Certa vez, vi e observei um menino invejoso. Ainda não falava, e já olhava pálido e com rosto amargurado para o irmãozinho caçula. Quem não terá testemunhado isso? Dizem que as mães e as amas tentam esconjurar este defeito com não sei que práticas. Mas se poderá considerar inocência o não suportar que se partilhe a fonte do leite, que mana copiosa e abundante, com quem está tão necessitado do mesmo socorro, e que sustenta a vida apenas com esse alimento? Mas costuma-se tolerar com indulgência essas faltas, não porque sejam insignificantes, mas porque espera-se que desapareçam com os anos. Por isso, sendo tais coisas perdoáveis em um menino, quando se acham em um adulto, MAL as podemos suportar. Confissões I, VII
Mas, por sorte, encontrei homens que te invocavam, Senhor, e com eles aprendi a te sentir, quanto possível, como a um Ser grande que podia escutar-nos e vir em nosso auxílio, embora sem a percepção dos sentidos. Ainda menino, pois, comecei a invocar-te como refúgio e amparo e, para te invocar, desatei os nós de minha língua; e, embora pequeno, te rogava já com grande fervor para que não me açoitassem na escola. E quando não me escutavas, o que servia para meu proveito os mestres, assim como meus próprios pais, que certamente não desejavam o meu MAL, riam-se daquele castigo, que então era para mim grave suplício. Confissões I, IX
Assim, convertias em bem o MAL que eles me faziam, e dos meus pecados, me davas justa retribuição, porque é teu desígnio, e assim acontece, que toda alma desordenada seja castigo de si mesma. Confissões I, XII
Pelo contrário, meu pai, certo dia, percebendo ao banho sinais de minha puberdade e vendo-me revestido de inquieta adolescência, como se já se alegrasse pensando nos netos, foi contá-lo alegre à minha mãe. Alegria esta gerada pela embriaguez com que este mundo esquece de ti, seu criador, e em teu lugar ama tua criatura; embriaguez que nasce do vinho sutil de sua perversa e MAL inclinada vontade para as coisas baixas. Confissões II, III
Mas eu não o sabia, e me precipitava com tanta cegueira, que me envergonhava entre os companheiros de minha idade, de ser menos torpe do que eles. Os ouvia jactar-se de suas maldades, e gloriar-se tanto mais quanto mais infames eram; assim eu gostava de fazer o MAL, não só pelo prazer, mas ainda por vaidade. O que há de mais digno de vitupério do que o vicio? E, contudo, para não ser escarnecido, tornava-me mais viciado e, quando não houvesse cometido pecado que me igualasse aos mais perdidos, fingia ter feito o que não cometera, para que não parecesse mais abjeto quanto mais inocente, e tanto mais vil quanto mais casto. Confissões II, III
Aí está meu coração, Senhor, meu coração que olhaste com misericórdia quando se encontrava na profundeza do abismo. Que este meu coração te diga agora que era o que ali buscava, para fazer o MAL gratuitamente, não tendo minha maldade outra razão que a própria maldade. Era hedionda, e eu a amei; amei minha morte, amei meu pecado; não o objeto que me fazia cair, mas minha própria queda. Ó torpe minha alma, que saltando para fora do santo apoio, te lançavas na morte, não buscando na ignomínia senão a própria ignomínia? Confissões II, IV
Como agradecerei ao Senhor por poder recordar todas estas coisas sem que minha alma sinta medo algum? Amar-te-ei, Senhor, e dar-te-ei graças, e confessarei teu nome, pois me perdoaste tantas e tão nefandas ações. Devo à tua graça e misericórdia teres-me dissolvido os pecados como gelo, como também todo o MAL que não pratiquei. De fato, de que pecados não seria capaz, eu que amei gratuitamente o erro? Confissões II, VII
Confesso que todos já me foram perdoados; o MAL cometido voluntariamente, e o que deixei de fazer pela tua graça. Quem dentre os homens, conhecendo tua fraqueza, poderá atribuir às próprias forças sua castidade e inocência para amar-te menos, como se tivesse menor necessidade de tua misericórdia, com a qual perdoas os pecados aos que se convertem a ti? Confissões II, VII
Ó amizade inimiga! Sedução impenetrável da alma, vontade de fazer o MAL por passatempo e brinquedo, apetite do dano alheio sem proveito algum e sem desejo de vingança! Só porque sentimos vergonha de não ser sem-vergonha quando ouvimos; “Vamos! Façamos!”. Confissões II, IX
Arrebatavam-me os espetáculos teatrais, cheios das imagens de minhas misérias e de alimento para o fogo de minha paixão. Mas, por que quer o homem condoer-se ao contemplar coisas tristes e trágicas, que de modo algum gostaria de suportar? Contudo, o espectador deseja sofrer com elas, e até essa mesma dor é seu deleite. Que é isso, senão rematada loucura? De fato, tanto mais se comove alguém com elas quanto menos livre se está de tais afetos, embora chamemos de misérias os sofrimentos próprios, e de compaixão a comiseração do MAL alheio. Confissões III, II
Não conhecia eu outra realidade — a verdadeira — e me sentia como que movido por um aguilhão a aceitar a opinião daqueles insensatos impostores quando me perguntavam de onde procedia o MAL, se Deus estava limitado por forma corpórea, se tinha cabelos e unhas, e se deviam ser considerados justos os que tinham várias mulheres simultaneamente, e os que causavam a morte de outros ou sacrificavam animais. Confissões III, VII
Eu, ignorando essas coisas, perturbava-me com essas perguntas. Afastando-me da verdade, parecia-me encaminhar para ela, porque não sabia que o MAL é apenas privação do bem, até chegar ao seu limite, o próprio nada. E como poderia ter eu tal conhecimento, se com os olhos não conseguia ver mais do que corpos, e com a alma não ia além de fantasmas? Confissões III, VII
O mesmo se deve dizer dos crimes perpetrados com desejo de causar o MAL, quer por agressão, quer por injúria; e ambas as coisas, ou por desejo de vingança, como ocorre entre inimigos, ou por alcançar algum bem sem trabalhar, como o ladrão que rouba ao viajante; ou para evitar algum MAL, como acontece com o que teme; ou por inveja, como quando um miserável quer MAL ao que é mais feliz, ou ao que conseguiu riquezas, temendo ser igualado ou que já lhe sejam iguais; ou unicamente pelo prazer de ver o MAL alheio, como acontece com o espectador dos combates dos gladiadores, ou com o que se ri e zomba dos outros. Confissões III, VIII
Tais são os princípios ou fontes de iniquidade, que nascem da paixão de mandar, de ver ou de sentir, quer de uma só dessas paixões, ou de duas, ou de todas juntas. Razão por que se vive do MAL, ó Deus altíssimo e dulcíssimo, contra o saltério de dez cordas, teu decálogo. Confissões III, VIII
Mas, como eu amava a paz da virtude, e aborrecia a discórdia do vício, notava naquela certa unidade e neste certa desunião; parecia-me que residisse nessa unidade a alma racional, a essência da verdade e do sumo bem. Na desunião, via eu não sei que substância de vida irracional e a natureza do sumo MAL, que não era apenas substância, mas também verdadeira vida. Todavia não procedia de ti, meu Deus, de quem procedem todas as coisas. E chamava àquela unidade mônada, como alma sem sexo, e a esta multiplicidade díada, como a ira nos crimes, a concupiscência nas paixões, sem saber o que dizia. Ignorava então, ainda não havia aprendido que o MAL não é substância alguma, nem que nosso espírito não é o bem soberano e imutável. Confissões IV, XV
Quando pois ouço que este ou aquele irmão em Cristo ignora esses problemas, e confunde uma coisa com outra, suporto com paciência seu modo de opinar. Nada vejo que possa ser-lhe prejudicial enquanto não fizer ideia indigna de ti, Senhor, criador do universo, mesmo que ignore até o lugar e a natureza das coisas materiais. O MAL seria acreditar que esses problemas pertencem à essência da piedade, e tenazmente atrever-se a afirmar o que ignora. Mas ainda essa fraqueza é suportada nos primórdios da fé pela mãe caridade, até que o homem novo cresça e se transforme em varão perfeito, e não possa ser abalado por qualquer vento de doutrina. Confissões V, V
Ainda então me parecia que não éramos nós que pecávamos, mas não sei que estranha natureza que pecava em nós; por isso minha soberba se deleitava em me ter como isento de culpa, e portanto de todo desobrigado a confessar meu pecado, quando agia MAL, para que pudesses curar minha alma que te ofendia. Antes, gostava de me desculpar, acusando a não sei que ser estranho que estava em mim, mas que não era eu. Na verdade, eu era tudo aquilo, embora minha impiedade me tivesse dividido contra mim mesmo. E o mais incurável de meu pecado era justamente o não me considerar pecador, preferindo, minha execrável iniquidade, que fosses vencido em mim, para minha perdição, ó Deus onipotente, a que vencesses minha alma para minha salvação. Ainda não tinhas posto guarda diante da minha boca, nem porta de proteção ao redor de meus lábios, a fim de que meu coração não se inclinasse para as más palavras, nem buscasse desculpas para seus pecados, como os homens prevaricadores. Eis a razão pela qual eu ainda mantinha relações de amizade com os eleitos dos maniqueus. Mas, desesperado de poder progredir para a verdade dentro daquela falsa doutrina, contentava-me a segui-la até encontrar algo melhor, professando-a já com mais liberdade e frouxidão. Confissões V, X
Daqui se gerou também minha crença de que o MAL tivesse substância, também corpórea, massa negra e disforme, ora espessa — a que chamavam terra — ora tênue e sutil, como o ar, a qual julgava ser um espírito maligno que investia sobre a terra. E visto que minha piedade, por pouca que fosse me obrigava a pensar que um Deus bom não podia criar nenhuma natureza má, eu imaginava duas substâncias antagônicas, ambas infinitas, a do MAL um pouco menor, a do bem um pouco maior; e deste princípio pestilento originavam-se as demais blasfêmias. Com efeito, quando meu espírito se esforçava por voltar à fé católica, era rechaçado porque minha ideia de fé católica não era correta. E me parecia ser mais piedoso, ó Deus, a quem louvam em mim tuas misericórdias, julgar-te infinito por todas as partes, com exceção de um aspecto, a substância do MAL, onde era forçoso reconhecer teus limites, do que julgar-te limitado por todas as partes pelas formas do corpo humano. Confissões V, X
Também tinha como melhor admitir que não havias criado nenhum MAL — o qual aparecia à minha ignorância não só como substância, mas como substância corpórea, por eu não poder conceber o espírito senão como corpo sutil difundido pelos espaços — do que crer que a natureza do MAL, tal como a imaginava, procedesse de ti. Confissões V, X
Ele admirava-se de que eu, a quem tanto estimava, estivesse tão preso ao visco do prazer a ponto de afirmar, sempre que tratávamos desse assunto, que me era impossível levar vida casta. Para esgrimir contra sua admiração, dizia-lhe que havia grande diferença entre sua rápida e furtiva experiência do prazer, de que MAL se lembrava e que, por isso, podia desprezar facilmente, e as delícias de uma ligação verdadeira, à qual, se juntasse o honesto nome de matrimonio, já não causaria admiração se eu não pudesse desprezar aquela vida. Com isso, Alípio também começou a desejar o matrimonio, não certamente vencido pelo apetite do prazer, mas pela curiosidade. Desejava saber, dizia ele, o que era aquele bem sem o qual minha vida — que ele tanto apreciava — não me parecia vida, mas tormento. De fato, livre dessa prisão, sua alma pasmava de tal servidão, e do espanto passava ao desejo de experimentá-la. Depois talvez caísse naquela mesma servidão que o espantava, pois queria fazer um pacto com a morte, e o que ama o perigo, nele cairá. Confissões VI, XII
Discutia com meus amigos Alípio e Nebrídio, sobre o bem e o MAL finais; facilmente meu juízo teria dado a palma a Epicuro, se eu não acreditasse na imortalidade da alma e do julgamento de nossos atos, coisas em que Epicuro nunca acreditou. E eu perguntava: “Se fossemos imortais, e vivêssemos em perpétuo gozo sensorial, sem temor algum de perdê-lo, não seriamos felizes? Que mais poderíamos desejar?” Ignorava eu que isto era fruto duma grande miséria. Não podia, tão imerso no vício e cego como estava, imaginar a luz da virtude e uma beleza invisível aos olhos da carne, e somente visível das profundezas da alma. Na minha miséria, não indagava de que fonte provinha esse grande gosto em conversar com os amigos, por maior que fosse a abundância dos prazeres carnais, segundo a ideia que eu tinha então? Eu amava a meus amigos desinteressadamente, e também sentia que eles me amavam com o mesmo desinteresse. Confissões VI, XVI
Mas eu, mesmo quando afirmava e cria firmemente que és incorruptível, inalterável, absolutamente imutável, Senhor meu, Deus verdadeiro que não só criaste nossas almas e nossos corpos, e não somente nossas almas e corpos, mas todas as criaturas e todas as coisas. Todavia, faltava-me ainda uma explicação, a solução do problema da causa do MAL. Qualquer que ela fosse, estava certo de que deveria buscá-la onde não me visse obrigado, por sua causa, a julgar mutável a um Deus imutável, porque isso seria transformar-me no MAL que procurava. Confissões VII, III
Por isso, buscava-a com segurança, certo de que era falsidade o que diziam os maniqueus; deles fugia com toda a alma, porque via suas indagações sobre a origem do MAL cheias de malícia, preferindo crer que tua substância era passível de sofrer o MAL do que a deles ser susceptível de o cometer. Confissões VII, III
Esforçava-me por compreender a tese que ouvira professar, de que o livre-arbítrio da vontade é a causa de praticarmos o MAL, e de teu reto juízo é a causa do MAL que padecemos. Confissões VII, III
O fato de eu ter a consciência de possuir uma vontade, como tinha consciência de minha vida, era o que me erguia para a tua luz. Assim, quando queria ou não queria alguma coisa, estava certíssimo de que era eu, e não outro, o que queria ou não queria, e então me convencia de que ali estava a causa do meu pecado. Quanto ao que fazia contra a vontade, notava que isso mais era padecer do MAL do que praticá-lo; julgava que isso não era culpa, mas castigo, que me instava a confessar justamente ferido por ti, considerando tua justiça. Confissões VII, III
Mas de novo refletia: “Quem me criou? Não foi o bom Deus, que não só é bom, mas a própria bondade? De onde, então, me vem essa vontade de querer o MAL e de não querer o bem? Confissões VII, III
Tais pensamentos de novo me deprimiam e sufocavam, mas não me arrastavam até aquele abismo de erro, onde ninguém te confessa, e onde se antepõe a tese que tu és sujeito ao MAL a considerar o homem capaz de o cometer. Confissões VII, III
Portanto, logo que vi que o incorruptível deve ser preferido ao corruptível, imediatamente deveria buscar-te no incorruptível, para depois indagar a causa do MAL, isto é, a origem da corrupção, que de nenhum modo pode afetar tua substância. É certo que, nem por vontade, nem por necessidade, nem por qualquer acontecimento imprevisto, pode a corrupção afetar nosso Deus, porque ele é Deus, e não pode querer senão o que é bom, e ele próprio é o sumo bem; e estar sujeito à corrupção não é nenhum bem. Confissões VII, IV
Eu buscava a origem do MAL, mas de modo errôneo, e não via o erro que havia em meu modo de buscá-la. Desfilava diante dos olhos de minha alma toda a criação, tanto o que podemos ver — como a terra, o mar, o ar, as estrelas, as árvores e os animais — como o que não podemos ver — como o firmamento, e todos os anjos e seres espirituais. Estes, porém, como se também fossem corpóreos, colocados em minha imaginação em seus respectivos lugares. Fiz de tua criação uma espécie de massa imensa, diferenciada em diversos gêneros de corpos; uns, corpos verdadeiros, e espíritos, que eu imaginava como corpos. Confissões VII, V
Assim é que eu concebia a tua criação finita, cheia de ti, infinito, e dizia: “Eis aqui Deus, e eis aqui as coisas que Deus criou; Deus é bom, imenso e infinitamente mais excelente que suas criaturas; e, como é bom, fez boas todas as coisas; e vede como as abraça e penetra! Onde está pois o MAL? De onde e por onde conseguiu penetrar no mundo? Qual é a sua raiz e sua semente? Confissões VII, V
E se tememos em vão, o próprio temor já é certamente um MAL que atormenta e espicaça sem motivo nosso coração; e tanto mais grave quanto é certo que não há razão para temer. Portanto, ou o MAL que tememos existe, ou o próprio temor é o MAL. De onde, pois, procede o MAL se Deus, que é bom, fez boas todas as coisas? Bem superior a todos os bens, o Bem supremo, criou sem dúvida bens menores do que ele. De onde pois vem o MAL? Acaso a matéria de que se serviu para a criação era corrompida e, ao dar-lhe forma e organização, deixou nela algo que não converteu em bem? Confissões VII, V
E por que isto? Acaso, sendo onipotente, não podia mudá-la, transformá-la toda, para que não restasse nela semente do MAL? Enfim, por que se utilizou dessa matéria para criar? Por que sua onipotência não a aniquilou totalmente? Poderia ela existir contra sua vontade? E, se é eterna, por que deixou-a existir por tanto tempo no infinito do passado, resolvendo tão tarde servirse dela para fazer alguma coisa? Ou, já que quis fazer de súbito alguma coisa, sendo onipotente, não poderia suprimir a matéria, ficando ele só, bem total verdadeiro, sumo e infinito? E, se não era conveniente que, sendo bom, não criasse nem produzisse bem algum, por que não destruiu e aniquilou essa matéria má, criando outra que fosse boa e com a qual plasmar toda a criação? Confissões VII, V
Deste modo, ó meu auxílio, já me havias libertado daqueles grilhões. Contudo eu buscava ainda a origem do MAL, e não encontrava solução. Mas não permitias que as vagas de meu pensamento me apartassem da fé. Fé na tua existência, na tua substância imutável, na tua providência para os homens, e na tua justiça que os julgará. Já acreditava que traçaste o caminho da salvação dos homens, rumo à vida que sobrevém depois da morte, em Cristo, teu Filho e Senhor nosso, e nas Sagradas Escrituras, recomendadas pela autoridade de tua Igreja Católica. Confissões VII, VII
Salvas e fortemente arraigadas estas verdades em meu espírito, buscava eu ansiosamente a origem do MAL. E que tormentos, como que de parto, eram aqueles de meu coração! Que gemidos, meu Deus! E ali estavam teus ouvidos atentos, e eu não o sabia. Quando, em silêncio, me esforçava em pacientes buscas, altos clamores se elevavam até tua misericórdia: eram as silenciosas angústias de minha alma. Confissões VII, VII
Também pode entender que são boas as coisas que se corrompem. Se fossem sumamente boas, não poderiam se corromper, como tampouco o poderiam se não fossem boas de algum modo. Com efeito, se fossem sumamente boas, seriam incorruptíveis; e se não tivessem nenhuma bondade, nada haveria nelas que se pudesse corromper. Porque a corrupção é um MAL, e não poderia ser nociva se não diminuísse o bem real. Logo, ou a corrupção é inofensiva, o que é impossível, ou, o que é certo, tudo o que se corrompe é privado de algum bem. E assim, se algo for privado de todo o bem, deixará totalmente de existir. E se algo subsistisse sem já poder ser corrompido, seria ainda melhor, porque permaneceria incorruptível. E haverá maior absurdo do que afirmar que uma coisa se torna melhor pela perda de todo o bem? Logo, ser privado de todo o bem é o nada absoluto. De onde se segue que, enquanto as coisas existem, elas são boas. Confissões VII, XII
Portanto, tudo o que existe é bom; e o MAL, cuja origem eu procurava, não é uma substância, porque se o fosse seria um bem. De fato, ou ele seria substância incorruptível, e portanto um grande bem; ou seria uma substância corruptível, que se não se poderia corromper se não fosse boa. Confissões VII, XII
E para ti, Senhor, não existe absolutamente o MAL; e nem para universalidade da tua criação; porque nada existe fora dela, capaz de romper ou de corromper a ordem que tu lhe impuseste. Todavia, em algumas de suas partes, determinados elementos não se harmonizam com outros, e estes são considerados maus. Mas, como esses mesmos elementos combinam com outros, são da mesma forma bons, e bons em si mesmos. E mesmo esses elementos que não concordam entre si se harmonizam com a parte inferior das criaturas que chamamos terra, com seu céu cheio de nuvens e de ventos, como lhe é conveniente. Confissões VII, XIII
MAL teu servo Simpliciano me contou a conversão de Vitorino, ardi no desejo de imitá-lo; aliás, era esta a finalidade da narração de Simpliciano. Depois acrescentou que nos tempos do imperador Juliano, uma lei proibia aos cristãos ensinar literatura e oratória, e Vitorino, dócil à lei, preferiu abandonar a escola de palradores a abandonar teu Verbo, que torna eloquentes as línguas dos meninos. Não só me pareceu corajoso como afortunado, por ter encontrado ocasião de se consagrar por ti. Por isso eu suspirava, acorrentado não com os ferros de uma vontade estranha, mas por minha férrea vontade. Confissões VIII, V
Nossa casa tinha um pequeno jardim, que usávamos, assim como o restante da casa, que nosso hóspede não habitava. Para ali me levara a tormenta de meu coração, onde ninguém pudesse interferir no ardente combate que eu travava comigo mesmo, até que se resolvesse o assunto conforme tu sabias e eu ignorava. Mas eu delirava para reencontrar a razão, e morria para reviver; conhecia meu MAL, mas desconhecia o bem que depois haveria de sobrevir. Confissões VIII, VIII
A alma dá ordens ao corpo, e este obedece imediatamente; a alma dá ordens a si mesma, e resiste. Ordena a alma à mão que se mova, e é tal sua presteza, que MAL se pode distinguir a ordem da execução; não obstante, a alma é espírito e a mão é corpo. A alma dá a si mesma a ordem de querer, uma não se distingue da outra, e contudo, ela não obedece. De onde este prodígio? E qual sua causa? Confissões VIII, XI
Assim sofria e me atormentava, com acusações mais acerbas que de costume, rolando-me e debatendo-me dentro de minha cadeias, para ver se as quebrava por completo. Elas MAL me prendiam,mas ainda me prendiam. E tu, Senhor, me espicaçavas no fundo de minha alma, e com severa misericórdia redobravas os açoites do temor e da vergonha, para que eu não afrouxasse de novo, e para que quebrasse minha tênue e leve cadeia, antes que ela se revigorasse para me prender mais firmemente. Confissões VIII, XI
E dizia comigo mesmo: “Vamos! Mãos à obra, sem demoras!” E quase passava da palavra à ação. Estava a ponto de agir, mas não agia. Eu já não recaía nas antigas paixões, mas delas estava bem próximo, e tomava ainda alento de seu ar. Quase a alcançava, faltava pouco, cada vez menos, e já quase chegava ao termo e a segurava; mas não a alcançava, nem a tocava; hesitava entre morrer para a morte e viver para a vida. O MAL arraigado dominava-me mais do que o bem, cujo hábito eu não possuía; na medida que ia se aproximando o momento em que me transformaria em outro homem, maior era o horror que me incutia, sem contudo me fazer voltar para trás ou mudar de caminho. Simplesmente mantinha-me indeciso. Confissões VIII, XI
Mas quando encontrei tempo suficiente para dar testemunho de todos os grandes benefícios que me concedeste nessa época da vida, uma vez que tenho pressa de chegar a outros assuntos mais importantes? Volta-me — e me é doce confessá-lo, Senhor — a lembrança dos estímulos internos com que me domaste; o modo como me aplanaste a alma derrubando as colinas e montanhas de meus pensamentos; como endireitaste meus caminhos tortuosos e suavizasse minhas asperezas; como também submeteste Alípio — o irmão de meu coração — ao nome de teu Filho único, Jesus Cristo, Senhor e Salvador nosso, nome que ele MAL suportava em minhas obras, porque preferia o cheiro dos soberbos cedros das escolas, já abatidos pelo Senhor, ao odor das salutares ervas de tua Igreja, antídoto contra o veneno das serpentes. Confissões IX, IV
Onde estava então a prudente anciã, e sua severa proibição? Mas que remédio curaria um MAL oculto se tua medicina, Senhor, não velasse sobre nós? Na ausência do pai, da mãe e das amas, estavas lá tu que nos criaste, que nos chamas, e que por meio dos que nos educam fazes o bem para a salvação das almas. Que fizeste então, meu Deus? Como a socorreste? Como a curaste? Fizeste sair de outra pessoa, segundo tuas secretas providências, um sarcasmo duro e pungente como ferro medicinal, para curar de um só golpe aquela gangrena. Confissões IX, VIII
Mas conseguiu conquistá-la com respeito, contínua tolerância e mansidão, que ela mesma, espontaneamente, denunciou ao filho as línguas intrigantes das criadas, que perturbavam a paz doméstica entre ela e a nora, e pediu que as castigasse. Ele, em obediência à mãe, para manter a disciplina familiar e a harmonia entre os seus, mandou açoitar as acusadas, segundo a vontade da acusante; e esta prometeu-lhes ainda que esse era o prêmio que devia esperar quem, querendo agradá-la, lhe dissesse MAL da nora. E ninguém mais se atreveu a fazê-lo, e viveram as duas em doce e memorável harmonia. Confissões IX, IX
A esta tua boa serva, em cujo seio me criaste, ó meu deus, minha misericórdia, dotaste de outra grande virtude: a de intervir como pacificadora, sempre que podia, nas discórdias e querelas. Daquilo que ouvia de queixas amargas, vomitadas com animosidade ressentida, quando na presença de uma amiga os ódios MAL digeridos se desafogam em amargas confidencias a respeito de uma amiga ausente, ela nada referia uma à outra, senão o que poderia servir para a reconciliação. Confissões IX, IX
Respirem pelo bem e suspirem pelo MAL, e que subam à tua presença hinos e lágrimas desses corações fraternos, que são os teus turíbulos. Confissões X, IV
Mas não será justamente a felicidade que todos querem, sem exceção? E onde a conheceram para a desejarem tanto? Onde a viram para assim a amarem? O que é certo é que está em nós a sua imagem. Mas não sei como isto se dá. E há diversos modos de ser feliz: quer possuindo realmente a felicidade, quer possuindo apenas sua esperança. Este último modo é inferior ao dos que são realmente felizes, embora estejam melhor que os não felizes nem na realidade, nem na esperança. Mesmo estes, todavia, não desejariam tanto a felicidade se esta lhes fosse completamente estranha, e é certo que a desejam. Não sei como a conheceram, e portanto ignoro a noção que dela têm. O que me preocupa é saber se essa noção reside na memória, pois, se é lá que reside, é sinal de já fomos felizes alguma vez. Por ora não busco saber se todos fomos felizes individualmente, ou se o fomos naquele que pecou primeiro, e no qual todos morremos, e de quem nascemos na infelicidade. O que procuro saber é se a felicidade reside na memória, porque certamente não a amaríamos se não a conhecêssemos. MAL ouvimos esta palavra, e todos confessamos que desejamos a mesma coisa; e não é o som da palavra que nos deleita. Quando um grego a ouve pronunciar em latim, não se alegra, porque ignora seu sentido. Mas nós nos alegramos ao ouvi-la, como ele se a ouvisse em sua língua. A felicidade, com efeito, não é grega nem latina; mas gregos e latinos, assim como todos que falam outras línguas, desejam alcançá-la. Confissões X, XX
Ai de mim, Senhor, tem piedade de mim! As tristezas do meu MAL lutam com minhas santas alegrias, e eu não sei de que lado está a vitória. Ai de mim! Senhor, tem piedade de mim! Eis minhas feridas: eu não as escondo. Tu és o médico, eu o enfermo; és misericordioso, e eu, miserável. Não é contínua tentação a vida do homem sobre a terra? Quem quer aborrecimentos e dificuldades? Mandas que os suportemos, e não que os amemos. Ninguém ama o que tolera, ainda que goste de o tolerar; e mesmo que alguém se alegre em tolerar, preferiria nada ter que suportar. Na adversidade, desejo a prosperidade, e na prosperidade temo a adversidade. Entre estes dois extremos, qual será o termo médio onde a vida humana não seja tentação? Confissões X, XXVIII
Eis em que estado me encontro! Chorai comigo, e chorai por mim, vós que alimentais no coração a virtude, fonte de boas obras. Porque vós, a quem isso não afeta, sois insensíveis a tudo isso. E tu, Senhor meu Deus, escuta, olha e vê; tem piedade de mim, cura-me. Eis que me tornei um problema para mim mesmo, sob teu olhar, e aí está precisamente meu MAL. Confissões X, XXXIII
Ó Verdade, luz de meu coração, faze com que se calem as minhas trevas. Deixei-me cair nelas e fiquei às escuras; mas, mesmo do fundo desse abismo, eu te amei ardentemente. Andei, errante, mas lembrei de ti. Ouvi tua voz atrás de mim, que me exortava a que voltasse; mas dificilmente podia escutá-la, por causa do tumulto de minha alma. e agora, eis que, ardente e anelante, volto à tua fonte. Que ninguém mo impeça; beberei de sua água, e assim viverei. Que não seja eu minha própria vida! Vivi MAL por minha culpa, e fui a causa de minha morte. Em ti eu revivo! Fala-me, ensina-me. Creio em teus livros, e tuas palavras encerram profundos mistérios. Confissões XII, X
Assim, nos esforços que fazemos para compreender, na Escritura Sagrada, a ideia que o escritor quis transmitir, onde está o MAL se o leitor interpreta o sentido que tu, Luz de todas as inteligências sinceras, lhe fazes parecer verdadeiro, embora talvez não tenha sido este o pensamento do autor? E considerando que ele, pensando de outra maneira, só pensou verdades? Confissões XII, XVIII
Se isto reconheço: tudo me corre MAL onde tu não estás, não somente à minha volta, mas até em mim mesmo; e toda a abundância que não é meu Deus, para não passa de indigência. Confissões XIII, VIII
Assim, Senhor, nosso Deus e nosso Criador, quando nossos afetos mundanos, que nos causam a morte porque nos faziam viver MAL, se afastarem do amor do mundo, quando nossa alma, vivendo bem, se tornar alma viva, e quando se cumprir a palavra que proferiste pela boca de teu Apostolo: “Não vos conformeis com o mundo em que vivemos” — então seguir-se-á aquilo que acrescentaste imediatamente ao dizer: “Mas reformai-vos na novidade de vossa mente”. — E já não será “segundo vossa espécie” — como se fosse imitar nossos predecessores ou viver seguindo os exemplos de alguém melhor que nós. Não disseste: “Que o homem seja feito de acordo com sua espécie” — mas “façamos o homem à nossa imagem e semelhança” — para que pudéssemos reconhecer tua vontade. Para tanto, o divulgador de teu pensamento, que gerou filhos pelo Evangelho, não querendo que continuassem como crianças os que alimentara com leite e agasalhara em teu seio como uma ama, dizia: “Reformai-vos renovando vosso coração, para discernir a vontade de Deus, que é bom, agradável e perfeito”. — Também não dizes: “Faça-se o homem” — mas “à nossa imagem e semelhança”. Aquele que é renovado no espírito, que compreende e conhece tua verdade, não mais carece que um outro lhe ensine a imitar sua espécie. Graças às tuas lições, ele reconhece por si qual é tua vontade, o que é bom, agradável e perfeito. Tu lhe ensinas, pois agora é capaz deste ensinamento, a ver a Trindade da Unidade e a Unidade da Trindade. Eis por que, depois de falar no plural: “Façamos o homem” se diz no singular: “E Deus criou o homem”. Depois deste plural: “À nossa imagem” — este singular: “À imagem de Deus”. Assim o homem “se renova pelo conhecimento de Deus, à imagem de seu criador” — e “tornando-se espiritual, julga todas as coisas”, que certamente hão de ser julgadas, “mas ele não é julgado por ninguém”. Confissões XIII, XXII
Vemos, portanto, as tuas criaturas porque elas existem. Mas elas existem porque tu as vês. Olhando à nossa volta, vemos que elas existem; em nosso íntimo, vemos que são boas. Mas tu já as viste feitas quando e onde viste que deviam ser feitas. Agora somos inclinados a praticar o bem, depois que nosso coração concebeu essa ideia em teu Espírito. Outrora estávamos inclinados ao MAL, desertando de ti. Tu, porém, ó Deus, único bem, nunca cessaste de nos fazer o bem. Por tua graça, algumas de nossas obras são boas, mas não são eternas. Esperamos, depois de realizá-las, repousar em tua grande santificação. Mas tu, que não precisas de nenhum outro bem, estás sempre em repouso, porque és teu próprio repouso. Confissões XIII, XXXVIII