó minha esperança desde a minha juventude! Onde estavas, ou a que lugar te havias retirado? Acaso não foste tu quem me criou, diferenciando-me dos animais, fazendo-me mais sábio que as aves do céu? Mas eu caminhava por trevas e resvaladouros, e te buscava fora de MIM, e não encontrava o Deus de meu coração; caí nas profundezas do mar. Eu perdera a confiança e desesperava de encontrar a verdade. Confissões VI, I

Encontrou-me em grave perigo, já sem esperança de buscar a verdade. Contudo, quando lhe disse que já não era maniqueísta, sem ser ainda católico, não pulou de alegria, como quem ouve algo inesperado, pois já estava segura sobre aquele ponto de minha miséria, que a fazia chorar por MIM como por um morto que haveria de ressuscitar. Oferecia-me continuamente a ti em pensamento, como sobre um esquife, para que dissesses ao filho da viúva: Jovem, eu te digo: levanta-te, e seu filho revivesse, e voltasse a falar, e o entregasses à sua mãe. Confissões VI, I

Mas, parece-me, meu Senhor e meu Deus — e assim o crê meu coração em tua presença — que minha mãe não teria abdicado tão facilmente desse costume — que todavia era necessário cortar — se outro a quem não amasse tanto como a Ambrosio o tivesse proibido. De fato, ela o estimava muito por ter-me salvado, e ele a tinha em grande estima pela religiosidade e solicitude com que frequentava a igreja, na prática das boas obras. Por isso, muitas vezes quando me encontrava com ele, irrompia em louvores à minha mãe, e me felicitava por ser seu filho. Ignorava o filho que ela tinha em MIM, filho que duvidava de tudo, e julgava impossível achar o caminho da vida. Confissões VI, II

Eu aspirava às honras, às riquezas e ao matrimonio, e tu te rias de MIM. E nesses desejos sofria grandes amarguras; e tu me eras tanto mais propício quanto menos consentias que me fosse doçura o que não eras tu. Vê, Senhor, meu coração, tu que quiseste que recordasse estes fatos e os confessasse. Esta alma, a quem livraste do visco tenaz da morte, une-se agora a ti. Confissões VI, VI

A alegria do mendigo não era certamente verdadeira, mas a que eu buscava com minhas ambições era ainda mais falsa. Ele, pelo menos, estava alegre, e eu, angustiado; ele seguro, e eu inquieto. Se alguém me perguntasse se preferia estar alegre ou triste eu responderia: alegre; mas se me perguntassem novamente se queria ser como aquele mendigo ou ser como eu era, sem dúvida escolheria a MIM mesmo, embora cheio de cuidados e de temores. Mas isto eu faria por maldade ou com razão? Eu não devia preferir-me ao mendigo por ser mais culto, pois a ciência para MIM não era fonte de felicidade, mas apenas um meio de agradar aos homens, e não instruí-los. Confissões VI, VI

Contudo, o abismo dos costumes cartagineses, onde ferve o gosto dos espetáculos frívolos, engolfara-o na loucura dos jogos circenses. Alípio revolvia-se miseravelmente nesse abismo na época em que eu ensinava retórica na escola pública, mas ele não me tinha como mestre por causa de uma desavença que surgira entre MIM e seu pai. Eu sabia que Alípio amava morbidamente o circo, e isso muito me angustiava, por me parecer que se iam se perder, se já não estivessem, magníficas esperanças. Mas não achava meios de alertá-lo e repreendê-lo, nem pela amizade, nem pelo magistério, pois julgava que tinha sobre MIM a mesma opinião que seu pai. Mas não era assim. Pondo de parte a vontade paterna sobre isso, começou a me cumprimentar, comparecia à minha aula, ouvia-me um pouco, e logo se retirava. Confissões VI, VII

Não querendo por nada deixar a carreira mundana, tão decantada por seus pais, partira antes de MIM para Roma, a fim de estudar Direito; lá se deixou arrebatar de modo incrível, e com incrível avidez, pelos espetáculos de gladiadores. Confissões VI, VIII

Encontrei Alípio em Roma, onde se uniu a MIM com vínculo de amizade tão estreito, que foi comigo para Milão, tanto para evitar nosso afastamento como para exercer o Direito, embora mais para agradar aos pais do que por vontade própria. Já por três vezes fora assessor, sempre com admirável lisura, e ficando ele mais admirado ainda de que juizes preferissem o dinheiro à inocência. Confissões VI, X

Assim era então este amigo, tão intimamente unido a MIM, e que comigo buscava o tipo de vida que deveríamos seguir. Confissões VI, X

“Mas onde e quando buscá-la? Ambrósio não tem tempo livre para me ouvir, e a MIM falta tempo para ler. E além do mais, onde encontrar os livros? E onde ou quando poderei comprá-los?” Confissões VI, XI

Enquanto assim pensava, e os ventos cambiantes impeliam meu coração de um lado para outro, o tempo passava, e eu retardava minha conversão ao Senhor. Adiava de dia para dia o viver em ti, morrendo todavia todos os dias em MIM mesmo. Amando a vida feliz, temia buscá-la em sua morada; procurava-a fugindo dela! Pensava que seria mui desgraçado se me visse privado das carícias da mulher. Não pensava ainda no remédio de tua misericórdia, que cura esta enfermidade, porque nunca o havia experimentado. Julgava que a continência fosse obra de nossa própria força, que eu pensava não ter. Eu era bastante néscio para ignorar que ninguém, como está escrito, é casto sem que tu lhes dê a força. Essa força certamente ma darias se eu ferisse teus ouvidos com os gemidos de minha alma, e com firme lançasse em ti meus cuidados. Confissões VI, XI

Louvor e glória a ti, ó fonte das misericórdias! Eu me tornava cada vez mais miserável, e tu te aproximavas cada vez mais de MIM. já estava junto de MIM tua destra, para me arrancar do lodo dos meus vícios, e em purificar, e eu não o sabia. Mas nada havia que me fizesse sair do profundo abismo dos prazeres carnais, a não ser o medo da morte e de teu juízo futuro, que jamais saiu do meu peito, através das várias doutrinas que segui. Confissões VI, XVI

Assim, pois, com o coração pesado, sem consciência clara de MIM mesmo, considerava como um perfeito nada tudo o que não tivesse extensão por determinado espaço, ou não se difundisse ou pudesse assumir um desses estados. As formas percorridas por meus olhos eram os moldes das imagens pelas quais andava meu espírito; não via que a mesma faculdade com que formava essas imagens não era da mesma natureza que elas, não obstante não pudesse formá-las se ela não fosse por sua vez algo grande. Confissões VII, I

Seria talvez para que eu sofra as penas merecidas? Quem depositou em MIM, e semeou minha alma esta semente de amargura, sendo eu totalmente obra de meu dulcíssimo Deus? Se foi o demônio que me criou, de onde procede ele? E se este, de anjo bom se fez demônio, por decisão de sua vontade perversa, de onde lhe veio essa vontade má que o transformou em diabo, tendo ele sido criado anjo por um Criador boníssimo?” Confissões VII, III

Após esta abertura e nela baseado, ruminava dentro de MIM tais coisas, para que nenhum daqueles loucos que buscam nisso o lucro, e a quem eu então desejava refutar e ridicularizar, não me objetasse que Firmino ou o pai podia ter contado mentiras. Voltei pois minha atenção ao caso dos gêmeos, muitos dos quais saem do seio materno com tão breve intervalo de tempo, que por mais que o pretendam importante, não pode ser apreciado pela observação humana, nem pode ser considerado nos signos que o astrólogo lançará mão para fazer uma previsão certa. Mas os vaticínios não serão verdadeiros pois, vendo os mesmos signos, deveria predizer a mesma sorte para Esaú e Jacó, sendo que os sucessos da vida de ambos foram muito diversos. Confissões VII, VI

Tu só sabes o que eu padecia, mas homem algum o sabia. De fato, quão pouco era o que minha palavra transmitia aos meus amigos mais íntimos! Chegava, porventura, a eles o tumulto de minha alma, que nem o tempo, nem as palavras bastavam para declarar? Contudo, chegavam a teus ouvidos as queixas que em meu coração rugiam, e meu desejo estava diante de ti, mas a luz de meus olhos não estava contigo, porque ela estava dentro, e eu olhava para fora. Ela não ocupava espaço algum, e eu só pensava nas coisas que ocupam lugar, e não achava nelas lugar de descanso, nem me acolhiam de modo que pudesse dizer: “Basta, Aqui estou bem!” — Nem me permitiam que eu fosse para onde me sentisse satisfeito. Eu era superior a estas coisas, mas sempre inferior a ti. Serias minha verdadeira alegria se eu te fosse submisso, pois sujeitasse a MIM tudo o que criaste inferior a MIM. Tal seria o justo equilíbrio e a região central de minha salvação: permanecer como imagem tua, e servindo-te, ser o senhor de meu corpo. Mas, como me levantei soberbamente contra ti, investindo contra meu Senhor coberto com o escudo de minha dura cerviz, até mesmo as criaturas inferiores se fizeram superiores a MIM, e me oprimiam, e não me davam um momento de alívio e de descanso. Confissões VII, VII

Mas tu, Senhor, permaneces eternamente, e não te iras eternamente contra nós, porque te compadeceste da terra e do , e foi de teu agrado corrigir minhas deformidades. Tu me aguilhoavas com estímulos interiores para que estivesse impaciente, até que por uma visão interior, te tornasses para MIM uma certeza. O inchaço de meu orgulho baixava graças à mão secreta de tua medicina; a vista de minha alma, perturbada e obscurecida, ia sarando dia a dia graças ao colírio das dores salutares. Confissões VII, VIII

Mas aqueles que, erguendo-se sobre uma doutrina, digamos, mais sublime, não ouvem ao que lhes diz: Aprendei de MIM que sou manso e humilde de coração, e encontrareis descanso para vossas almas. E ainda que conheçam a Deus, não o glorificam como Deus, nem lhe dão graças, mas se desvanecem em seus pensamentos, e seu coração insensato se obscurece; e dizendo que são sábios, se tornam estultos. Confissões VII, IX

Estimulado por estas leituras a voltar a MIM mesmo, entrei, guiado por ti, no profundo de meu coração, e o pude fazer porque te fizeste minha ajuda. Entrei, e vi com os olhos da alma, acima desses mesmos olhos, acima de minha inteligência, a luz imutável; não esta vulgar e visível a todos os olhos de carne, nem outra do mesmo gênero, embora maior. Era muito mais clara e enchendo com sua força todo o espaço. Não, não era esta luz, mas uma luz diferente de todas estas. Confissões VII, X

Ela não estava sobre meu espírito como o azeite sobre a água, como o céu sobre a terra, mas estava acima de MIM porque me criou; eu lhe era inferior por ter sido criado por ela. Quem conhece a verdade conhece a luz, e quem a conhece, conhece a eternidade. O amor a conhece! Ó eterna verdade, amor verdadeiro, amada eternidade! Tu és meu Deus. Por ti suspiro dia e noite. Quando te conheci pela primeira vez, ergueste-me para me fazer ver que havia algo para ser visto, mas que eu ainda era incapaz de ver. E deslumbraste a fraqueza de minha vista com o fulgor do teu brilho, e eu estremeci de amor e temor. Pareceu-me estar longe de ti numa região desconhecida, como se ouvira tua voz do alto: “Sou o pão dos fortes; cresce, e comer-me-ás. Não me transformarás em ti, como fazes com o alimento da tua carne, mas tu serás mudado em MIM”. Confissões VII, X

Com isso, para MIM é bom apegar-me a Deus, porque, se não permanecer nele, tampouco poderei permanecer em MIM. ele, porém, permanecendo em si, renova todas as coisas, e tu és o meu Senhor, porque não necessitas de meus bens. Confissões VII, XI

Vi pois, e foi para MIM evidente, que tu eras o autor de todos os bens, e que não há em absoluto substância alguma que não tenha sido criada por ti. E como não as fizeste todas iguais, toas as coisas existem, porque cada uma por si é boa, e todas juntas muito boas, porque nosso Deus fez todas as coisas muito boas. Confissões VII, XII

Longe de MIM dizer: Oxalá não existissem estas coisas! — Embora, considerando-as separadamente, eu as desejasse melhores, somente o fato de existirem deveria bastar para eu te louvar porque o proclamam os dragões da terra e todos os abismos; o fogo, o granizo, a neve, o vento da tempestade, que executam tuas ordens; os montes e todas as colinas; as árvores frutíferas e todos os cedros; as feras e todos os gados; os répteis e todas as aves; os reis da terra e todos os povos; os príncipes e todos os juízes da terra, os jovens e as virgens, os anciões e as crianças; todos louvam teu nome. Confissões VII, XIII

Mas, depois que afagaste minha cabeça, sem que eu o percebesse, e fechaste meus olhos para não vissem a vaidade, desprendi-me um pouco de MIM mesmo, e minha loucura adormeceu profundamente; quando despertei em teus braços, vi que eras infinito não daquele modo, e esta visão não procedia da carne. Confissões VII, XIV

Por isso lancei-me avidamente sobre as veneráveis escrituras inspiradas por teu Espírito, sobretudo ao do apóstolo Paulo. E esvaeceram em MIM aquelas dificuldades nas quais julguei descobrir contradições entre ele e seu texto, em desacordo com os testemunhos da Lei e dos Profetas. Compreendi a unidade daqueles castos escritos, e aprendi a me alegrar com tremor. Confissões VII, XXI

Ninguém ali ouvi o convite: Vinde a MIM os que sofreis. Desdenham teus ensinamentos, porque és manso e humilde de coração. Porque escondeste estas coisas dos sábios e doutos, e as revelaste aos pequeninos. Confissões VII, XXI

Quanto a MIM, aborrecia-me a vida que levava no mundo, e era para MIM fardo pesadíssimo, agora que os apetites mundanos, como a esperança de honras e riquezas, já não me animavam para suportar tão pesada servidão. Essas paixões haviam perdido para MIM o encanto, diante de tua doçura e da beleza de tua casa, que já amava. Mas sentia-me ainda fortemente amarrado à mulher. Sem dúvida o Apóstolo não me proibia de casar, embora em seu ardente desejo de ver todos os homens semelhantes a ele, exortasse a um estado mais elevado. Confissões VIII, I

Ai de MIM! Quão alto és nas alturas e quão profundo nos abismos! Jamais te afastas de nós e, contudo, quanta dificuldade para voltar a ti! Confissões VIII, III

Mas, longe de MIM pensar que no teu tabernáculo são mais aceitos os ricos que os pobres, e os nobres mais do que os plebeus, porque escolheste os fracos segundo o mundo para confundir os fortes; o que é vil e desprezível segundo o mundo, a que não é nada, para aniquilar o que é. Confissões VIII, IV

O inimigo dominava meu querer, e dele forjava uma corrente com a qual me mantinha cativo. Da vontade perversa nasce a paixão, e desta satisfeita procede o hábito, e do hábito não contrariado provém a necessidade, e com estes anéis enlaçados entre si — por isso lhes chamei corrente — me mantinha preso em dura servidão. A nova vontade, que despontava em MIM, de te servir sem interesse, de me alegrar em ti, ó meu Deus, única alegria verdadeira, ainda não era capaz de vencer a vontade antiga e inveterada. Deste modo minhas duas vontades, a velha e a nova, a carnal e a espiritual, lutavam entre si e, nessa luta, dilaceravam-me a alma. Confissões VIII, V

Entendi, por experiência própria, o que havia lido: a carne tem desejos contra o espírito, e o espírito contra a carne. Eu vivia ao mesmo tempo a ambos, embora mais o que aprovava em MIM do que o que em MIM desaprovava. Com efeito, nesta última parte de MIM eu era passivo e constrangido, mais do que ativo e livre. Confissões VIII, V

E,contudo, o hábito que se impunha contra MIM vinha de MIM mesmo, pois fora voluntariamente que eu chegara onde não queria. E quem poderia protestar legitimamente, se um castigo justo segue o pecador? Confissões VIII, V

Em vão me deleitava em tua lei, segundo o homem interior, porque em meus membros outra lei combatia a lei de meu espírito, mantendo-me cativo sob a lei do pecado que estavas em meus membros. Com efeito, a lei do pecado é a violência do hábito, pelo qual a alma é arrastada e presa, mesmo contra sua vontade, merecidamente porém, pois se deixa arrastar por vontade própria. Pobre de MIM! Quem poderia libertar-me deste corpo de morte senão tua graça, por Cristo, nosso Senhor? Confissões VIII, V

Então sorriu para MIM e, cumprimentando-me, manifestou-me sua admiração por ter encontrado aquele livro, e só aquele, ao alcance dos meus olhos. Ponticiano era um cristão fiel, e muitas vezes prostrava-se diante de ti, nosso Deus, na igreja, em frequentes e prolongadas orações. Confissões VIII, VI

Eis o que Ponticiano nos relatou. E tu, Senhor, enquanto ele falava, me fazias refletir, tirando-me da posição de costas, em que me colocara para não me ver a MIM mesmo. Tu me colocavas diante de meu próprio rosto para que visse como estava indigno, disforme, sórdido, manchado e ulceroso. Confissões VIII, VII

Eu me via, e enchia-me de horror, mas não tinha para onde fugir de MIM mesmo. Se tentava afastar o olhar de MIM mesmo, Ponticiano prosseguia com a narração, e de novo me punhas diante de MIM, e me empurravas diante de meus olhos, para que eu descobrisse minha iniquidade e a odiasse. Eu bem a conhecia, mas a dissimulava, fingia não ver, esquecia. Confissões VIII, VII

Assim me roia interiormente, devorado por enorme e terrível vergonha, enquanto Ponticiano contava aquilo tudo. Finda a conversa, e resolvida a questão a que viera, Ponticiano voltou para sua casa, e eu para dentro de MIM. Que coisas não disse contra MIM? Com que açoite de palavras não flagelei minha alma, para obrigá-la a me seguir em meus esforços para te alcançar! Ela resistia, recusava-se, sem se desculpar. Todos os argumentos já estavam esgotados e refutados. Nada lhe restava, senão uma angústia muda: tinha medo, como da morte, de ser tolhida à corrente do vício, onde se corrompia mortalmente. Confissões VIII, VII

Então, em meio àquela luta interior que eu travava violentamente contra MIM mesmo no recesso do meu coração, perturbado no rosto e no espírito, volto-me para Alípio exclamando: “Que tanto nos aflige? O que significa isto que ouviste? Levantam-se os ignorantes e arrebatam o céu, e nós, com todo nosso saber insensato, nos revolvemos na carne e no sangue! Acaso temos vergonha de segui-los porque se nos adiantaram, e não temos vergonha de não os seguir?” Confissões VIII, VIII

Quando eu deliberava dedicar-me ao serviço do Senhor meu Deus, como de há muito me tinha proposto, eu era o que eu queria, e lera o que eu não queria. Mas, nem queria plenamente, nem deixar de querer por completo. Por isso lutava comigo mesmo, e me dilacerava a MIM mesmo. Essa destruição, embora involuntária, não mostrava, contudo, a presença em MIM de uma alma estranha, mas apenas o castigo de minha alma. E por isso já não era eu quem mo infligia, mas o pecado que habitava em MIM, como castigo de pecado cometido livremente, por ser eu filho de Adão. Confissões VIII, X

Mas isto já dizia com voz muito débil. Para onde voltava o rosto, e por onde temia passar, mostrava-se para MIM a casta dignidade da continência, serena e alegre, sem desordens, acariciando-me honestamente para que me aproximasse sem medo. Estendia para MIM, para me acolher e abraçar, suas mãos piedosas, cheias de uma multidão de bons exemplos. Confissões VIII, XI

Junto dela, uma turba de meninos e meninas, uma juventude numerosa, e homens de toda idade, viúvas veneráveis e virgens idosas. Em todas essas almas, não era estéril, mas fecunda a mãe de filhos nascidos nas alegrias do esposo, que eras tu, Senhor! E a continência zombava de MIM com ironia animadora, como se dissesse: “Então, não serás capaz de fazer o mesmo que eles? Ou será que estes e estas encontraram forças em si mesmos, e não no Senhor, seu Deus? Foi o Senhor Deus, quem me entregou a eles. Por que te apóias em ti, se és vacilante? Lança-te nele, não temas, que ele não se apartará de ti, e tu não cairás. Lança-te com confiança, que ele te receberá e te curará.” Confissões VIII, XI

Essa luta se desenrolava no fundo do meu espírito, de MIM contra MIM mesmo. Alípio, sem sair de perto de MIM, aguardava em silêncio o desfecho de minha insólita agitação. Confissões VIII, XI

Mas logo que esta profunda reflexão tirou da profundeza de minha alma, e expôs toda minha miséria à vista de meu coração, caiu sobre MIM enorme tormenta, trazendo copiosa torrente de lágrimas. E para dar-lhe toda vazão com seus gemidos, afastei-me de Alípio; a solidão parecia-me mais adequada e me afastei o mais longe possível, para que sua presença não me fosse embaraçosa. Tal era o estado em que encontrava, e Alípio percebeu-o, pois lhe disse alguma coisa com um timbre de voz embargado de lágrimas que me denunciou. Confissões VIII, XII

Então, marcando com o dedo, ou não sei com que, fechei o livro, e com o rosto já tranquilo, revelei a Alípio o que se passara. Ele, por sua vez, me revelou o que acontecera com ele, e que eu ignorava. Pediu para ver o que eu tinha lido; mostrei-lhe, ele prosseguiu a leitura. Eu ignorava o texto seguinte, que era este: Recebei ao fraco na , palavras que aplicou a si mesmo, e mo revelou. Fortificado por essa advertência, firmou-se nessa resolução e santo propósito, bem de acordo com seus costumes, nos quais já há muito tempo tomara grande vantagem sobre MIM. Confissões VIII, XII

Quão suave foi para MIM a privação de doçuras fúteis! Temia então perdê-las, como agora sentia prazer em deixá-las! Porque tu se afastavas de MIM, e entravas em seu lugar, mais doce que qualquer prazer, mas não para a carne e o sangue; mais claro que toda luz, mais oculto que qualquer segredo; mais sublime que todas as honras, mas não para os que exaltam a si mesmos. Confissões IX, I

Além disso, nesse mesmo verão, devido ao excessivo trabalho didático, meus pulmões começaram a se ressentir; respirava com dificuldade, e as dores no peito e minha voz, que não saía clara ou prolongada, revelavam uma lesão. A princípio me senti angustiado, vendo-me quase obrigado a abandonar o fardo do magistério ou, para me curar e convalescer, teria certamente de o interromper. Mas, quando nasceu em MIM e se firmou a vontade plena de repousar e de ver que és o Senhor, então, tu o sabes meu Deus, que cheguei a me alegrar de encontrar esta desculpa verdadeira para moderar o sentimento das famílias, que por causa de seus filhos nunca me permitiram ser livre. Confissões IX, II

Não muito depois de nossa conversão e regeneração por teu batismo, fez-se por fim católico fiel. Servia-te na África junto aos seus, em castidade e continência perfeitas; toda sua família, sob sua influência, se fizera cristã. Libertaste-o então dos laços da carne, vivendo agora no seio de Abraão, seja qual for o significado dessa expressão. Ali vive meu Nebrídio, meu doce amigo que, de liberto, se tornou teu filho adotivo. Ali vive — pois, que outro lugar conviria a uma alma assim? Ali vive, nesse lugar sobre o qual indagava muitas coisas a MIM, pobre homem ignorante. Já não aproxima seu ouvido da boca, mas aproxima sua boca espiritual de tua fonte, e bebe avidamente de tua sabedoria, numa felicidade sem fim. Mas não creio que se embriague a ponto de esquecer de MIM, enquanto tu, Senhor, que és sua bebida, te lembras de nós. Confissões IX, III

Que invocações elevei a ti, meu Deus, lendo os Salmos de Davi, cânticos de , hinos de piedade, que expulsavam de MIM todo sentimento de orgulho? Eu era ainda inexperiente de teu verdadeiro amor, e dividia minhas horas de lazer com Alípio, catecúmeno como eu. Minha mãe estava conosco. Ao aspecto da mulher ela aliava varonil, a calma da velhice, a ternura de mãe e a piedade de cristã. Que exclamações elevei a ti naqueles salmos, e como me inflamava com eles em teu amor! Incendiava-me em desejos de recitá-los, se fosse possível, ao mundo inteiro, para rebater a soberba do gênero humano! Com efeito, em todo o mundo se cantam. Não há ninguém que se subtraia a teu calor. Confissões IX, IV

Com que veemente e dolorosa indagação me levantava contra os maniqueístas! E de novo me compadecia deles por ignorarem esses sacramentos, esses remédios, investindo loucamente contra o antídoto que poderia curá-los! Gostaria que estivessem perto de MIM, sem que eu o soubesse, e que vissem meu rosto e ouvissem minhas exclamações quando lia o Salmo 4 naquelas minhas férias, e percebessem os efeitos salutares que me produzia este salmo: Quando te invoquei, tu me escutaste, ó Deus de minha justiça! Dilataste minha alma na tribulação. Confissões IX, IV

Compadece-te, Senhor, de MIM, e ouve minha prece. Se me ouvissem — sem eu o saber, para que não pensassem que eram por causa deles as palavras que eu entremeava às do salmo, porque realmente nem eu diria tais coisas, nem as diria daquele modo, se soubesse da sua presença; e, mesmo que as palavras fossem as mesmas, ele não as entenderiam como eu as dizia a MIM mesmo, diante de ti, na íntima efusão dos afetos de minha alma. Confissões IX, IV

Eu lia: Irai-vos, e não queirais pecar. Como me perturbavam tais palavras, meu Deus! Já havia aprendido a me irar contra MIM mesmo pelos meus crimes passados, para não pecar mais; e de uma cólera justa, porque não era uma natureza estranha, da raça das trevas, a que em MIM pecava, como dizem os que não se indignam contra si, e acumulam contra si a ira para o dia da ira e da revelação de teu justo juízo? Confissões IX, IV

Oh! Se eles vissem essa luz interior e eterna que eu havia visto! E como a havia saboreado, irritava-me por não poder mostrá-la. Se, pelo seus olhares dirigidos para fora, visse seu coração afastado de ti, me dissessem: “Quem nos mostrará o bem? Pois ali, onde me irritara contra MIM mesmo, ali, no recôndito de meu coração onde, arrependido, eu havia sacrificado e imolado em MIM o velho homem; onde, pondo em ti minha esperança, começara a meditar a renovação de MIM mesmo, ali fizeste com que eu sentisse tua doçura, dando alegria a meu coração. E exclamava ao ler, fora de MIM, essas palavras cuja verdade ecoava em MIM; e não queria desdobrar-me pelos bens terrenos, devorando o tempo e sendo por ele devorado, porque possuía na eterna simplicidade outro trigo, outro vinho e outro azeite. Confissões IX, IV

Quando poderei recordar tudo o que aconteceu naqueles dias de descanso? Mas não esqueci, nem quero silenciar, a aspereza de um açoite que usaste em MIM, e a admirável presteza de tua misericórdia. Confissões IX, IV

Atormentavas-me então com uma dor de dentes, que se agravara a tal ponto de me impedir até de falar. Ocorreu-me ao pensamento pedir a todos os amigos, que rogassem por MIM, ó Deus da salvação! Escrevi meu pedido numa tabuleta encerada, e lha dei para que o lessem. Confissões IX, IV

Naqueles dias eu não me fartava de considerar a grandeza de teus desígnios para a salvação do gênero humano, pela inefável doçura que sentia. Quanto chorei ao ouvir, profundamente comovido, teus hinos e cânticos que ressoavam suavemente em tua Igreja! Penetravam aquelas vozes em meus ouvidos, e destilavam a verdade em meu coração. Acendia-se em MIM um afeto piedoso, corriam-me lágrimas dos olhos, e o pranto me consolava. Confissões IX, VI

No entanto — como tua serva me contou a MIM, seu filho — insinuou-se nela certo gosto pelo vinho. Julgando-a menina sóbria, seus pais a escolheram, como era costume, para tirar o vinho do tonel. Mergulhava a caneca pela parte superior do recipiente e, antes de passar o vinho para a garrafa, sorvia com a ponta dos lábios um pouquinho; era-lhe impossível beber mais, porque o vinho lhe repugnava. Não fazia isto movida pela inclinação à embriaguez, mas pela exuberância juvenil, que se manifestava em movimentos, em brincadeiras, e que na meninice costumam ser reprimidos pela autoridade severa dos mais velhos. Mas, acrescentando todos os dias uns goles àqueles goles — pois quem descuida das coisas pequenas pouco a pouco cai nas maiores — acostumou-se a esvaziar avidamente copos quase cheios de vinho puro. Confissões IX, VIII

Tais coisas dizíamos, embora não deste modo, nem com estas palavras. Mas tu sabes, Senhor, que naquele dia, à medida que falávamos dessas coisas, quanto nos parecia vil este mundo, com todos os seus deleites — disse-me minha mãe: “Filho, quanto a MIM, já nada me atrai nesta vida. Não sei o que faço ainda aqui, nem por que ainda estou aqui, se já se desvaneceram pra MIM todas as esperanças do mundo. Uma só coisa me fazia desejar viver um pouco mais, e era ver-te católico antes de morrer. Deus me concedeu esta graça superabundantemente, pois te vejo desprezar a felicidade terrena para servi-lo. Que faço, pois, aqui?” Confissões IX, X

Não me lembro bem o que respondi a tais palavras. Mas cerca de cinco dias mais tarde, ou pouco mais, caiu de cama, com febre. Durante a doença, teve um dia um desmaio, ficando por pouco tempo sem sentidos e sem reconhecer os presentes. Acudimos de imediato, e logo voltou a si. Vendo-nos a seu lado, a MIM e a meu irmão (chamava-se Navígio, e era o mais velho dos irmãos), perguntou-nos, como quem procura algo: “Onde estava eu?” — Depois, vendo-nos atônitos de tristeza, nos disse: “Sepultareis aqui a vossa mãe” — Eu me calava, retendo as lágrimas, mas meu irmão disse umas palavras em que desejava vê-la morrer na pátria e não em terras distantes. Ao ouvi-lo, minha mãe repreendeu-o com o olhar, e aflita por ter pensado em tais coisas; depois, olhando para MIM, disse: “Vê o que ele diz” — E depois para ambos: “Sepultem este corpo em qualquer lugar, e não se preocupem mais com ele. Peço apenas que se lembrem de MIM diante do altar do Senhor, onde quer que estejam”. E tendo-nos exposto seu pensamento com as palavras que pôde, calou-se; sua moléstia agravou-se e suas dores aumentaram. Confissões IX, XI

Deste modo sua voz juvenil, voz do coração, calou em MIM essa espécie de emoção pueril que me provocava o pranto. De fato, não julgávamos correto celebrar aquele funeral com lágrimas e choro, pois tais demonstrações deploram geralmente o triste destino dos que morrem, ou sua total extinção. A morte de minha mãe não era uma desgraça, e ela não morria para sempre, e disto estávamos certos pelo testemunho de seus costumes, por sua sincera e outras razões inequívocas. Confissões IX, XII

Era para MIM grande consolação o testemunho que dera de MIM, quando nesta última enfermidade, respondendo com ternura às minhas atenções, chamava-me de bom filho, e recordava com grande afeto o nunca ter ouvido de minha boca uma só palavra dura ou injuriosa contra ela. Entretanto, o que era, meu Deus e meu Criador, a solicitude que eu lhe tributava, em comparação com o devotamento servil que por MIM suportava? Por me ver privado de tão grande consolo, sentia a alma ferida e minha vida, que era uma só com sua, estava despedaçada. Confissões IX, XII

Mas eu, pertinho de teus ouvidos, onde ninguém me podia escutar, censurava a minha sensibilidade e fraqueza e reprimia a onda de tristeza que me invadia; esta cedia por uns instantes, e novamente me arrastava com seu ímpeto, embora não chegasse a derramar lágrimas ou alterar a face. Somente eu sabia quão oprimido estava meu coração! E como me desgostava profundamente que as vicissitudes humanas tivessem tanto poder sobre MIM, que são inelutáveis pela ordem natural e a sorte de nossa condição; minha própria dor causava-me outra dor, e me afligia com dupla tristeza. Confissões IX, XII

Depois adormeci. Ao despertar, minha dor estava mitigada; só, em meu leito, lembrei-me dos versos cheios de verdade de teu Ambrósio. Porque, na verdade Tu és Deus, criador de quanto existe, De todo o mundo supremo governante, Que o dia vestes com tua luz brilhante, E de sonhos gratos a noite triste A fim de que os membros cansados O descanso ao trabalho prepare E as mentes cansadas, repare E os peitos de pena oprimidos Depois, pouco a pouco voltava aos sentimentos de antes sobre tua serva. Recordava de sua piedade para contigo, de sua solicitude e paciência comigo, da qual subitamente me via privado. E senti consolação em chorar diante de ti, por causa dela e por ela, e por minha causa e por MIM. E deixei que as lágrimas reprimidas corressem à vontade, estendendo-as como um leito reparador sob meu coração. Teus ouvidos eram os que ali me escutavam, e não os de nenhum homem, que pudesse interpretar com soberba meu pranto. Confissões IX, XII

E, para ti, Senhor, que conheces o abismo da consciência humana, que poderia haver de oculto em MIM, ainda que não to quisesse confessar? Confissões X, II

Poderia apenas esconder-te de MIM, e nunca me esconder de ti. Agora que meus gemidos dão testemunho do desagrado que sinto por MIM, tu me iluminas e me agradas, e és amado e desejado a ponto de eu me envergonhar de MIM renuncio a MIM para te escolher, e não quero agradar a ti ou a MIM senão por teu amor. Confissões X, II

Portanto, assim como sou, Senhor, tu me conheces. Já te disse com que escopo me vou confessando a ti. Faço esta confissão não com palavras e vozes do corpo, mas com as palavras da alma e o brado da inteligência, que teus ouvidos conhecem. Quando sou mau, confessar-me ai é o mesmo que desprezar a MIM próprio; quando sou bom, é apenas nada atribuir a MIM mesmo. Confissões X, II

Assim, meu Deus, a confissão que faço em tua presença, é e não é silenciosa; a boca se cala, mas meu coração clama. Tudo o que digo aos homens de verdadeiro já tinhas ouvido de MIM, e nem ouves nada de MIM que antes não me tivesses dito. Confissões X, II

Que tenho eu que ver com os homens, para que me ouçam as confissões, como se eles pudessem curar as minhas enfermidades? São curiosos para conhecer a vida alheia, mas indolentes para corrigir a própria! Por que desejam ouvir de MIM quem sou, quando não se importam em saber de ti o que são? E como podem saber, ao me ouvirem falar de MIM mesmo, se lhes digo a verdade, uma vez que homem algum sabe o que se passa no outro, senão o espírito do homem, que nele, habita? Mas, se ouvissem a ti falar deles, não poderiam dizer: “O Senhor mente”. E o que é ouvir-te falar de si, senão conhecerem-se a si mesmos? E quem, conhecendo a si mesmo, pode dizer “é falso”, sem mentir? Confissões X, III

A caridade crê em tudo — pelo menos entre corações que ela unifica em si por seus laços — por isso também eu, Senhor, me confesso a ti para que me ouçam os homens. A eles não posso provar que falo a verdade; mas creem-me aqueles cujos ouvidos a caridade abre para MIM. Confissões X, III

Há muitos porém, quer me conheçam, quer não, que desejam saber quem sou agora, neste momento em que escrevo as Confissões. Já ouviram de MIM ou de outros alguma coisa a meu respeito, mas seu ouvido não ouve meu coração, onde eu sou o que sou. Querem, certamente, saber por confissão minha o que sou no íntimo, lá onde não podem penetrar com a vista, com o ouvido, ou com a mente. Estão dispostos a acreditar em MIM. Mas poderão igualmente estar certos de me conhecer? A caridade, que os torna bons, lhes diz que eu não minto quando confesso tais coisas de MIM. É ela que os faz acreditarem em MIM. Confissões X, III

Mas, com que propósito desejam ouvir-me? Desejarão talvez congratular-me comigo, ouvindo quanto me aproximei de ti por tua graça, e orar por MIM, ao ouvir quanto me retardou o peso de minhas culpas? A estes mostrarei quem sou; já não é pequeno fruto, Senhor meu Deus, que muitos te deem graças por MIM, e que muitos te roguem por MIM. possa o coração de meus irmãos amar em MIM o que ensinas a amar, e, deplorar em MIM o que ensinas a aborrecer! Mas que brotem tais sentimentos em uma alma irmã, e não em almas estranhas, ou nesses filhos espúrios, cuja boca fala vaidade, e cuja direita é a direita da iniquidade, que o faça uma alma fraterna que se alegra por MIM quando me aprova, e quando me reprova se aflige por MIM, porque quer me aprove, quer não, me ama. Confissões X, IV

E tu, Senhor, que te alegras com a fragrância de teu santo templo, tem piedade de MIM, segundo tua grande misericórdia por causa de teu nome, e tu, que jamais abandonas uma obra começada, aperfeiçoa em MIM o que há de incompleto. Confissões X, IV

Mas este preceito teria sido de pouco valor para MIM, se teu Verbo o tivesse proferido apenas com palavras, e não tivesse mostrado o caminho com a obra. Eis que eu o imito pela ação e pela palavras, e o faço à sombra de tuas asas, o perigo seria grande demais, se minha alma aí não se abrigasse, e se minha fraqueza não te fosse conhecida. Confissões X, IV

Revelarei pois, a estes, a quem me mandas servir, não como fui, mas como já sou agora, e como ainda não sou. Mas não quero julgar-me a MIM mesmo. Assim é que peço para ser ouvido. Confissões X, IV

És tu, Senhor, quem me julga, porque ninguém conhece o que se passa no homem, a não ser o seu espírito que nele está, todavia há no homem coisas que até o espírito que nele habita ignora. Mas tu, Senhor, que o criaste, conheces todas as coisas. E eu, embora diante de ti me despreze e me considere como terra e cinza, sei algo de ti que ignoro de MIM mesmo. É certo que agora vemos por espelho, em enigmas, e não face a face. Por isso, enquanto peregrino longe de ti, estou mais presente a MIM do que a ti. Sei que em nada podes ser prejudicado, mas ignoro a que tentações posso resistir e a quais não posso. Todavia há esperança, pois és fiel, e não permites que sejamos tentados além de nossas forças; com a tentação, dás também meios para suportar, para que possamos resistir. Confissões X, V

Confessarei, portanto, o que sei de MIM, e também o que de MIM ignoro, porque o que sei de MIM só o sei porque me iluminas, e o que de MIM ignoro continuarei ignorando até que minhas trevas se transformem em meio-dia, em tua presença. Confissões X, V

Dirigi-me, então, a MIM mesmo, e perguntei: “E tu, quem és?” — e respondi: “Um homem”. Confissões X, VI

Para me servirem, tenho um corpo e uma alma: aquele exterior, esta interior. Por qual deles deverei perguntar pelo meu Deus, a quem já havia procurado com o corpo desde a terra até o céu, até onde pude enviar os raios de meu olhar como mensageiros? Melhor, sem dúvida, é a parte interior de MIM mesmo. É a ela que dirigem suas respostas todos os mensageiros de meu corpo, como a um presidente ou juiz, respostas do céu, da terra, e de tudo o que existe, e que proclamam: “Não somos Deus” — e ainda — “Ele nos criou”. O homem interior conhece essas coisas por meio do homem exterior; mas o homem interior, que é a alma, também conhece essas coisas por meio dos sentidos do corpo. Confissões X, VI

Do mesmo modo as demais impressões, introduzidas e armazenadas em MIM por meio dos outros sentidos, posso recordar a meu talante; distingo o aroma dos lírios do das violetas, sem cheirar nenhuma flor; e sem provar nem tocar em nada, mas apenas com a lembrança, posso preferir o mel ao arroz fervido e o macio ao áspero. Confissões X, VIII

Tudo isto realizo interiormente, no imenso palácio da memória. Ali eu tenho às minhas ordens o céu, a terra, o mar, com tudo o que neles pude perceber, com exceção do que já me esqueci. Ali encontro a MIM mesmo, recordo de MIM e de minhas ações, de seu tempo e lugar, e dos sentimentos que me dominavam ao praticá-las. Ali encontro a MIM mesmo, recordo de MIM e de minhas ações, de seu tempo e lugar, e dos sentimentos que me dominavam ao praticá-las. Ali estão todas as lembranças do que aprendi, quer pelo testemunho alheio, quer pela experiência. Confissões X, VIII

“Farei isto ou aquilo” — digo para MIM, nesse vasto universo de minha alma, repleto de imagens de tantas e tão grandes coisas. E disso tiro esta ou aquela conclusão. “Oh! Se acontecesse isto ou aquilo!” “Queira Deus não aconteça isto ou aquilo!” isto digo em meu íntimo, e nisso visualizando as imagens das realidades que exprimo, saídas do mesmo tesouro da memória; sem elas, nada poderia dizer. Confissões X, VIII

Esta ideia me provoca grande admiração, e me enche de espanto. Viajam os homens para admirar as alturas dos montes, as grandes ondas do mar, as largas correntes dos rios, a imensidão do oceano, a órbita dos astros, e se esquecem de si mesmos! Nem se admiram que eu fale dessas coisas sem vê-las com os olhos; contudo, eu não as poderia mencionar se esses montes, se essas ondas, esses rios, esses astros, que eu vi, se esse oceano, no qual acredito pelo testemunho alheio, eu não os visse na memória em toda sua dimensão, como se estivessem diante de MIM. mas quando eu os vi com meus olhos, eu não os absorvi; não são as coisas que se encontram dentro de MIM, mas apenas suas imagens. E sei por qual sentido do corpo recebi a impressão de cada uma delas. Confissões X, VIII

E não se limita a isto a imensa capacidade de minha memória. Ali estão, como em um lugar recôndito, que alias, não é um lugar, todas as noções aprendidas das artes liberais, pelo menos as que ainda não esqueci. Mas, neste caso, não são as imagens delas que trago em MIM, mas as próprias realidades em si. As noções de literatura, a dialética, as diferentes espécies de questões, tudo o que sei a respeito desses problemas estão em minha memória, mas não estão ali como a imagem solta de uma coisa, cuja realidade se deixou fora. Nesse caso seria como um som que se ouve e passa, como a voz que deixa no ouvido um rastro, que permite que a lembremos, como se ainda soasse embora já não soe; ou como o perfume que, ao passar e desvanecer-se no ar, atinge o olfato e grava sua imagem na memória, imagem que a lembrança reproduz; ou como o alimento, que perde o sabor no estômago, mas o conserva na memória; ou como um corpo que se sente pelo tato e que, ausente, é imaginado pela memória. Todas essas realidades não nos penetram a memória, mas tão somente são captadas as suas imagens com maravilhosa rapidez, e dispostas, digamos, em compartimentos admiráveis, de onde são extraídas pelo milagre da lembrança. Confissões X, IX

Ouço dizer que há três gêneros de questões a saber: se uma coisa existe, qual a sua natureza e qual sua qualidade — retenho a imagem dos sons de que se compõem estas palavras, e sei que estes atravessaram o ar como ruído, e já não existem. Mas as realidades significadas por tais palavras, eu jamais atingi com nenhum sentido do corpo, nem as vi em nenhuma parte fora de meu espírito; o que gravei na minha memória não são suas imagens, mas as próprias realidades. Que me digam, se o puderem, por onde entraram em MIM! percorro em vão todas as portas do meu corpo, e não descubro por onde poderiam ter entrado. Com efeito: os olhos dizem: “Se são coloridas, fomos nós que as transmitimos.” — Os ouvidos dizem: “Se eram sonoras, foram por nós comunicadas”. — As narinas dizem: “Se tinham cheiro, passaram por aqui”. — E o gosto diz: “Se não têm sabor, nada me perguntem”. — O tato declara: “Se não são corpóreas, eu não as toquei, e portanto não poderia revelá-las” Confissões X, X

De onde, então, e por onde entraram em minha memória? Ignoro-o. Aprendi-as não dando crédito ao testemunho alheio, mas as reconheci em MIM e aprovei-as como verdadeiras; confias a meu espírito como em depósito, de onde poderei tirá-las quando quiser. Estavam pois ali, antes mesmo que eu as aprendesse, mas não na memória. E onde estavam então? E porque, ao serem mencionadas, eu as reconheci e disse: “É assim mesmo, é verdade” — senão porque já estavam em minha memória? Mas tão escondidas e sepultadas em tão secretos recessos, que se alguém não as arrancasse dali com suas perguntas, talvez eu nem pudesse concebê-las. Confissões X, X

Ria-se de MIM quem não compreender o que disse; eu terei compaixão de seu riso. Confissões X, XII

Evoco uma dor do corpo, que está ausente de MIM, já que nada me dói. Contudo, se a imagem da dor não estivesse em minha memória, não saberia o que dizia, e ao raciocinar não a distinguiria do prazer. Confissões X, XV

Falo de saúde do corpo, estando são; neste caso, está em MIM o próprio objeto. No entanto, se sua imagem não estivesse em minha memória, de modo algum lembraria o significado dessa palavra. Os doentes, ouvindo falar de saúde, não saberiam do que se trata, não fosse o poder da memória a conservar a imagem da ausência da realidade. Confissões X, XV

E quando falo do esquecimento, e reconheço de que falo, como poderia eu reconhecê-lo se dele não lembrasse? Não falo do som da palavra, mas da realidade que ela exprime. Se eu a tivesse esquecido, não seria capaz de reconhecer o significado de tal som. Por isso, quando me lembro da memória é por ela mesmo que se apresenta a MIM; mas quando me lembro do esquecimento, este e a memória estão presentes simultaneamente: a memória, com que me recordo, e o esquecimento, de que me recordo. Confissões X, XVI

Mas, Senhor, esgota-me esta busca e é, portanto, sobre MIM mesmo que me canso; tornei-me para MIM mesmo uma terra de dificuldades e árduos labores. Por que não exploro agora as regiões do firmamento, nem meço as distâncias dos astros, nem busco as leis do equilíbrio da terra. Sou eu que me lembro, eu, o meu espírito. Não é de admirar que esteja longe de MIM tudo o que não sou eu. Todavia, que há mais perto de MIM do que eu mesmo? No entanto, é-me impossível compreender a natureza de minha memória, sem a qual eu nem poderia pronunciar meu próprio nome. Confissões X, XVI

Subindo em espírito a ti, que estás acima de MIM, ultrapassarei também esta minha força, que se chama memória, pois quero atingir-te onde és acessível, e unir-me a ti por onde possa fazê-lo. Confissões X, XVII

Longe de MIM, longe do coração de teu servo, Senhor, que a ti se confessa, a ideia de encontrar a felicidade não importa em que alegria! A felicidade é uma alegria que não é concedida aos ímpios, mas àqueles que te servem por puro amor: tu és essa alegria! Alegrar-se de ti, em ti e por ti: isso é felicidade. E não há outra. Os que imaginam outra felicidade, apegam-se a uma alegria que não é a verdadeira. Contudo, sempre há uma imagem da alegria da qual sua vontade não se afasta. Confissões X, XXII

Onde, então, te encontrei, para te conhecer? Não estavas ainda em minha memória antes de eu te conhecer. Onde, então, te encontrei, para te conhecer, senão em ti mesmo, acima de MIM? No entanto, aí não existe espaço. Quer nos afastemos de ti, quer nos aproximemos, aí não existe espaço algum. Ó Verdade, por toda parte assistes aos que te consultam, e respondes ao mesmo tempo a todas essas diversas consultas. Tuas respostas são claras, mas nem para todos. Confissões X, XXVI

Tarde te amei, Beleza tão antiga e tão nova, tarde te amei! Eis que estavas dentro de MIM, e eu lá fora, a te procurar! Eu, disforme, me atirava à beleza das formas que criaste. Estavas comigo, e eu não estava em ti. Retinham-me longe de ti aquilo que nem existiria se não existisse em ti. Tu me chamaste, gritaste por MIM, e venceste minha surdez. Brilhaste, e teu esplendor afugentou minha cegueira. Exalaste teu perfume, respirei-o, e suspiro por ti. Eu te saboreei, e agora tenho fome e sede de ti. Tocaste-me, e o desejo de tua paz me inflama. Confissões X, XXVII

Quando me unir a ti com todo meu ser, não sentirei mais dor ou fadiga; minha vida, cheia de ti, será então a verdadeira vida. Alivias aqueles que enches de ti; mas, como ainda não estou cheio de ti, sou um peso para MIM mesmo. Minhas alegrias, que deveriam ser choradas, lutam com minhas tristezas que deveriam alegrar-me, e ignoro de que lado está a vitória. Confissões X, XXVIII

Ai de MIM, Senhor, tem piedade de MIM! As tristezas do meu mal lutam com minhas santas alegrias, e eu não sei de que lado está a vitória. Ai de MIM! Senhor, tem piedade de MIM! Eis minhas feridas: eu não as escondo. Tu és o médico, eu o enfermo; és misericordioso, e eu, miserável. Não é contínua tentação a vida do homem sobre a terra? Quem quer aborrecimentos e dificuldades? Mandas que os suportemos, e não que os amemos. Ninguém ama o que tolera, ainda que goste de o tolerar; e mesmo que alguém se alegre em tolerar, preferiria nada ter que suportar. Na adversidade, desejo a prosperidade, e na prosperidade temo a adversidade. Entre estes dois extremos, qual será o termo médio onde a vida humana não seja tentação? Confissões X, XXVIII

Mas em minha memória, de que falei longamente, vivem ainda as imagens dessas voluptuosidades que meus costumes de outrora ali gravaram. Sem forças diante de MIM quando estou acordado, durante o sono, elas não somente suscitam em MIM o prazer, mas o consentimento do prazer e a ilusão da ação. Tais ilusões têm tal poder sobre minha alma e sobre meu corpo, apesar de tão falsas, que seus fantasmas impelem a meu sono o que a realidade não me pode induzir quando em vigília. Acaso então, Senhor meu Deus, será que eu não sou eu nessas horas? E como vai tão grande diferença dentro de MIM mesmo, do momento em que passo da vigília para o sono e vice versa! Onde pois está a razão, que durante a vigília resiste a tais sugestões, e que não se abala mesmo diante da realidade? Acaso se fecha juntamente com os olhos? Ou adormece com os sentidos do corpo? Confissões X, XXX

Espero que aperfeiçoes em MIM tuas misericórdias, até que atinja a plenitude da paz de que gozarão em ti meu espírito e meu corpo, quando a morte for absorvida pela vitória. Confissões X, XXX

Tu me ensinaste a considerar os alimentos como remédios. Mas quando passo dessa penosa necessidade à paz da saciedade, nessa passagem a concupiscência arma para MIM sua cilada. Esta passagem é prazerosa, e não há outra para se chegar onde a necessidade nos obriga. A razão do beber e do comer é a conservação da saúde; mas um prazer insidioso acompanha como lacaio essas funções, e sempre tenta tomar a dianteira, de modo que faço pelo prazer o que digo fazer por minha saúde. Confissões X, XXXI

Ouço a voz de meu Deus que ordena: “Não se façam pesados vossos corações com a intemperança e embriaguez”. A embriaguez está longe de MIM; que tua misericórdia não a deixe se aproximar. Mas a intemperança, ao contrário, chega às vezes a arrastar teu servo. Tua misericórdia há de afastá-la de MIM, porque ninguém pode ser temperante senão por tua graça. Confissões X, XXXI

Ouvi também outro que te pedia esta graça: “Afasta de MIM a intemperança”. — De onde se conclui claramente, ó Deus santo, que dás a força de cumprir o que mandas. Confissões X, XXXI

Eis em que estado me encontro! Chorai comigo, e chorai por MIM, vós que alimentais no coração a virtude, fonte de boas obras. Porque vós, a quem isso não afeta, sois insensíveis a tudo isso. E tu, Senhor meu Deus, escuta, olha e vê; tem piedade de MIM, cura-me. Eis que me tornei um problema para MIM mesmo, sob teu olhar, e aí está precisamente meu mal. Confissões X, XXXIII

Quanto a MIM, meu Deus e minha glória, encontro nisto razão para cantar-te um hino, e oferecer um sacrifício de louvor àquele que sacrificou por MIM. As belezas que da alma do artista passam para suas mãos, provêm desta beleza, que é superior às nossas almas e pela qual minha alma suspira dia e noite. Confissões X, XXXIV

Mas quantos artifícios inventa o inimigo para me tentar a que te peça algum milagre, a ti, Senhor, meu Deus, a quem devo servir humilde e simplesmente! Eu te suplico, por nosso Rei, por nossa pátria, a pura e casta Jerusalém, que o perigo de consentir nessas coisas, que até agora esteve longe de MIM, se afaste cada vez mais! Mas quando te peço a salvação de uma alma, a finalidade de meu intento é bem diferente: ouve-me pois, e concede-me a graça de seguir de bom grado tua vontade. Confissões X, XXXV

E que dizer quando, sentado em minha casa, observando uma lagartixa à caça de moscas, ou uma aranha que as enreda em sua teia? Acaso, por serem animais pequenos, a curiosidade que despertam em MIM não é a mesma? É verdade que depois passo a te louvar; Criador admirável, ordenador do universo, mas não foi esse o pensamento que primeiro me moveu. Uma coisa é levantar-se depressa, e outra é não cair. Confissões X, XXXV

Terei também essa miséria como desprezível? Haverá algo que possa restituir-me a esperança, a não ser tua conhecida misericórdia, que começou a me transformar? Sabes o quanto já me transformaste; curaste-me primeiro da paixão da vingança, para perdoar-me também todos meus pecados, curar minhas fraquezas, resgatar minha vida da corrupção, conservar-me na piedade e misericórdia, e saciar dos teus bens meu desejo. Derrubaste meu orgulho pelo temor, dobrando minha cerviz a teu jugo. Agora eu trago o teu jugo, e o sinto suave, como prometeste e cumpriste. Na verdade, teu jugo já era suave, mas eu não o sabia quando receava tomá-lo sobre MIM. Confissões X, XXXVI

Mas, Senhor, tu és o único que sabe mandar sem orgulho, porque és o único Senhor verdadeiro, que não tem senhor! Diga-me, terá cessado em MIM, se isso pode acontecer nesta vida, esta terceira espécie de tentação, que consiste em querer ser temido e amado pelos homens, com o único fim de obter uma alegria que não é alegria? Que vida miserável, que arrogância indigna! Aí está o principal motivo porque não te amamos e tememos piamente. Por isso resistes aos soberbos, enquanto dás tua graça aos humildes. Trovejas contra as ambições do mundo, e faz abalar as montanhas até suas raízes. Confissões X, XXXVI

Então, Senhor, que devo confessar-te quanto a tais tentações? Que tenho em grande apreço o louvor? Mas agrada-me mais a verdade. Pois, se tivesse que escolher entre duas situações: ser louvado pela minha loucura ou por meus erros ou ser escarnecido por todos pela minha firme certeza da verdade, bem sei o que escolheria. Contudo, não gostaria que a aprovação alheia aumentasse para MIM a alegria que sinto pelo pouco bem que faço. Mas tenho de te confessar que não só o louvor a aumenta, mas também que o vitupério a diminui. Confissões X, XXXVII

Quando me sinto perturbado por essa miséria, uma desculpa surge em MIM. Só tu sabes, Senhor, se ela é válida, porque a MIM me deixa perplexo. De fato, não nos ordenaste apenas a continência, que nos ensina a afastar certas coisas de nós, mas também a justiça, que direciona nosso amor. Não quiseste que amássemos somente a ti, mas também o nosso próximo. Ora, às vezes me parece que é o aproveitamento e as esperanças de que o próximo dá mostra que me encantam, quando me regozijo com um elogio inteligente; e que, pelo contrário, é sua maldade que me entristece quando o ouço censurar o que ignora ou o que é bom. Confissões X, XXXVII

Às vezes também me entristeço com os elogios que me fazem, quando louvam em MIM qualidades que me desagradam, ou quando dão muita importância a qualidade medíocres e secundárias. Confissões X, XXXVII

Mas, repito-o, como saber se o desagrado não provém de minha repugnância pelo louvor que destoa do meu juízo a respeito de MIM mesmo — não que seu interesse me preocupe — mas pelo maior agrado que sinto quando o bem que amo em MIM é amado pelos outros? De algum modo, não me considero louvado quando o elogio contradiz a opinião que tenho de MIM mesmo, quer o encômio seja para o que me desagrada, quer exagerando o valor do que pouco me agrada. Confissões X, XXXVII

Serei, pois, sobre isso tudo um enigma para MIM mesmo? Confissões X, XXXVII

Mas é em ti, ó Verdade, que percebo que devo me alegrar com os louvores que me dirigem, não em meu interesse, mas no interesse do próximo. Não sei se é este o meu caso, pois neste assunto me conheces melhor do que eu mesmo. Suplico-te, meu Deus, que me dês a conhecer a MIM mesmo, para que eu possa confessar a meus irmãos, dispostos a orar por MIM, as chagas que achar em MIM. Faze que me examine com mais diligencia. Se for de fato o bem do próximo que me alegra quando me louvam, porque sou menos sensível ao vitupério injustamente feito a outro, do que se fosse a MIM? Porque o aguilhão da injúria me faz sofrer mais do que injúria igualmente injusta feita a uma outra pessoa diante de MIM? Acaso também ignoro isto? Confissões X, XXXVII

Afasta de MIM, Senhor, esta loucura, para que minhas palavras não sejam para MIM óleo de pecador para ungir minha cabeça. Confissões X, XXXVII

Sou pobre e necessitado, e só melhoro quando, com gemidos íntimos e com desagrado de MIM mesmo, busco tua misericórdia, até que minha indigência seja reparada e sanada com a paz que o olho soberbo ignora! Todavia, as palavras de nossa boca, ou nossos atos conhecidos dos homens, encerram uma tentação muito perigosa, filha do amor dos louvores que, para nos iludir com certa excelência, recolhe e mendiga os aplausos alheios. A vanglória me tenta até quando a critico em MIM, e é por isso mesmo que eu a desaprovo. Muitas vezes, por excesso de vaidade, há quem se glorie até mesmo do desprezo da vanglória; mas de fato não é mais do desprezo da vanglória que se orgulha, porque ninguém a despreza quando se gloria de a desprezar. Confissões X, XXXVIII

Em todos estes perigos e provas, tu vês o temor de meu coração, e sinto que são mas as feridas que curas em MIM do que as que inflijo a MIM mesmo. Confissões X, XXXIX

Quando deixaste de me acompanhar, ó Verdade, para me ensinar o que eu devia evitar ou procurar, sempre te consultei, a ti submetendo, dentro da minha limitação, meus medíocres pontos de vista? Percorri com os sentidos, como pude, o mundo exterior. Observei a vida de meu corpo e os meus próprios sentidos. Depois adentrei nas profundezas da memória em seus múltiplos domínios, tão maravilhosamente repletos de inúmeras riquezas; observei tudo isso, estupefato. Sem teu auxílio nada poderia distinguir, mas reconheci que nada disto eras tu. Nem era eu o descobridor de todas essas coisas; me esforcei para distingui-las e avaliá-las em seu devido valor, recebendo-a através dos sentidos e interrogando-as. Senti outras coisas unidas a MIM, e as examinei, assim como aos sentidos que mas traziam; revolvi as vastas reservas da memória, analisando certas lembranças, guardando umas e trazendo outras à luz. Porque tu és a luz permanente que eu consultava sobre a existência, o valor e a qualidade de todas as coisas, e eu ouvia teus ensinamentos e tuas ordens. Costumo fazê-lo muitas vezes, pois essa é a minha alegria, e sempre que meus trabalhos me permitem algum descanso, refugio-me nesse prazer. Confissões X, XL

Porventura, Senhor, tu que és eterno, ignoras o que te digo, ou não vês no tempo o que se passa no tempo? Por que motivo, então, narrar-te essas coisas todas? Certamente não é para que as conheças; é para despertar em MIM e nos que me leem nosso amor por ti; para que todos exclamemos: Grande é o Senhor, e infinitamente digno de louvores! Já disse e torno a dizer: É pelo desejo de teu amor que narro isso. Confissões XI, I

Mesmo que eu fosse capaz de enumerar na ordem tais coisas, as gotas de meu tempo me são preciosas. De há muito que anseio ardentemente meditar sobre tua lei, e te confessar nela minha ciência e minha ignorância, os começos de tuas luzes na minha alma e o que ainda resta em MIM de trevas, até que minha fraqueza seja absorvida por tua força. Não quero gastar em outros cuidados as horas de liberdade que me restam além dos cuidados indispensáveis do corpo, do trabalho intelectual, dos serviços que devemos aos homens, e dos que prestamos sem lhe dever. Confissões XI, II

Senhor meu Deus, ouve minha prece; que tua misericórdia atenda ao meu desejo, pois não arde só por MIM, mas também para servir ao amor fraternal, e bem vês em meu coração que é assim. Confissões XI, II

Senhor, tem piedade de MIM, ouve meu desejo. Julgo que não desejo nada da terra, nem ouro, nem prata, nem pedras preciosas, nem belas roupas. Nem honrarias, nem prazeres carnais, nem de coisas necessárias ao corpo de nossa peregrinação desta vida. Tudo, alias, nos é dado por acréscimo quando procuramos teu reino e tua justiça. Confissões XI, II

Vê, meu Deus, de onde nasce meu desejo. Os ímpios contaram-me suas alegrias, mas esses prazeres não são como os proporcionados por tua lei. É ela que inspira meu desejo. Olha, ó Pai, olha, e vê, e aprova. Queira tua misericórdia que eu encontre graça diante de ti, e que os arcanos secretos de tuas palavras se abram a meu espírito que bate às suas portas! Isso eu te suplico por nosso Senhor, Jesus Cristo, teu filho, aquele que está sentado à tua direita, o Filho do homem, a quem estabeleceste como mediador entre nós e ti. Por ele nos procuraste quanto não te procurávamos, e nos procuraste para que te buscássemos! Em nome de teu Verbo, por quem criaste todas as coisas, e a MIM entre outras; de teu Filho unigênito, por quem chamaste à adoção o povo dos crentes, no qual também estou. Confissões XI, II

Mas, como saberia eu se ele dizia a verdade? E, posto que o soubesse, sabê-lo-ia por seu intermédio? Não, mas seria dentro de MIM, no íntimo recesso do pensamento que a Verdade, que nem é hebraica, nem grega, nem latina, nem bárbara, sem auxílio de lábios ou de língua, sem ruído de sílabas, me diria: “Ele fala a verdade”. — e eu, imediatamente, com a certeza da , diria àquele teu servo: “Tu dizes a verdade!”. Confissões XI, III

Mas, como falaste? Porventura do mesmo modo como aquela voz que, saindo da nuvem, disse: Este é meu Filho bem-amado? — Essa voz fez-se ouvir, e passou; teve começo e fim; suas sílabas ressoaram, depois passaram, em sucessão ordenada até a última, que vem depois de todas as outras — e depois foi o silêncio. Por onde se vê claramente que essa voz foi gerada por órgão temporal de uma criatura a serviço de tua vontade eterna. E essas palavras, pronunciadas no tempo, foram comunicadas pelo ouvido material à inteligência, cujo ouvido interior está atento à tua palavra eterna. E a razão comparou essas palavras, proferidas no tempo, com o silêncio de teu Verbo eterno, e disse: “É diferente, muito diferente. Tais palavras estão bem abaixo de MIM, nem sequer existem, pois fogem e passam; mas o Verbo de Deus permanece sobre MIM eternamente”. Confissões XI, VI

É nesse princípio, ó Deus, que criaste o céu e a terra; em teu Verbo, em teu Filho, em tua virtude, em tua sabedoria, em tua verdade, falando e agindo de modo admirável. Quem o poderá compreender ou explicar? Que luz é essa que por vezes me ilumina, e que fere meu coração sem o lesar? Atemorizo-me e inflamo-me: tremo porque, de certo modo, sou tão diferente dela; e inflamo-me, porque também sou semelhante a ela. A Sabedoria é a mesma sabedoria que brilha em MIM de quando em quando: ela rasga as nuvens de minha alma, que novamente me encobrem quando dela me afasto, pelas trevas e pelo peso de minhas memórias. Na indigência, meu vigor enfraqueceu de tal modo, que nem posso mais suportar o meu bem, até que tu, Senhor que te mostraste compassivo com todas minhas iniquidades, cures também todas as minhas fraquezas. Redimirás minha vida da corrupção; hás de me coroar na piedade e na misericórdia, e saciarás com teus bens meus desejos, porque minha juventude será renovada com a da águia. Confissões XI, IX

Mas tu, que és soberano sobre tuas criaturas, de que modo ensinas às almas os fator porvir, como revelas aos teus profetas? De que modo ensinas o futuro, tu, para quem o futuro não existe? Ou antes, como ensinas os sinais presentes dos fatos futuros? Pois, o que ainda não existe não pode ser ensinado. O teu modo misterioso de agir está muito acima de minha inteligência, sobrepuja minhas forças. Por MIM mesmo eu não o poderia alcançar, mas podê-lo-ei por ti, quando me concederes, ó doce Luz dos olhos de minha alma! Confissões XI, XIX

O que agora parece claro e evidente para MIM é que nem o futuro, nem o passado existem, e é impróprio dizer que há três tempos: passado, presente e futuro. Talvez fosse mais correto dizer: há três tempos: o presente do passado, o presente do presente e o presente do futuro. E essas três espécies de tempos existem em nossa mente, e não as vejo em outra parte. O presente do passado é a memória; o presente do presente é a percepção direta; o presente do futuro é a esperança. Confissões XI, XX

Confesso-te, Senhor, que ainda não sei o que é tempo. E torno a confessar, Senhor, eu o sei, que digo estas coisas no tempo, e que de há muito estou falando do tempo, e que esse muito também não seria o que é senão pela duração do tempo. Mas como posso saber isto, se desconheço o que é o tempo? Talvez eu ignore a arte de exprimir o que sei. Ai de MIM, que não sei nem mesmo o que ignoro! Eis-me diante de ti, meu Deus, tu vês que não minto e que falo de coração. Acenderás minha candeia, Senhor meu Deus, e iluminarás minhas trevas. Confissões XI, XXV

Senhor, meu Deus, que abismos profundos os de teus segredos, e quão longe deles me levaram as consequências de meus pecados! Cura meus olhos, para que eu me alegre com tua luz! Se houvesse de fato um espírito de ciência e de presciência tão grandes para conhecer o passado e o futuro, como conheço qualquer canto popular, esse espírito nos encheria de extraordinária admiração e espanto. Nada, com efeito, lhe seria oculto no passado e nos séculos vindouros, exatamente como, ao entoar essa melodia, sei tudo o que cantei desde o começo, e tudo o que falta cantar até o fim. Mas longe de MIM a ideia de identificar um tal conhecimento àquele que tens de todas as coisas futuras e passadas, ó Criador do Universo, Criador dos espíritos e dos corpos. Tua ciência é incomparavelmente mais admirável e mais misteriosa. Confissões XI, XXXI

Que a humildade de minha língua confesse à tua grandeza que criaste o céu e a terra; este céu que vejo, esta terra que piso, e de onde tiraste a terra que trago em MIM. sim, criaste tudo isto. Confissões XII, II

Ó Verdade, luz de meu coração, faze com que se calem as minhas trevas. Deixei-me cair nelas e fiquei às escuras; mas, mesmo do fundo desse abismo, eu te amei ardentemente. Andei, errante, mas lembrei de ti. Ouvi tua voz atrás de MIM, que me exortava a que voltasse; mas dificilmente podia escutá-la, por causa do tumulto de minha alma. e agora, eis que, ardente e anelante, volto à tua fonte. Que ninguém mo impeça; beberei de sua água, e assim viverei. Que não seja eu minha própria vida! Vivi mal por minha culpa, e fui a causa de minha morte. Em ti eu revivo! Fala-me, ensina-me. Creio em teus livros, e tuas palavras encerram profundos mistérios. Confissões XII, X

Já me disseste, Senhor, com voz forte ao ouvido de minha alma, que és eterno, e que só tu possuis a imortalidade, porque não mudas nem de forma, nem de movimento; tua vontade não varia conforme o tempo, pois a vontade mutável não é imortal. Esta verdade me é clara em tua presença. Peço-te que ela se torne para MIM cada vez mais clara, e sob tuas asas eu me mantenha atento a esta evidência. Confissões XII, XI

Também disseste, Senhor, com voz forte ao ouvido de minha alma, que todas as naturezas, todas as substâncias que não são o que és, mas que existem, tu as criaste; que só o nada não provém de ti, assim como o movimento de uma vontade que se afasta de ti, Ser supremo. Enfim, que nenhum pecado te causa dano, nem perturba a ordem de teu império, superior ou inferior. Essa verdade é clara para MIM em tua presença. Peço-te que se torne para MIM cada vez mais clara, e que sob tuas asas eu me mantenha atento a esta evidência. Confissões XII, XI

Que são teus dias, senão tua eternidade, como teus anos que não passam, porque és sempre o mesmo? Por isso, digo, faça compreender à alma, se possível, como tua eternidade transcende todos os temos. Tua morada, que nunca se afastou de ti, embora não te tendo co-eterna, graças à sua incessante e ininterrupta união contigo, não padece de vicissitudes do tempo. Essa verdade é clara para MIM em tua presença. Peço-te que se torne para MIM cada vez mais clara, e que sob tuas asas eu me mantenha atento a esta evidência. Confissões XII, XI

Quero discutir diante de ti apenas com os que reconhecem por verdadeiras as afirmações que tua verdade revelou à minha inteligência. Os que o negam, que ladrem quanto quiserem, até ficar roucos. Tentarei persuadi-los a que se acalmem, e deem acesso em seus corações à tua palavra. Se não o quiserem e me repelirem, peço-te, meu Deus, que não te cales, não te afastes de MIM. fala com verdade em meu coração, porque só tu podes falar assim. E eu os deixarei fora, soprando o e levantando terra contra os próprios olhos. Retirar-me-ei em MIM mesmo, levantando a ti cânticos de amor, soluçando altos gemidos durante meu exílio, lembrando-me de Jerusalém, voltando para ela meu coração — Jerusalém, minha pátria e minha mãe — e para ti, que reinas sobre ela, seu pai, sua luz, seu tutor, seu esposo, suas castas e grandes delícias, sua firme alegria, enfim, todos seus bens inefáveis, porque és o único, soberano e verdadeiro Bem. Não me apartarei de ti até que reúnas todas as partes dispersas e deformadas do meu ser na paz dessa mãe muito amada, onde estão as primícias de meu espírito, e de onde me vêm todas as certezas, e nela me reformes e confirmes por toda a eternidade, ó meu Deus, minha misericórdia. Confissões XII, XVI

Ouço e considero todas essas teorias, mas não quero discutir por questões de palavras, o que não serve para nada, senão para a confusão dos ouvintes. Pelo contrário, a lei é boa para a edificação se dela se faz uso legítimo, porque sua finalidade é a caridade que nasce de um coração puro, de uma boa consciência e de uma não fingida. Nosso Mestre sabe quais dos dois preceitos em que resumiu toda a lei e os profetas. A MIM, que observo com zelo tais preceitos, ó meu Deus, luz de meus olhos na escuridão, que me importa que possa que possa encontrar sentidos diferentes para essas palavras, se todos são verdadeiros? Que me interessa, digo eu, que outros compreendam o texto de Moisés de modo diferente do meu? Nós todos que o lemos procuramos indagar e compreender o pensamento do autor. E como o julgamos verídico, não ousamos admitir que ele pusesse dizer o que sabemos ou o que consideramos falso. Confissões XII, XVIII

Quanto à primeira opinião, longe de MIM todos que têm como verdades os seus erros! Quanto à segunda, longe de MIM todos os que julgam falsidade o que Moisés disse. Possa eu unir-me em ti, alegrar-me em ti, Senhor, com aqueles que se alimentam de tua verdade na imensidão da caridade. Aproximemo-nos juntos das palavras de teu Livro, procurando tua vontade nas intenções de teu servo, a cuja pena as revelaste. Confissões XII, XXIII

É diante de ti que falo, e na presença de meus irmãos que usam legitimamente da lei, cujo fim á caridade. Escuta e vê o que lhes digo, se é de teu agrado. Eis as palavras fraternas e de paz que lhe dirijo: “Quando ambos vemos que tuas palavras são verdadeiras, ou as minhas palavras são verdadeiras, pergunto: onde o vemos? Certamente não é em ti que eu a vejo, nem tampouco é em MIM que tu a vês. Ambos a vemos na verdade imutável, que está acima de nossas inteligências”. Confissões XII, XXV

Todavia, meu Deus, que me elevas em minha pequenez, que descansas minha fadiga, que ouves minhas confissões e perdoas meus pecados, tu me ordenas que eu ame a meu próximo como a MIM mesmo; não posso crer que Moisés, teu servo tão fiel, tenha sido aquinhoado com menos dons do que eu teria desejado e apetecido se tivesse nascido em seu tempo, e me tivesses confiado a tarefa de te servir com meu coração e minha língua, e disseminar essas Escrituras. Estas, tanto tempo depois, deviam ser úteis a todos os homens e, pelo mundo afora, triunfar com o prestígio de sua autoridade sobre as afirmações das doutrinas falsas e orgulhosas. Confissões XII, XXVI

Por MIM, digo-o sem hesitar e do fundo do coração: se, investido da mais alta autoridade, tivesse algo a escrever, preferiria fazê-lo de modo que minhas palavras proclamassem tudo o que cada um pudesse conceber de verdadeiro sobre isso, em vez de propor um significado único e claro que excluísse todos os demais, cuja falsidade não me pudesse ofender. E também não quero, meu Deus, ser tão temerário a ponto de acreditar que esse grande homem não mereceu de ti essa graça. Confissões XII, XXXI

Senhor, apagaste todos os meus delitos para não ter de punir o que fizeram minhas iníquas mãos, e te antecipaste a meus atos meritórios para me recompensar do que fizeram tuas mãos, que me criaram; de fato, existias antes de MIM, e eu não era digno de receber de ti o ser. Confissões XIII, I

Contudo, eis que existo, graças à tua bondade que precedeu tudo o que sou e do que me fizeste. Não tinhas necessidade de MIM, eu não sou um bem que te possa ser útil, meu Senhor e meu Deus. Se estou a teu serviço, não é porque a ação te cansa ou porque teu poder, privado de meus serviços, diminua; nem porque meu culto seja para ti o que é a cultura para a terra, que sem ela ficaria estéril. Eu devo te honrar para ser feliz em ti, a quem devo meu ser, capaz de felicidade. Confissões XIII, I

Dá-te a MIM, meu Deus, entrega-te a MIM. Eu te amo. Se meu amor é pouco, faze que eu te ame com mais força. Não posso medir, não posso saber o que falta a meu amor para que seja suficiente para que minha vida corra para teus braços, e dali não saia antes de se esconder no segredo do teu rosto. Confissões XIII, VIII

Se isto reconheço: tudo me corre mal onde tu não estás, não somente à minha volta, mas até em MIM mesmo; e toda a abundância que não é meu Deus, para não passa de indigência. Confissões XIII, VIII

Também eu pergunto: “Onde estás, meu Deus? Onde estás?” — Respiro um pouco de ti quando minha alma se expande dentro de MIM mesmo em gritos de exaltação e de louvor, verdadeiro canto de festa. — Mas ela ainda está triste, porque torna a cair e a ser abismo, ou melhor, porque sente que ainda é abismo. Confissões XIII, XIV

Quer dizer, então, ó minha Luz, ó Verdade? Que tais palavras carecem de senso e foram ditas em vão? De nenhum modo, ó Pai de misericórdia. Longe de MIM, longe do servidor de teu Verbo, uma tal afirmação! Apenas não compreendo o sentido dessas palavras, e espero que os melhores que eu, ou seja, os mais inteligentes, a entendam melhor, segundo a sabedoria que deste, meu Deus, a cada um. Que te agrade ao menos a confissão, que faço diante de ti, de minha certeza de que não falaste em vão aquelas palavras. Confissões XIII, XXIV

Nutrem-se com esses alimentos os que neles se alegram; não encontram neles alegria os homens cujo deus é seu ventre. E até entre os que ofertam esses frutos, o fruto não é o que eles dão, mas o espírito com que o oferecem. Por isso, naquele que servia a seu Deus e não a seu ventre percebo claramente a fonte de sua alegria; e participo fortemente de seu regozijo. Paulo recebera os presentes que os filipenses lhes tinham mandado por intermédio de Epafrodito. Vejo bem a razão de sua alegria. E é dela que se nutria, porque ele diz com verdade: “Alegrei-me muito no Senhor, vendo enfim reflorescer para MIM vossa estima, da qual já andáveis desgostados”. Confissões XIII, XXVI

Mas ela fala no tempo, enquanto este não atinge o meu verbo, que permanece em MIM, eterno como eu. Assim, o que vês por meu Espírito, sou eu quem o vê; o que dizes por meu Espírito, sou eu quem o diz. Mas o que vês no tempo, eu não vejo no tempo; e o que dizes no tempo, eu não digo no tempo.” Confissões XIII, XXIX