E antes desse tempo, minha doçura e meu Deus, que era eu? Fui alguém, ou era parte de alguma coisa? Dize-mo, porque não tenho quem me responda, nem meu pai, nem minha mãe, nem a experiência dos outros, nem minha MEMÓRIA. Acaso te ris de mim, porque desejo saber estas coisas, e me mandas que te louve e te confesse pelo que conheci de ti? Confissões I, VI
Eu te confesso, Senhor dos céus e da terra, louvando-te por meus princípios e por minha infância, de que não tenho MEMÓRIA, mas que, por tua graça, o homem pode conjectura de si pelos outros, crendo em muitas coisas, ainda que confiado na autoridade de humildes mulheres. Confissões I, VI
Assim, pois, quando chamavam alguma coisa pelo nome, eu a retinha na MEMÓRIA e, ao se pronunciar de novo a tal palavra, moviam o corpo na direção do objeto, eu entendia e notava que aquele objeto era o denominado com a palavra que pronunciavam, porque assim o chamavam quando o desejavam mostrar. Confissões I, VIII
Contudo, pecávamos por negligencia escrevendo ou lendo, estudando menos do que nos era exigido; e não era por falta de MEMÓRIA ou de inteligência, que para aquela idade, Senhor, me deste de modo suficiente, senão porque eu gostava de brincar, embora os que nos castigavam não fizessem outra coisa. Mas os jogos dos mais velhos chamavam-se negócios, enquanto que os dos meninos eram por eles castigados, sem que ninguém se compadecesse de uns e de outros, ou melhor, de ambos. Um juiz sensato poderia aprovar os castigos que eu, menino, recebia porque jogava bola, e porque com este jogo atrasava o aprendizado das letras, com as quais, adulto haveria de jogar menos inocentemente? Confissões I, IX
Não queria ser enganado, tinha boa MEMÓRIA, e me ia instruindo com a conversação. Alegrava-me com a amizade, fugia à dor, ao desprezo, à ignorância. E não seria isto, em tal criatura, digno de admiração e de louvor? Pois todas essas coisas são dons do meu Deus, que eu não dei a mim mesmo. E todos são bons, e tudo isso constitui o meu eu. Confissões I, XX
Quero recordar minhas torpezas passadas e as degradações carnais de minha alma, não porque as ame, mas por te amar, ó meu Deus. É por amor de teu amor que o faço, percorrendo com a MEMÓRIA amargurada, aqueles meus perversos caminhos, para que tu me sejas doce, doçura sem engano, ditosa e eterna doçura. Resgata-me da dispersão em que me dissipei quando, afastando-me de tua unidade, me desvaneci em muitas coisas. Confissões II, I
E agora pergunto, meu Deus: que é que me deleitava no furto? Pois não encontro nenhuma beleza nele. Já não falo da beleza que reside na justiça e na prudência, nem sequer da que resplandece na inteligência do homem, na MEMÓRIA, nos sentidos ou na vida vegetativa; nem da que brilha nos magníficos astros em suas órbitas, ou na terra e no mar, cheios de criaturas, que nascem para sucederem umas às outras; nem sequer da defeituosa e sombria formosura dos vícios enganadores. Confissões II, VI
E isto, Senhor, me ensinou ele, ou melhor, me ensinaste por teu intermédio, e delineaste em minha MEMÓRIA o que eu mesmo mais tarde devia procurar. Mas então, nem ele, nem meu caríssimo Nebrídio, jovem muito bom e casto, que zombava de toda aquela arte divinatória, puderam me convencer a abandoná-la, porque ainda impressionava-me mais a autoridade daqueles autores. Não tinha eu encontrado ainda o argumento evidente que procurava, que me demonstrasse sem ambiguidade que os presságios acertados dos astrólogos são obra da sorte ou casualidade, e não da arte de observar os astros. Confissões IV, III
Antecedera-o a fama de homem erudito em toda espécie de ciência, e particularmente instruído nas artes liberais. E como eu tinha lido muitas teorias dos filosofo, e as guardava na MEMÓRIA, quis comparar algumas destas com as grandes fábulas do maniqueísmo. Pareciam-me mais prováveis as doutrinas daqueles que chegaram a conhecer a ordem do mundo, embora não tivessem encontrado a seu Criador. Porque tu és grande, Senhor, e pondes os olhos nas coisas humildes, e as elevadas as conheces de longe, e não te aproximas senão dos contritos de coração. Nem és encontrado pelos soberbos, ainda que sua curiosa perícia seja capaz de contar as estrelas do céu e as areias do mar; seja capaz de medir as regiões do céu e de investigar o curso dos astros. Confissões V, III
Diante de ti estão meu coração e minha MEMÓRIA, e que já então guiavas no segredo oculto de tua providência, pondo diante de meus olhos meu erros vergonhosos, para que os visse e odiasse. Confissões V, VI
Contudo, como se recusasse a voltar sem mim, apenas pude persuadi-la a permanecer aquela noite em uma capela próxima a nosso navio, consagrada à MEMÓRIA de São Cipriano. Mas naquela mesma noite parti às escondidas, deixando-a orar e a chorar. E que te pedia ela, meu Deus, com tantas lágrimas, senão que me impedisses de navegar? Mas tu, de visão infinitamente mais ampla, entendendo o intuito de seu desejo, não atendeste ao que ela então te pedia, para fazer em mim aquilo que sempre te pedia. Confissões V, VIII
Contudo, essa aventura gravara-se em sua MEMÓRIA como remédio para o futuro. o mesmo ocorreu com outro fato, quando ainda era estudante em Cartago, e seguia meus cursos. Confissões VI, IX
Repelido para longe de ti, compreendi em que consistia essa verdade, que as trevas de minha alma me impediam de contemplar. Estava certo de tua existência e de que és infinito, sem contudo te estenderes por espaços finitos ou infinitos; e de que és verdadeiramente aquele que é sempre idêntico a si mesmo, sem te mudares em outro, nem sofrer alteração alguma, quer parcialmente ou com algum movimento, quer de qualquer outro modo; e de que tudo o mais vem de ti, pela única e irrefutável razão de que existe. Tinha certeza de todas estas verdades, mas me achava ainda demasiado fraco para gozar de ti. Tagarelava muito, como se fora competente nisso, mas se não procurasse o caminho da verdade em Cristo, nosso Salvador, não seria perito, mas perituro. Já começava a querer parecer sábio, cheio de meu castigo, e não chorava, mas orgulhava-me com a ciência. Onde estava aquela caridade erigida sobre o alicerce da humildade, que é Cristo Jesus? Ou talvez me a ensinariam aqueles livros? Creio que quiseste que com eles me encontrasse antes de meditar nas tuas Escrituras, para que fixassem em minha MEMÓRIA os afetos que nela experimentei. Depois, quando encontrasse em teus livros a paz do coração, sarada com tuas mãos as feridas de minha alma, pudesse discernir e perceber a diferença entre presunção e humildade, entre os que veem para onde se deve ir, e não veem por onde se vai, nem o caminho que conduz à pátria bem-aventurada, não só para contemplá-la, mas também para habitá-la. Confissões VII, XX
Graças te dou, meu Deus! De onde e para onde guiaste minha MEMÓRIA, para que também te confessasse estes acontecimentos que, embora grandes, eu já havia esquecido e omitido? Confissões IX, VII
Quando o corpo foi levado à sepultura, fui e voltei sem derramar uma lagrima. Nem mesmo nas orações que te fizemos, quando oferecemos o sacrifício de nossa redenção por intenção da morta, cujo cadáver jazia junto ao sepulcro antes de ser inumado, como ali é costume, nem mesmo nessas orações, chorei. Mas durante todo o dia andei oprimido por grande tristeza interior; pedia-te como podia, com a mente perturbada, que aliviasses minha dor. Mas não me atendias, sem dúvida para que fixasse, bem na MEMÓRIA, ao menos por esta única experiência, como são poderosos os laços do costume, mesmo em uma alma que já não se alimentava de palavras enganadoras. Confissões IX, XII
Chegarei assim diante dos campos, dos vastos palácios da MEMÓRIA, onde estão os tesouros de inúmeras imagens trazidas por percepções de toda espécie. Lá também estão armazenados todos os nossos pensamentos, quer aumentando, quer diminuindo, ou até alterando de algum modo o que nossos sentidos apanharam, e tudo o que aí depositamos, se ainda não foi sepultado ou absorvido no esquecimento. Confissões X, VIII
Quando ali penetro, convoco todas as lembranças que quero. Algumas se apresentam de imediato, outras só após uma busca mais demorada, como se devessem ser extraídas de receptáculos mais recônditos. Outras irrompem em turbilhão e, quando se procura outra coisa, se interpõem como a dizer: “Não seremos nós que procuras?” Eu as afasto com a mão do espírito da frente da MEMÓRIA, até que se esclareça o que quero, surgindo do esconderijo para a vista. Confissões X, VIII
Há imagens que acodem à mente facilmente e em sequência ordenada à medida que são chamadas, as primeiras cedendo lugar às seguintes, e desaparecem, para se apresentarem novamente quando eu o quiser. É o que sucede quando conto alguma coisa de MEMÓRIA. Confissões X, VIII
Ali se conservam também, distintas em espécies, as sensações que aí penetraram cada qual por sua porta: a luz, as cores, as formas dos corpos, pelos olhos; toda espécie de sons, pelos ouvidos; todos os odores, pelas narinas; todos os sabores, pela boca; enfim, pelo tato de todo o corpo, o duro e o brando, o quente e o frio, o suave e o áspero, o pesado e o leve, quer extrínseco, como intrínseco ao corpo. A MEMÓRIA armazena tudo isso em seus vastos recessos, em suas secretas e inefáveis sinuosidades, para lembrá-lo e trazê-lo à luz conforme a necessidade. Todas essas imagens entram na MEMÓRIA por suas respectivas portas, sendo ali armazenadas. Confissões X, VIII
Todavia, não são as coisas em si que entram na MEMÓRIA, mas as imagens das coisas sensíveis, que ali ficam à disposição do pensamento que as evoca. Mas quem poderá explicar como se formaram tais imagens, apesar de se conhecer o sentido pelo qual foram captadas e escondidas em seu íntimo? Pois, mesmo quando estou em silêncio e no escuro, imagino, se quiser, as cores, e sei distinguir o branco do preto, e todas as outras entre si; e isto sem que os sons, mesmo os lembrados, perturbem minhas imagens visuais, e permanecem como que a parte. Confissões X, VIII
Tudo isto realizo interiormente, no imenso palácio da MEMÓRIA. Ali eu tenho às minhas ordens o céu, a terra, o mar, com tudo o que neles pude perceber, com exceção do que já me esqueci. Ali encontro a mim mesmo, recordo de mim e de minhas ações, de seu tempo e lugar, e dos sentimentos que me dominavam ao praticá-las. Ali encontro a mim mesmo, recordo de mim e de minhas ações, de seu tempo e lugar, e dos sentimentos que me dominavam ao praticá-las. Ali estão todas as lembranças do que aprendi, quer pelo testemunho alheio, quer pela experiência. Confissões X, VIII
“Farei isto ou aquilo” — digo para mim, nesse vasto universo de minha alma, repleto de imagens de tantas e tão grandes coisas. E disso tiro esta ou aquela conclusão. “Oh! Se acontecesse isto ou aquilo!” “Queira Deus não aconteça isto ou aquilo!” isto digo em meu íntimo, e nisso visualizando as imagens das realidades que exprimo, saídas do mesmo tesouro da MEMÓRIA; sem elas, nada poderia dizer. Confissões X, VIII
Grande é realmente o poder da MEMÓRIA, prodigiosamente grande, meu Deus! É um santuário amplo e infinito. Quem o pôde sondar até suas profundezas? É um poder próprio de meu espírito, que pertence à minha natureza; mas eu não sou capaz de compreender inteiramente o que sou. Será o espírito demasiado estreito para se conter a si mesmo? Onde, então, está o que ele não pode conter de si? Estaria fora dele, e não nele? Como então não o contém? Confissões X, VIII
Esta ideia me provoca grande admiração, e me enche de espanto. Viajam os homens para admirar as alturas dos montes, as grandes ondas do mar, as largas correntes dos rios, a imensidão do oceano, a órbita dos astros, e se esquecem de si mesmos! Nem se admiram que eu fale dessas coisas sem vê-las com os olhos; contudo, eu não as poderia mencionar se esses montes, se essas ondas, esses rios, esses astros, que eu vi, se esse oceano, no qual acredito pelo testemunho alheio, eu não os visse na MEMÓRIA em toda sua dimensão, como se estivessem diante de mim. mas quando eu os vi com meus olhos, eu não os absorvi; não são as coisas que se encontram dentro de mim, mas apenas suas imagens. E sei por qual sentido do corpo recebi a impressão de cada uma delas. Confissões X, VIII
E não se limita a isto a imensa capacidade de minha MEMÓRIA. Ali estão, como em um lugar recôndito, que alias, não é um lugar, todas as noções aprendidas das artes liberais, pelo menos as que ainda não esqueci. Mas, neste caso, não são as imagens delas que trago em mim, mas as próprias realidades em si. As noções de literatura, a dialética, as diferentes espécies de questões, tudo o que sei a respeito desses problemas estão em minha MEMÓRIA, mas não estão ali como a imagem solta de uma coisa, cuja realidade se deixou fora. Nesse caso seria como um som que se ouve e passa, como a voz que deixa no ouvido um rastro, que permite que a lembremos, como se ainda soasse embora já não soe; ou como o perfume que, ao passar e desvanecer-se no ar, atinge o olfato e grava sua imagem na MEMÓRIA, imagem que a lembrança reproduz; ou como o alimento, que perde o sabor no estômago, mas o conserva na MEMÓRIA; ou como um corpo que se sente pelo tato e que, ausente, é imaginado pela MEMÓRIA. Todas essas realidades não nos penetram a MEMÓRIA, mas tão somente são captadas as suas imagens com maravilhosa rapidez, e dispostas, digamos, em compartimentos admiráveis, de onde são extraídas pelo milagre da lembrança. Confissões X, IX
Ouço dizer que há três gêneros de questões a saber: se uma coisa existe, qual a sua natureza e qual sua qualidade — retenho a imagem dos sons de que se compõem estas palavras, e sei que estes atravessaram o ar como ruído, e já não existem. Mas as realidades significadas por tais palavras, eu jamais atingi com nenhum sentido do corpo, nem as vi em nenhuma parte fora de meu espírito; o que gravei na minha MEMÓRIA não são suas imagens, mas as próprias realidades. Que me digam, se o puderem, por onde entraram em mim! percorro em vão todas as portas do meu corpo, e não descubro por onde poderiam ter entrado. Com efeito: os olhos dizem: “Se são coloridas, fomos nós que as transmitimos.” — Os ouvidos dizem: “Se eram sonoras, foram por nós comunicadas”. — As narinas dizem: “Se tinham cheiro, passaram por aqui”. — E o gosto diz: “Se não têm sabor, nada me perguntem”. — O tato declara: “Se não são corpóreas, eu não as toquei, e portanto não poderia revelá-las” Confissões X, X
De onde, então, e por onde entraram em minha MEMÓRIA? Ignoro-o. Aprendi-as não dando crédito ao testemunho alheio, mas as reconheci em mim e aprovei-as como verdadeiras; confias a meu espírito como em depósito, de onde poderei tirá-las quando quiser. Estavam pois ali, antes mesmo que eu as aprendesse, mas não na MEMÓRIA. E onde estavam então? E porque, ao serem mencionadas, eu as reconheci e disse: “É assim mesmo, é verdade” — senão porque já estavam em minha MEMÓRIA? Mas tão escondidas e sepultadas em tão secretos recessos, que se alguém não as arrancasse dali com suas perguntas, talvez eu nem pudesse concebê-las. Confissões X, X
Por isso descobrimos que adquirir tais noções — cujas imagens não atingimos por meio dos sentidos mas que percebemos em nós, sem o auxílio de imagens, tais como são em si mesmas, nada mais é do que coligir com o pensamento os elementos esparsos na MEMÓRIA e, pela reflexão, obrigá-los a estarem sempre disponíveis à MEMÓRIA, onde antes se ocultavam em desordem e abandono, de modo que se apresentem sem dificuldade ao chamado do nosso espírito. E quantas noções deste tipo não encerra minha MEMÓRIA, já descobertas e, como disse, postas como que à mão; eis o que chamamos de “aprender” e “saber”. Se porém deixo de as recordar por uns tempos, de tal modo submergem e se dispersam em seus profundos esconderijos, que é preciso reuni-las uma segunda vez, como se fossem novas (cogente) — pois não têm outra habitação — e juntá-las de novo para que possam ser objeto do saber; isto é: preciso tirá-las de sua condição de dispersão e juntá-las novamente. Daí a palavra cogitare, porque cogo e cogito são como ago e agito, e facio, facito. Contudo, a inteligência reivindicou essa palavra (cogito) para si, de modo que essa operação de coligir, de reunir no espírito, e não em outra parte, é propriamente o que se chama pensar (cogitare). Confissões X, XI
A MEMÓRIA guarda também as relações e inumeráveis leis dos números e dimensões, sendo que nenhuma dessas ideias foi impressa em nós pelos sentidos do corpo, porque não têm cor, nem som, nem têm cheiro, nem gosto, nem são tangíveis. Ouço, quando elas se fala, os sons das palavras que as exprimem; mas uma coisa são os sons, e outra bem diferente são as ideias que elas significam. As palavras soam de modo diferente em grego e em latim; mas as ideias nem são gregas, nem latinas, nem de nenhuma outra língua. Confissões X, XII
Tudo isso eu guardo em minha MEMÓRIA, assim como o modo pelo qual o aprendi. Confissões X, XIII
Também guardo na MEMÓRIA as muitas argumentações infundadas que ouvi contra essas verdades. Essas objeções sem dúvida são falsas, mas não é falso recordá-las. E lembro de ter sabido distinguir entre essas verdades e os erros que se lhe opunham. Vejo agora que uma coisa é essa distinção, que faço hoje, e outra o recordar ter feito muitas vezes tal distinção, ao considerá-las. Lembro-me, portanto, de ter muitas vezes compreendido isso, e confio à MEMÓRIA o ato atual de distingui-las e compreendê-las, para me lembrar, mais tarde, de que hoje as compreendi. Lembro-me então de que me lembrei; e se mais tarde lembrar de que agora pude recordar essas coisas, será ainda por força da MEMÓRIA. Confissões X, XIII
Essa mesma MEMÓRIA conserva também os afetos da alma, não do modo como os sente a alma quando da vivencia, mas de modo muito diverso, segundo o exige a força da MEMÓRIA. Confissões X, XIV
Porém, aqui o espírito é a própria MEMÓRIA. Quando confiamos uma tarefa a alguém, dizemos: “Não o guardei no espírito”, “fugiu-me do espírito”. É, portanto, a MEMÓRIA que chamamos de espírito. Sendo assim, por que ao evocar com alegria uma tristeza passada, meu espírito sente alegria e minha MEMÓRIA, tristeza? Se meu espírito se alegra com a alegria que tem em si, por que a MEMÓRIA não se entristece com a tristeza, que também tem em si? Seria a MEMÓRIA estranha ao espírito? Quem ousará afirmá-lo? Sem dúvida a MEMÓRIA é como o estômago da alma, e a alegria e a tristeza são como alimentos, doce ou amargo; quando tais emoções são confiadas à MEMÓRIA, depois de passarem, digamos, por esse estômago, podem ali serem guardadas, mas já perderam o sabor. Seria ridículo comparar emoções e alimento como semelhantes. Contudo, elas não são totalmente diferentes. Confissões X, XIV
É ainda da MEMÓRIA que tiro a distinção entre as quatro emoções da alma: o desejo, a alegria, o medo e a tristeza. Assim, todo raciocínio que eu teça, dividindo cada uma delas nas espécies de seus gêneros, definindo-as, é na MEMÓRIA que encontro o que tenho a dizer, e de lá tiro tudo o que digo. Contudo, ao recordar essas emoções, não me perturbo com nenhuma delas. Confissões X, XIV
E antes mesmo que eu as recordasse para discuti-las, elas ali estavam, e por isso puderam ser tiradas da MEMÓRIA mediante a lembrança. Talvez a lembrança tire da MEMÓRIA essas emoções como o ato de ruminar tira do estômago os alimentos. Mas então, por que aquele que rumina sobre tais paixões não sente na boca do pensamento a doçura da alegria ou a amargura da tristeza? Estará justamente nisto a diferença entre tais fatos? De fato, quem gostaria de falar dessas emoções se, todas as vezes que falássemos do medo ou da tristeza, nos víssemos tristes ou temerosos? Confissões X, XIV
Contudo, certamente não poderíamos falar deles se não encontrássemos na MEMÓRIA não só os sons dessas palavras, segundo a imagem gravada em nós pelos sentidos, mas ainda as noções que elas exprimem. Essas noções, nós não a recebemos por nenhuma porta da carne, mas a própria alma, sentindo-as pela experiência das próprias emoções, confiou-as à MEMÓRIA; ou então a própria MEMÓRIA as reteve, sem que ninguém lhas confiasse. Confissões X, XIV
Por exemplo: se digo pedra, ou digo sol, sem que tais objetos estejam presentes a meus sentidos, certamente tenho suas imagens na MEMÓRIA, à minha disposição. Confissões X, XV
Evoco uma dor do corpo, que está ausente de mim, já que nada me dói. Contudo, se a imagem da dor não estivesse em minha MEMÓRIA, não saberia o que dizia, e ao raciocinar não a distinguiria do prazer. Confissões X, XV
Falo de saúde do corpo, estando são; neste caso, está em mim o próprio objeto. No entanto, se sua imagem não estivesse em minha MEMÓRIA, de modo algum lembraria o significado dessa palavra. Os doentes, ouvindo falar de saúde, não saberiam do que se trata, não fosse o poder da MEMÓRIA a conservar a imagem da ausência da realidade. Confissões X, XV
Falo dos números com que calculamos, e eles se apresentam na MEMÓRIA, não suas imagens, mas os próprios números. Confissões X, XV
Evoco a imagem do sol, e esta se apresenta à minha MEMÓRIA; e não evoco a imagem de uma imagem, mas a própria imagem, disponível à recordação. Confissões X, XV
Falo em MEMÓRIA, e reconheço o que falo, mas de onde o sei, senão da própria MEMÓRIA? Confissões X, XV
E quando falo do esquecimento, e reconheço de que falo, como poderia eu reconhecê-lo se dele não lembrasse? Não falo do som da palavra, mas da realidade que ela exprime. Se eu a tivesse esquecido, não seria capaz de reconhecer o significado de tal som. Por isso, quando me lembro da MEMÓRIA é por ela mesmo que se apresenta a mim; mas quando me lembro do esquecimento, este e a MEMÓRIA estão presentes simultaneamente: a MEMÓRIA, com que me recordo, e o esquecimento, de que me recordo. Confissões X, XVI
Mas, que é o esquecimento, senão falta de MEMÓRIA? E como pode ele estar presente na minha lembrança. Se sua lembrança significa não lembrar? Mas se nos lembramos, o guardamos na MEMÓRIA, e se nos é impossível reconhecer o que significa a palavra esquecimento, quando a ouvimos, a não ser que dele nos lembremos, logo a MEMÓRIA é a que retém o esquecimento. Ele está na MEMÓRIA, pois do contrário, nós o esqueceríamos; mas, ele presente, nós nos esquecemos. Segue-se que ele não está presente à MEMÓRIA por si mesmo, quando nos lembramos dele, mas por sua imagem. Do contrário, o esquecimento não faria com que nos lembrássemos, mas com que nos esquecêssemos. Mas, enfim, quem poderá descobrir, quem poderá compreender o modo como isto se realiza? Confissões X, XVI
Mas, Senhor, esgota-me esta busca e é, portanto, sobre mim mesmo que me canso; tornei-me para mim mesmo uma terra de dificuldades e árduos labores. Por que não exploro agora as regiões do firmamento, nem meço as distâncias dos astros, nem busco as leis do equilíbrio da terra. Sou eu que me lembro, eu, o meu espírito. Não é de admirar que esteja longe de mim tudo o que não sou eu. Todavia, que há mais perto de mim do que eu mesmo? No entanto, é-me impossível compreender a natureza de minha MEMÓRIA, sem a qual eu nem poderia pronunciar meu próprio nome. Confissões X, XVI
Que direi então, desde que tenho a certeza que lembro do esquecimento? Diria talvez que não está em minha MEMÓRIA o que recordo? Ou talvez direi que o esquecimento está em minha MEMÓRIA, para que não o esqueça? Ambas hipóteses são grandes absurdos. Vejamos uma terceira hipótese: poderei eu afirmar que minha MEMÓRIA retém a imagem do esquecimento, e não o esquecimento em si, quando dele me lembro? Com que fundamento, pois, poderei dizê-lo, se para que se grave na MEMÓRIA a imagem de um objeto, é necessário que este esteja presente antes, de onde emana a imagem a ser gravada? É assim que lembro de Cartago, e assim de todos os outros lugares por que passei; assim me lembro do rosto dos homens que vi e das coisas que meus sentidos me deram a conhecer; assim me lembro ainda da dor física, coisas cujas imagens a MEMÓRIA fixou quando estavam presentes, para que eu as pudesse contemplar e repassar em espírito, quando eu as evocasse na sua ausência. Confissões X, XVI
Se, pois, é a imagem do esquecimento que está na MEMÓRIA, e não ele mesmo, é evidente que nalgum momento esteve presente para que sua imagem fosse fixada. Mas, se estava presente, como podia gravar na MEMÓRIA sua imagem, se o esquecimento apaga com sua presença tudo o que lá está impresso? Contudo, seja qual for o mecanismo desse fenômeno, e por mais incompreensível e inexplicável que seja, estou certo de que me lembro do esquecimento, que apaga da MEMÓRIA, todas as nossas lembranças. Confissões X, XVI
Grande é o poder da MEMÓRIA! E ela tem algo de terrível, meu Deus, em sua complexidade infinita e profunda. E isto é o espírito, e isto sou eu mesmo. Que sou, pois meu Deus? Qual a minha natureza? Vida vária e multiforme, de amplidão imensa. Eis-me em minha MEMÓRIA, em seus campos, antros, inumeráveis cavernas, tudo isso infinitamente cheio de toda espécie de coisas, também inumeráveis. Umas gravadas em imagens, como os corpos; outras, estão sob a forma de não sei que noções e sinais, como os afetos da alma, que a MEMÓRIA conserva quando a alma já não os sente, embora tudo o que está na MEMÓRIA esteja também no espírito. Percorro em todas as direções este mundo interior, vou de um lado para outro, e nele me aprofundo o mais possível, sem encontrar-lhe os limites, tão grande é a vida que reside no homem mortal! Que hei de fazer, pois, meu Deus, minha verdadeira vida? Ultrapassarei também esta faculdade que se chama MEMÓRIA? Ultrapassa-la-ei para chegar a ti, doce luz? Que dizes? Confissões X, XVII
Subindo em espírito a ti, que estás acima de mim, ultrapassarei também esta minha força, que se chama MEMÓRIA, pois quero atingir-te onde és acessível, e unir-me a ti por onde possa fazê-lo. Confissões X, XVII
Também os animais e as aves têm MEMÓRIA, porque de outro modo não voltariam a seus ninhos e tocas, nem fariam outras coisas habituais, e nem mesmo poderiam adquiri hábitos sem a MEMÓRIA. Passarei, pois, além da MEMÓRIA para chegar àquele que me separou dos animais e me fez mais sábio que as aves do céu. Passarei além da MEMÓRIA, mas onde te hei de achar, ó Deus verdadeiramente bom, suavidade segura? Onde te hei de encontrar? Se te encontro sem minha MEMÓRIA, estou esquecido de ti, e se não me lembro de ti, como te poderei encontrar? Confissões X, XVII
Se alguma coisa desaparece de nossa vista, e não da MEMÓRIA — como sucede com um corpo visível — conservamos interiormente sua imagem e o procuramos até que apareça a nossos olhos. Quando for encontrado, será reconhecido de acordo com essa imagem interior. Não podemos dizer que encontramos um objeto perdido se não o reconhecemos; nem o podemos reconhecer se dele não lembramos. Tinha pois desaparecido da nossa vista, mas era conservado pela MEMÓRIA. Confissões X, XVIII
E quando a própria MEMÓRIA perde uma lembrança, como acontece quando nos esquecemos de algo e procuramos recordá-la, o que se passa? Onde, afinal, a procuramos senão na própria MEMÓRIA? E se esta, por acaso, nos oferece uma coisa por outra, a repelimos até que apareça o que buscamos. E assim que aparece dizemos: “É isto”. E assim não diríamos se não a reconhecêssemos, e não a reconheceríamos se dela não houvesse registro. É certo, portanto, que já a havíamos esquecido. Ou será que ela não se apagara totalmente de nossa MEMÓRIA, por meio da parte que nos ficou impressa procuramos a outra? A MEMÓRIA, nesse caso, teria ciência de não poder, como de ordinário, fornecer a lembrança em seu conjunto e, mutilada, reclamaria e parte faltante. É o que sucede quando vemos uma pessoa conhecida, ou nela pensamos sem poder recordar seu nome. Se outro nome nos apresenta ao espírito, não o associamos à tal pessoa; por isso o afastamos, até que se apresenta um que concorde com nossa representação habitual da pessoa. Confissões X, XIX
Mas donde nos vem este nome, senão da MEMÓRIA? Mesmo quando nos é sugerido por outrem, é pela MEMÓRIA que reconhecemos; não o aceitamos como um conhecimento novo, mas recordando-o, confirmamos ser esse o nome que nos disseram. Se fosse totalmente apagado da alma, nem mesmo avisados o reconheceríamos. Confissões X, XIX
Mas não será justamente a felicidade que todos querem, sem exceção? E onde a conheceram para a desejarem tanto? Onde a viram para assim a amarem? O que é certo é que está em nós a sua imagem. Mas não sei como isto se dá. E há diversos modos de ser feliz: quer possuindo realmente a felicidade, quer possuindo apenas sua esperança. Este último modo é inferior ao dos que são realmente felizes, embora estejam melhor que os não felizes nem na realidade, nem na esperança. Mesmo estes, todavia, não desejariam tanto a felicidade se esta lhes fosse completamente estranha, e é certo que a desejam. Não sei como a conheceram, e portanto ignoro a noção que dela têm. O que me preocupa é saber se essa noção reside na MEMÓRIA, pois, se é lá que reside, é sinal de já fomos felizes alguma vez. Por ora não busco saber se todos fomos felizes individualmente, ou se o fomos naquele que pecou primeiro, e no qual todos morremos, e de quem nascemos na infelicidade. O que procuro saber é se a felicidade reside na MEMÓRIA, porque certamente não a amaríamos se não a conhecêssemos. Mal ouvimos esta palavra, e todos confessamos que desejamos a mesma coisa; e não é o som da palavra que nos deleita. Quando um grego a ouve pronunciar em latim, não se alegra, porque ignora seu sentido. Mas nós nos alegramos ao ouvi-la, como ele se a ouvisse em sua língua. A felicidade, com efeito, não é grega nem latina; mas gregos e latinos, assim como todos que falam outras línguas, desejam alcançá-la. Confissões X, XX
Quereis ser felizes?” — todos, sem hesitar, responderiam que sim. E isso não aconteceria se a MEMÓRIA não tivesse em si a realidade, expressa por essa palavra. Confissões X, XX
Essa lembrança, será porventura comparável à da alegria? Talvez, pois quando estou triste me lembro da alegria passada, e quando infeliz, lembro-me da felicidade. Ora, esta alegria, eu jamais a vi, ou ouvi, ou senti, ou saboreei, ou toquei; apenas a experimentei em minha alma quando me alegrei. E esta ideia se fixou em minha MEMÓRIA para que eu pudesse recordá-la, às vezes com desgosto, outras com saudades, conforme as circunstâncias que a geraram. Confissões X, XXI
Que significa isto? Se perguntarmos a dois homens se querem alistar-se no exército, talvez um responda que sim o outro que não. Mas, perguntemos se desejam ser felizes, e ambos responderão que sim, sem nenhuma hesitação. E desejando um engajar-se, e o outro não, têm ambos a mesma finalidade: ser felizes. Um gosta disto, outro daquilo, mas ambos concordam em ser felizes, como seria unânime a resposta afirmativa a quem lhes perguntasse se querem estar alegres. Essa alegria é o que eles chamam de felicidade. E ainda que um siga por um caminho e outro por outro, a finalidade de todos é um só: a alegria. Como a alegria é um sentimento do qual todos temos experiência, a encontramos em nossa MEMÓRIA, e a reconhecemos ao ouvir pronunciar a palavra felicidade. Confissões X, XXI
Onde, então, conheceram a felicidade, senão onde conheceram a verdade? Visto que não querem ser enganados, também amam a verdade, e desde que amam a felicidade, que nada mais é que a alegria proveniente da verdade, certamente também amam a verdade; e não a amariam se não retivessem dela, na sua MEMÓRIA, alguma noção. Por que, então, não se alegram com ela? Por que não são felizes? Porque se empolgam demais com outras coisas, que os tornam mais infelizes do que a verdade, de que se recordam fracamente, e que os faria felizes. Confissões X, XXIII
Eis como esquadrinhei minha MEMÓRIA em tua procura, Senhor: não me foi possível encontrar-te fora dela. Nada encontrei de ti que não fosse lembrança, e nunca me esqueci de ti desde que te conheci. Onde encontrei a verdade, aí encontrei a meu Deus, que é a própria verdade; e desde que aprendi a conhecer a verdade, nunca mais a esqueci. Por isso, desde que te conheço, permaneces em minha MEMÓRIA. É lá que te encontro quando me lembro de ti e quando sou feliz em ti. Estas são as santas delicias que me deste em tua misericórdia, olhando para minha pobreza. Confissões X, XXIV
Onde habitas em minha MEMÓRIA, Senhor, em que lugar dela estás? Que esconderijo construíste aí? Que santuário aí edificaste para ti? Deste-me a honra de morar em minha MEMÓRIA; mas em que parte dela resides? É o que quero agora descobrir. Confissões X, XXV
Quando me recordei de ti, ultrapassei aquela região da MEMÓRIA que também os animais possuem, pois não te encontrei entre as imagens dos objetos corpóreos. E cheguei àquela parte onde depositei os afetos de minha alma, mas também aí não te encontrei. Cheguei à morada que meu próprio espírito possui na MEMÓRIA — porque também o espírito lembra de si mesmo — mas nem ali estavas. Isso porque não és imagem corpórea, nem afeto de ser vivo, como a alegria, a tristeza, o desejo, o temor, a lembrança, o esquecimento e outros semelhantes, e nem és meu próprio espírito, porque és o Senhor e Deus do espírito, e tudo isso é mutável, enquanto permaneces imutável e subsistes acima de todas as coisas, e te dignaste habitar em minha MEMÓRIA desde que te conheço. Confissões X, XXV
Mas, por que perguntar em que lugar da MEMÓRIA habitas, como se a MEMÓRIA tivesse compartimentos? Certo é que habitas nela desde que te conheço, e é nela que te encontro, quando penso em ti. Confissões X, XXV
Onde, então, te encontrei, para te conhecer? Não estavas ainda em minha MEMÓRIA antes de eu te conhecer. Onde, então, te encontrei, para te conhecer, senão em ti mesmo, acima de mim? No entanto, aí não existe espaço. Quer nos afastemos de ti, quer nos aproximemos, aí não existe espaço algum. Ó Verdade, por toda parte assistes aos que te consultam, e respondes ao mesmo tempo a todas essas diversas consultas. Tuas respostas são claras, mas nem para todos. Confissões X, XXVI
Mas em minha MEMÓRIA, de que falei longamente, vivem ainda as imagens dessas voluptuosidades que meus costumes de outrora ali gravaram. Sem forças diante de mim quando estou acordado, durante o sono, elas não somente suscitam em mim o prazer, mas o consentimento do prazer e a ilusão da ação. Tais ilusões têm tal poder sobre minha alma e sobre meu corpo, apesar de tão falsas, que seus fantasmas impelem a meu sono o que a realidade não me pode induzir quando em vigília. Acaso então, Senhor meu Deus, será que eu não sou eu nessas horas? E como vai tão grande diferença dentro de mim mesmo, do momento em que passo da vigília para o sono e vice versa! Onde pois está a razão, que durante a vigília resiste a tais sugestões, e que não se abala mesmo diante da realidade? Acaso se fecha juntamente com os olhos? Ou adormece com os sentidos do corpo? Confissões X, XXX
Quando deixaste de me acompanhar, ó Verdade, para me ensinar o que eu devia evitar ou procurar, sempre te consultei, a ti submetendo, dentro da minha limitação, meus medíocres pontos de vista? Percorri com os sentidos, como pude, o mundo exterior. Observei a vida de meu corpo e os meus próprios sentidos. Depois adentrei nas profundezas da MEMÓRIA em seus múltiplos domínios, tão maravilhosamente repletos de inúmeras riquezas; observei tudo isso, estupefato. Sem teu auxílio nada poderia distinguir, mas reconheci que nada disto eras tu. Nem era eu o descobridor de todas essas coisas; me esforcei para distingui-las e avaliá-las em seu devido valor, recebendo-a através dos sentidos e interrogando-as. Senti outras coisas unidas a mim, e as examinei, assim como aos sentidos que mas traziam; revolvi as vastas reservas da MEMÓRIA, analisando certas lembranças, guardando umas e trazendo outras à luz. Porque tu és a luz permanente que eu consultava sobre a existência, o valor e a qualidade de todas as coisas, e eu ouvia teus ensinamentos e tuas ordens. Costumo fazê-lo muitas vezes, pois essa é a minha alegria, e sempre que meus trabalhos me permitem algum descanso, refugio-me nesse prazer. Confissões X, XL
Portanto, no lugar e no modo que estiverem, só podem existir como presentes. Quando relatamos acontecimentos verídicos do passado, o que vêm à nossa MEMÓRIA não são os fatos em si, que já deixaram de existir, mas as palavras que exprimem as imagens dos fatos, que, através de nossos sentidos, gravaram em nosso espírito suas pegadas. Minha infância, por exemplo, que não existe mais, pertence a um passado que também desapareceu; mas quando eu a evoco e passo a relatá-la, vejo suas imagens no presente, imagens que ainda estão na minha MEMÓRIA. E a predição do futuro, meu Deus, seguiria um processo análogo? Os fatos que ainda não existem, serão representados antecipadamente em nosso espírito como imagens já existentes? Eu o ignoro. O que sei é que habitualmente premeditamos nossas ações futuras, e que essa premeditação pertence ao presente, enquanto esta começará a existir, pois então não será mais futura, mas presente. Confissões XI, XVIII
O que agora parece claro e evidente para mim é que nem o futuro, nem o passado existem, e é impróprio dizer que há três tempos: passado, presente e futuro. Talvez fosse mais correto dizer: há três tempos: o presente do passado, o presente do presente e o presente do futuro. E essas três espécies de tempos existem em nossa mente, e não as vejo em outra parte. O presente do passado é a MEMÓRIA; o presente do presente é a percepção direta; o presente do futuro é a esperança. Confissões XI, XX
Logo, eu não meço as sílabas, que não existem mais, mas algo que permanece gravado em minha MEMÓRIA. Confissões XI, XXVII
Se alguém quisesse pronunciar um som prolongado, e regular antecipadamente, em pensamento, sua duração, estima em silêncio a medida dessa duração e, confiando à MEMÓRIA, começa a emitir o som, que vibra até atingir o limite fixado. Ou melhor: esse som vibrou e vibrará, porque a parte que passou soou; a que ainda resta, soará e chegará a seu fim. A atenção presente vai lançando o futuro para o passado, e o passado cresce com a diminuição do futuro, até que, esgotado o futuro, não haja mais que passado. Confissões XI, XXVII
Digamos que eu queira cantar uma canção que conheço: antes de iniciar, minha expectativa se estende pela melodia como um todo. Quando começo, tudo o que vira passado é armazenada na MEMÓRIA. A atividade de meu espírito se divide em MEMÓRIA, onde guardo o que já disse, e em expectativa em relação ao que vou dizer. Contudo, a atenção está presente, e por seu intermédio o futuro se torna passado. Quanto mais se aproxima o fim da canção, tanto menos se torna a expectativa e tanto maior a MEMÓRIA, até que aquela se esgota e a ação cumprida passa inteiramente para a MEMÓRIA. Confissões XI, XXVIII
Tereis por falazes as palavras da Verdade faladas ao ouvido de minha alma: que a espera das coisas futuras se torna contemplação, quando presentes, e que depois se transforma em MEMÓRIA, quando passadas? Que todo pensamento que varia assim é mutável, e que nada do que é mutável é eterno? Ora, nosso Deus é eterno. E, reunindo e condensando estas verdades, deduzo que meu Deus, o Deus eterno, não criou o mundo por um novo ato de volição, e que sua ciência não admite nada que seja transitório. Confissões XII, XV