Aquelas primeiras letras, pelas quais podia, como ainda faço, chegar e ler tudo o que há escrito e a escrever tudo o que quero, eram melhores e mais úteis que aquelas outras nas quais me obrigavam a decorar os erros de um tal Eneias, esquecido dos meus, e a chorar a morte de Dido, que se suicidou por amor, enquanto isso, eu, miserabilíssimo, suportava a minha própria morte com olhos enxutos, morrendo para ti, ó meu Deus, minha vida! Na verdade, que pode haver de mais miserável do que um infeliz que não se compadece de si mesmo e que, chorando a morte de Dido por amor de Eneias, não chora sua própria morte por falta de amor a ti, ó Deus, LUZ de meu coração, pão interior de minha alma, virtude fecundante de meu pensamento? Não te amava; prevaricava longe de ti, e ouvia de todas as partes: “Muito bem! Muito bem!” — porque a amizade deste mundo é adultério contra ti; e se aclamam a alguém dizendo: “Muito bem! Muito bem!” — é para que este não se envergonhe de ser assim. Eu não chorava estas faltas, chorava a morte de Dido “que se suicidou com a espada”, eu procurava as últimas de tuas criaturas, abandonando-te a ti, como terra que eu era, atraída pela terra. Se então me proibissem a leitura de tais coisas, me afligiriam por não ler aquilo que me comovia até a dor. Confissões I, XIII
Eu ainda não conhecia nenhuma palavra daquela língua, e já me obrigavam com veemência, com crueldades e terríveis castigos, a aprendê-la. Na verdade, eu, ainda criança, também não conhecia nenhuma palavra de latim; contudo, com um pouco de atenção, o aprendi entre o carinho das amas, os gracejos dos que se riam e as alegrias dos que brincavam, sem medo algum nem tormento. Eu o aprendi, sem a pressão dos castigos, impelido unicamente por meu coração desejoso de dar à LUZ seus sentimentos, e o único caminho para isso era aprender algumas palavras, não dos que as ensinavam, mas do que falavam, em cujos ouvidos ia eu depositando quanto sentia. Confissões I, XIV
Por isso, soltavam-me as rédeas para o jogo mais do que o permite uma moderada severidade, deixando-me cair na dissolução de várias paixões; e de todas surgia uma obscuridade que me toldava, ó meu Deus, a LUZ da tua verdade; e, por assim dizer, de meu corpo, brotava minha iniquidade. Confissões II, III
Mas então — tu bem o sabes, LUZ de meu coração — eu ainda não conhecia o pensamento de teu Apóstolo. Só me deleitava naquelas palavras de exortação, o fato de me excitarem fortemente, inflamando-me a amar, a buscar, a conquistar, a reter e a abraçar não a esta ou àquela seita, senão à própria Sabedoria, onde quer que estivesse. Só uma coisa me arrefecia tão grande ardor: não ver ali o nome de Cristo. Porque este nome, Senhor, este nome de meu Salvador, teu filho, por tua misericórdia eu o bebera piedosamente com o leite materno, e o conservava, no mais profundo do meu coração, em alto apreço; e assim, tudo quanto fosse escrito sem este nome, por mais verídico, elegante e erudito que fosse, não me arrebatava totalmente. Confissões III, IV
Ó loucura, que não sabe amar os homens humanamente! Ó homem insensato, que sofre desmedidamente os reveses humanos! Assim era eu então, e assim agitava-me, suspirava, chorava, perturbava-me, e não encontrava descanso nem conselho. Trazia a alma em farrapos e ensanguentada, indócil ao meu governo, e eu não encontrava lugar onde a pudesse depor. Nem os bosques amenos, nem os jogos e cantos, nem os lugares suavemente perfumados, nem os banquetes suntuosos, nem os prazeres da alcova e do leito, nem, finalmente, os livros e os versos podiam dar-lhe descanso. Tudo me causava horror, até a própria LUZ. Tudo o que não era o que ele era, era-me insuportável e odioso, exceto gemer e chorar, pois, somente nisto achava algum repouso. E se minha alma deixava de chorar, logo pesava sobre mim o grande fardo da desgraça. Confissões IV, VII
Eis onde jaz enferma a alma que ainda não se apoiou na firmeza da verdade. É levada e trazida, atirada e rechaçada, segundo os sopros das línguas que ventam dos peitos dos que opinam! E de tal modo a LUZ lhe é toldada, que não distingue a verdade, apesar de estar ela à nossa vista. Confissões IV, XIV
Assim como se cometem crimes quando o movimento do espírito é vicioso e se atira insolente e turbulento, e se cometem infâmias quando o afeto da alma, fonte dos prazeres carnais, é imoderado, assim os erros e falsas opiniões contaminam a vida se a alma racional está viciada, como estava a minha então. Ignorava que ela deveria ser ilustrada por outra LUZ para participar da verdade, por não ser da mesma essência da verdade, porque tu, Senhor, alumiarás minha lâmpada; tu, meu Deus, iluminarás minhas trevas, e todos participamos de tua plenitude, porque és a LUZ verdadeira que ilumina a todo homem que vem a este mundo, e porque em ti não há mudança nem a momentânea obscuridade. Confissões IV, XV
De que me aproveitava também ler e compreender por mim mesmo todos os livros que pude ter nas mãos sobre as artes chamadas liberais, se eu era então escravo de minhas más inclinações? Comprazia-me em sua leitura, sem atinar de onde vinha quanto de verdadeiro e certo achava neles; eu estava de costas para a LUZ, e o rosto, para os objetos iluminados, e por isso meus olhos, que os viam iluminados, não recebiam LUZ. Confissões IV, XVI
Com a inteligência e o engenho que lhes deste investigam os segredos do mundo, e descobriram muitos deles; predisseram com muitos anos de antecedência os eclipses do sol e da lua, no dia e hora em que hão de suceder, sem que nunca lhes falhasse o cálculo, acontecendo sempre tal e como haviam anunciado. Deixaram ainda por escrito as leis por eles descobertas, as quais ainda hoje se leem, e de acordo com elas se prediz em que ano, e em que mês do ano, e em que dia do mês, e em que hora do dia, e em que parte de sua LUZ se hão de eclipsar o sol e a lua; e tudo acontece como está predito. Confissões V, III
Admiram-se disto os ignorantes, e pasmam. Os sábios gloriam-se disso, e se desvanecem, e com ímpia soberba afastam-se e se eclipsam de tua LUZ. E, prevendo com exatidão o eclipse vindouro do sol, não veem o seu, que já está presente. Não procuram religiosamente saber de onde lhes vem o talento com que investigam essas coisas e, achando que tu as criaste, não se entregam a ti, para que conserves o que lhes deste, nem se te oferecem em sacrifício, como se tivessem feito a si mesmos; nem dão morte às suas soberbas, que alçam voo como aves do céu; nem às suas insaciáveis curiosidades que, como peixes do mar, passeiam pelas secretas sendas do abismo; nem às suas luxúrias, que os igualam aos animais do campo, a fim de que tu, ó Deus, fogo devorador, destruas estas suas preocupações de morte, e os torne a criar para uma vida imortal. Confissões V, III
Deixaste-me correr atrás de minhas paixões para dar fim ás minhas concupiscências, castigando com o justo flagelo da dor a saudade demasiado carnal de minha mãe. Ela, como todas as mães, e ainda mais que a maioria delas, desejava manter-me junto de si, desconhecendo as grandes alegrias que lhe preparavas com minha ausência. Não o sabia, e por isso chorava e se lamentava, denunciando com esses lamentos a herança que recebera de Eva, buscando em lágrimas ao que com gemidos havia dado à LUZ. Confissões V, VIII
Discutia com meus amigos Alípio e Nebrídio, sobre o bem e o mal finais; facilmente meu juízo teria dado a palma a Epicuro, se eu não acreditasse na imortalidade da alma e do julgamento de nossos atos, coisas em que Epicuro nunca acreditou. E eu perguntava: “Se fossemos imortais, e vivêssemos em perpétuo gozo sensorial, sem temor algum de perdê-lo, não seriamos felizes? Que mais poderíamos desejar?” Ignorava eu que isto era fruto duma grande miséria. Não podia, tão imerso no vício e cego como estava, imaginar a LUZ da virtude e uma beleza invisível aos olhos da carne, e somente visível das profundezas da alma. Na minha miséria, não indagava de que fonte provinha esse grande gosto em conversar com os amigos, por maior que fosse a abundância dos prazeres carnais, segundo a ideia que eu tinha então? Eu amava a meus amigos desinteressadamente, e também sentia que eles me amavam com o mesmo desinteresse. Confissões VI, XVI
E também a ti, vida de minha vida, imaginava-te como um Ser imenso, penetrando por todas as partes, através dos espaços infinitos, toda a massa do mundo, alastrando-se sem limites na imensidão, de sorte que a terra, o céu e todas as coisas te continham, e tudo isso tinha em ti seu limite, sem que te limitasses em parte alguma. E assim como a massa do ar — deste ar que está sobre a terra — não impede a passagem da LUZ do sol, não o impede de a atravessar, de a penetrar sem romper ou cortar, antes enchendo-a totalmente, assim eu pensava que não somente a substância do céu, do ar e do mar, mas também a da terra se deixava atravessar e penetrar por ti em todas as suas partes, grandes e pequenas, que receberiam tua presença, que, com secreta inspiração, governa interior e exteriormente tudo o que criaste. Confissões VII, I
O fato de eu ter a consciência de possuir uma vontade, como tinha consciência de minha vida, era o que me erguia para a tua LUZ. Assim, quando queria ou não queria alguma coisa, estava certíssimo de que era eu, e não outro, o que queria ou não queria, e então me convencia de que ali estava a causa do meu pecado. Quanto ao que fazia contra a vontade, notava que isso mais era padecer do mal do que praticá-lo; julgava que isso não era culpa, mas castigo, que me instava a confessar justamente ferido por ti, considerando tua justiça. Confissões VII, III
Ainda por isso, meu Deus, quero confessar-te tuas misericórdias desde o mais íntimo de minha alma! Foste tu, e só tu — pois, quem pode afastar-nos da morte do erro, senão a Vida que desconhece a morte, a Sabedoria que ilumina as pobres inteligências sem precisar de outra LUZ, e que governa o mundo até as folhas que tremulam nas árvores? Foste tu que medicaste a obstinação com que me opunha ao sábio velho Vindiciano e ao magnânimo jovem Nebrídio, que diziam — o primeiro, com veemência, o segundo com alguma hesitação, mas frequentemente — não existir a tal arte de predizer as coisas futuras, e que as conjecturas dos homens muitas vezes têm concurso do acaso e que, de tanto repetir, acertavam em predizer algumas coisas, sem que os mesmos que as diziam o soubessem. Confissões VII, VI
Firmino me relatava ter ouvido o pai contar que, estando sua mãe para o dar à LUZ, também estava grávida uma serva daquele amigo de seu pai, coisa que não poderia passar despercebida a seu senhor, que cuidava com extrema diligência e precisão de conhecer até o parto das cadelas. Confissões VII, VI
E sucedeu que, contando com o maior esmero os dias, horas e suas menores parcelas, da esposa e da escrava, ambas as mulheres deram à LUZ no mesmo momento, o que os obrigou a fazer, até em seus menores detalhes os mesmos horóscopos para os nascidos, um para o filho e outro para o pequeno servo. Confissões VII, VI
Tu só sabes o que eu padecia, mas homem algum o sabia. De fato, quão pouco era o que minha palavra transmitia aos meus amigos mais íntimos! Chegava, porventura, a eles o tumulto de minha alma, que nem o tempo, nem as palavras bastavam para declarar? Contudo, chegavam a teus ouvidos as queixas que em meu coração rugiam, e meu desejo estava diante de ti, mas a LUZ de meus olhos não estava contigo, porque ela estava dentro, e eu olhava para fora. Ela não ocupava espaço algum, e eu só pensava nas coisas que ocupam lugar, e não achava nelas lugar de descanso, nem me acolhiam de modo que pudesse dizer: “Basta, Aqui estou bem!” — Nem me permitiam que eu fosse para onde me sentisse satisfeito. Eu era superior a estas coisas, mas sempre inferior a ti. Serias minha verdadeira alegria se eu te fosse submisso, pois sujeitasse a mim tudo o que criaste inferior a mim. Tal seria o justo equilíbrio e a região central de minha salvação: permanecer como imagem tua, e servindo-te, ser o senhor de meu corpo. Mas, como me levantei soberbamente contra ti, investindo contra meu Senhor coberto com o escudo de minha dura cerviz, até mesmo as criaturas inferiores se fizeram superiores a mim, e me oprimiam, e não me davam um momento de alívio e de descanso. Confissões VII, VII
Neles eu li — não com estas palavras, mas substancialmente o mesmo e expresso com muitos e diversos argumentos — que “no princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Este estava desde o princípio em Deus. Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada foi feito do que foi feito. O que foi feito é vida nele, e a vida era a LUZ dos homens. E a LUZ brilha nas trevas, mas as trevas não a compreenderam. Diziam também que a alma do homem, embora dê testemunho da LUZ, não é a LUZ, mas o Verbo, Deus, é a verdadeira LUZ, que ilumina a todo homem que vem a este mundo. E que neste mundo estava, e que o mundo é criatura sua, e que o mundo não o conheceu”. Confissões VII, IX
Estimulado por estas leituras a voltar a mim mesmo, entrei, guiado por ti, no profundo de meu coração, e o pude fazer porque te fizeste minha ajuda. Entrei, e vi com os olhos da alma, acima desses mesmos olhos, acima de minha inteligência, a LUZ imutável; não esta vulgar e visível a todos os olhos de carne, nem outra do mesmo gênero, embora maior. Era muito mais clara e enchendo com sua força todo o espaço. Não, não era esta LUZ, mas uma LUZ diferente de todas estas. Confissões VII, X
Ela não estava sobre meu espírito como o azeite sobre a água, como o céu sobre a terra, mas estava acima de mim porque me criou; eu lhe era inferior por ter sido criado por ela. Quem conhece a verdade conhece a LUZ, e quem a conhece, conhece a eternidade. O amor a conhece! Ó eterna verdade, amor verdadeiro, amada eternidade! Tu és meu Deus. Por ti suspiro dia e noite. Quando te conheci pela primeira vez, ergueste-me para me fazer ver que havia algo para ser visto, mas que eu ainda era incapaz de ver. E deslumbraste a fraqueza de minha vista com o fulgor do teu brilho, e eu estremeci de amor e temor. Pareceu-me estar longe de ti numa região desconhecida, como se ouvira tua voz do alto: “Sou o pão dos fortes; cresce, e comer-me-ás. Não me transformarás em ti, como fazes com o alimento da tua carne, mas tu serás mudado em mim”. Confissões VII, X
Mas como também do alto dos céus é louvado, que seja louvado o nosso Deus, lá no alto por todos os teus anjos, todas as potestades, o sol e a lua, todas as estrelas e a LUZ, os céus dos céus, e a águas que estão sobre os céus glorificam teu nome, eu já não desejava nada melhor, porque, considerando o todo, os elementos superiores me pareciam sem dúvida melhores que os inferiores; mas um julgamento mais sadio me fazia considerar o todo melhor que os elementos superiores tomados à parte. Confissões VII, XIII
Entendi por experiência que não é de admirar que o pão seja enjoativo ao paladar enfermo, mesmo tão agradável para o paladar sadio, e que olhos enfermos considerem odiosa a LUZ, que para os límpidos é tão cara. Se tua justiça desagrada aos maus, muito mais desagradam a víbora e o caruncho, que criaste bons e adaptados à parte inferior da tua criação, com a qual também os maus se assemelham, tanto mais quanto mais diferem de ti, assim como os justos se assemelham às partes superiores do mundo na medida em que se assemelham a ti. Confissões VII, XVI
E, gradualmente, fui subindo dos corpos para a alma, que sente por meio do corpo; e dela à sua força interior, à qual os sentidos comunicam as coisas exteriores, que é o limite alcançado pelos animais. Daqui passei para o poder do raciocínio, ao qual cabe julgar as percepções dos sentidos corporais; por sua vez, julgando-se sujeito a mudanças, levantou-se até a sua própria inteligência, e afastou o pensamento de suas cogitações habituais. Livrou-se da multidão de fantasmas contraditórios, para descobrir que LUZ a inundava quando, sem nenhuma dúvida, afirmava que o imutável deve ser preferido ao mutável; e também de onde lhe vinha o conhecimento do próprio imutável, porque, se não tivesse dele alguma noção, nunca o preferiria ao mutável com tanta certeza. E, finalmente, chegou àquele que é um único lampejo. Confissões VII, XVII
Vamos pois, Senhor, mãos à obra! Desperta-nos, chama-nos, inflama-nos, arrebata-nos; derrama tuas doçuras, encanta-nos: amemos, corramos! Não é verdade que muitos voltam a ti, saindo de um abismo de cegueira mais profundo que o de Vitorino, e se aproximam de ti, e são iluminados pela tua LUZ, junto da qual recebem o poder de se fazerem teus filhos? Confissões VIII, IV
Eles é que são de fato maus, que seguem tais más doutrinas; somente serão bons quando aceitarem a verdade, concordando com os que a possuem. E assim o Apóstolo poderá dizer deles: Outrora fostes trevas, mas agora sois LUZ no Senhor. Mas esses, querendo ser LUZ não no Senhor, mas em si mesmos, julgam que a natureza da alma á a mesma que a de Deus; vão-se tornando trevas ainda mais densas, pois em sua terrível arrogância se afastam ainda mais de ti, LUZ verdadeira, que ilumina a todo homem que vem a este mundo. Atentai para o que dizeis, e enchei-vos de vergonha. Aproximai-vos dele, e sereis iluminados, e vossos rostos não serão cobertos de confusão. Confissões VIII, X
Não quis ler mais, nem era necessário. Quando cheguei ao fim da frase, uma espécie de LUZ de certeza se insinuou em meu coração, dissipando todas as trevas de dúvida. Confissões VIII, XII
Quão suave foi para mim a privação de doçuras fúteis! Temia então perdê-las, como agora sentia prazer em deixá-las! Porque tu se afastavas de mim, e entravas em seu lugar, mais doce que qualquer prazer, mas não para a carne e o sangue; mais claro que toda LUZ, mais oculto que qualquer segredo; mais sublime que todas as honras, mas não para os que exaltam a si mesmos. Confissões IX, I
Minha alma já estava livre dos devoradores cuidados da ambição, do ganho, e do prurido dos apetites carnais; e falava muito comigo, ó Deus e Senhor meu, minha LUZ, minha riqueza, minha salvação! Confissões IX, I
Tinhas alvejado nosso coração com as setas do teu amor, e levávamos tuas palavras cravadas em nossas entranhas; os exemplos de teus servos, que das trevas trouxeram para a LUZ, e da morte para a vida, ardiam no fundo de nosso espírito em uma espécie de fogueira, que inflamava e consumia nosso torpor, para que não mais nos inclinássemos para as baixezas. Confissões IX, II
Meus bens já não eram exteriores, e eu já não os buscava à LUZ deste sol, com olhos carnais. Os que querem gozar externamente, facilmente se dissipam e derramam pelas coisas visíveis e temporais, lambendo com pensamento faminto apenas as aparências. Oh! Se eles se esgotassem com a privação, e perguntassem: Quem nos mostrará o bem? E que ouvissem nossa resposta: Está gravada dentro de nós a LUZ de teu rosto, Senhor! — Porque não somos nós a LUZ que ilumina a todo homem, mas somos iluminados por ti, para que sejamos LUZ em ti, nós que outrora fomos trevas. Confissões IX, IV
Oh! Se eles vissem essa LUZ interior e eterna que eu havia visto! E como a havia saboreado, irritava-me por não poder mostrá-la. Se, pelo seus olhares dirigidos para fora, visse seu coração afastado de ti, me dissessem: “Quem nos mostrará o bem? Pois ali, onde me irritara contra mim mesmo, ali, no recôndito de meu coração onde, arrependido, eu havia sacrificado e imolado em mim o velho homem; onde, pondo em ti minha esperança, começara a meditar a renovação de mim mesmo, ali fizeste com que eu sentisse tua doçura, dando alegria a meu coração. E exclamava ao ler, fora de mim, essas palavras cuja verdade ecoava em mim; e não queria desdobrar-me pelos bens terrenos, devorando o tempo e sendo por ele devorado, porque possuía na eterna simplicidade outro trigo, outro vinho e outro azeite. Confissões IX, IV
Eu lia isto, e me inflamava. Não sabia que fazer com aqueles surdos, de quem eu fora a peste, um cão raivoso e cego que ladrava contra a Bíblia, dulcificada por seu mel celestial e iluminada por tua LUZ. E me consumia de dor por causa dos inimigos de tuas Escrituras. Confissões IX, IV
Muitas coisas passo em silêncio, porque tenho pressa. Recebe minhas confissões e ações de graças, meu Deus, pelas inúmeras bondades que não menciono aqui. Mas não quero calar o que brota de minha alma a respeito desta tua serva, que me gerou na carne para a LUZ temporal, e no coração para a LUZ eterna. Não referirei suas qualidades, nem a si mesma se havia educado. Confissões IX, VIII
Havia sido mulher de um só homem, cumprira sua dívida de gratidão com os pais, governara sua casa piedosamente e dava testemunho com suas boas obras. Educara os filhos, dando-os à LUZ tantas vezes quantas os via apartarem-se de ti. Confissões IX, IX
Nossa conversa chegou à conclusão que nenhum prazer dos sentidos carnais, por maior que seja, e por mais brilhante e maior que seja a LUZ material que o cerca, não parece digno de ser comparado à felicidade daquela vida em ti. Elevando nosso sentimento para mais alto, mais ardentemente em direção ao próprio Ser, percorremos uma a uma todas as coisas corporais, até o próprio céu, de onde o sol, a LUZ e as estrelas iluminam a terra. Confissões IX, X
Depois adormeci. Ao despertar, minha dor estava mitigada; só, em meu leito, lembrei-me dos versos cheios de verdade de teu Ambrósio. Porque, na verdade Tu és Deus, criador de quanto existe, De todo o mundo supremo governante, Que o dia vestes com tua LUZ brilhante, E de sonhos gratos a noite triste A fim de que os membros cansados O descanso ao trabalho prepare E as mentes cansadas, repare E os peitos de pena oprimidos Depois, pouco a pouco voltava aos sentimentos de antes sobre tua serva. Recordava de sua piedade para contigo, de sua solicitude e paciência comigo, da qual subitamente me via privado. E senti consolação em chorar diante de ti, por causa dela e por ela, e por minha causa e por mim. E deixei que as lágrimas reprimidas corressem à vontade, estendendo-as como um leito reparador sob meu coração. Teus ouvidos eram os que ali me escutavam, e não os de nenhum homem, que pudesse interpretar com soberba meu pranto. Confissões IX, XII
Mas tu amaste a verdade, porque quem a pratica alcança a LUZ. Eu desejo praticá-la em meu coração, diante de ti, por esta minha confissão, e diante de muitas testemunhas por meus escritos. Confissões X, I
Mas, que amo eu, quando te amo? Não amo a beleza do corpo, nem o esplendor fugaz, nem a claridade da LUZ, tão cara a estes meus olhos, nem as doces melodias das mais diversas canções, nem a fragrância de flores, de unguentos e de aromas, nem o maná, nem o mel, nem os membros tão afeitos aos amplexos da carne. Nada disto amo quando amo o meu Deus. E, contudo, amo uma LUZ, uma voz, um perfume, um alimento, um abraço de meu homem interior, onde brilha para minha alma uma LUZ sem limites, onde ressoam melodias que o tempo não arrebata, onde exalam perfumes que o vento não dissipa, onde se provam iguarias que o apetite não diminui, onde se sentem abraços que a saciedade não desfaz. Eis o que amo quando amo o meu Deus! Então, o que é Deus? Perguntei à terra, e ela me disse: “Eu não sou Deus”. E tudo o que nela existe me respondeu o mesmo. Perguntei ao mar, aos abismos e aos répteis viventes, e eles me responderam: “Não somos teu Deus; busca-o acima de nós”. Perguntei aos ventos que sopram; e todo o ar, com seus habitantes, me disse: “Anaxímenes está enganado eu não sou Deus”. Perguntei ao céu, ao sol, à LUZ e às estrelas. “Tampouco somos o Deus a quem procuras” Confissões X, VI
Ali se conservam também, distintas em espécies, as sensações que aí penetraram cada qual por sua porta: a LUZ, as cores, as formas dos corpos, pelos olhos; toda espécie de sons, pelos ouvidos; todos os odores, pelas narinas; todos os sabores, pela boca; enfim, pelo tato de todo o corpo, o duro e o brando, o quente e o frio, o suave e o áspero, o pesado e o leve, quer extrínseco, como intrínseco ao corpo. A memória armazena tudo isso em seus vastos recessos, em suas secretas e inefáveis sinuosidades, para lembrá-lo e trazê-lo à LUZ conforme a necessidade. Todas essas imagens entram na memória por suas respectivas portas, sendo ali armazenadas. Confissões X, VIII
Grande é o poder da memória! E ela tem algo de terrível, meu Deus, em sua complexidade infinita e profunda. E isto é o espírito, e isto sou eu mesmo. Que sou, pois meu Deus? Qual a minha natureza? Vida vária e multiforme, de amplidão imensa. Eis-me em minha memória, em seus campos, antros, inumeráveis cavernas, tudo isso infinitamente cheio de toda espécie de coisas, também inumeráveis. Umas gravadas em imagens, como os corpos; outras, estão sob a forma de não sei que noções e sinais, como os afetos da alma, que a memória conserva quando a alma já não os sente, embora tudo o que está na memória esteja também no espírito. Percorro em todas as direções este mundo interior, vou de um lado para outro, e nele me aprofundo o mais possível, sem encontrar-lhe os limites, tão grande é a vida que reside no homem mortal! Que hei de fazer, pois, meu Deus, minha verdadeira vida? Ultrapassarei também esta faculdade que se chama memória? Ultrapassa-la-ei para chegar a ti, doce LUZ? Que dizes? Confissões X, XVII
Pergunto a todos se preferem encontrar a alegria na verdade ou no erro; ninguém hesita em declarar que preferem a verdade, como em dizer que querem ser felizes. É que a felicidade é a alegria que provém da verdade. E essa alegria é a que nasce de ti, que és a própria Verdade, ó meu Deus, minha LUZ, saúde de meu rosto! Todos querem essa vida, a única feliz, essa alegria que se origina na verdade. Confissões X, XXIII
Há ainda um pouco de LUZ entre os homens: caminhem, caminhem, para que as trevas não os surpreendam. Confissões X, XXIII
Meus olhos apreciam as formas belas e variadas, as cores brilhantes e amenas. Oxalá elas não me acorrentassem a alma! Oxalá ela só fosse presa pelo Deus que criou coisas tão boas: ele é meu bem, e não elas. Todos os dias, estando acordado, elas me importunam sem o descanso das vozes que se calam, e às vezes de tudo o que existe, quando silencia. A própria rainha das cores, a LUZ que inunda tudo o que vemos, e onde quer que eu esteja durante o dia, acaricia-me de mil modos, mesmo quando estou ocupado em outra coisa e não lhe dou atenção. Confissões X, XXXIV
Ó LUZ que Tobias contemplava quando, cego, mostrava ao filho o caminho da vida, caminhando à sua frente com os passos da caridade, sem jamais se perder! LUZ que via Isaac, quando seus olhos carnais, oprimidos e velados pela velhice, mereceram não abençoar os filhos reconhecendo-os, mas reconhecê-los ao abençoá-los! LUZ que via Jacó, também cego pela idade provecta, irradiou os fulgores de seu coração iluminado sobre as gerações do povo futuro, representadas em seus filhos! E a seus netos, os filhos de José, impôs as mãos misticamente cruzadas, não na ordem em que queria dispô-los o pai, que via com os olhos corporais, mas de acordo com seu próprio discernimento interior! Eis a verdadeira LUZ; ela é uma, e todos os que a veem e amam formam um único ser. Confissões X, XXXIV
Quanto à LUZ corporal, de que falava, com sua doçura sedutora e perigosa, é um dos prazeres da vida para os cegos amantes do mundo. Mas os que nela sabem encontrar motivos para te louvar, Deus, criador de todas as coisas, convertem-na em hino em teu louvor, sem se deixarem dominar por ela no sono. é assim que desejo ser. Resisto às seduções dos olhos, para que meus pés, que começam a trilhar teus caminhos, não fiquem enredados. Elevo a ti olhos invisíveis, para que libertes meus pés de seus laços. Tu não cessa de livrá-los, porque sempre estão a se prender. Tu não cessas de me livrar, e eu me deixo cair a cada passo nas insídias espalhadas por toda parte, porque não dormirás, nem cochilarás, tu que guardas a Israel. Confissões X, XXXIV
De fato, ver é função própria dos olhos; mas muitas vezes nós usamos essa expressão mesmo quando se trata de outros sentidos, aplicados ao conhecimento. Nós não dizemos: “Ouve como isto brilha” — nem: “Sente como isso resplandece” — nem: “Apalpa como isto cintila”. — Para exprimir tudo isso dizemos “ver ou olhar”. E até não nos limitamos a dizer: “Olha que LUZ!”, pois apenas os olhos nos podem dar esta sensação — mas, dizemos ainda: “Olha que som! Olha que cheiro! Olha que gosto! Olha como é duro!” Por isso toda experiência que é obra dos sentidos é chamada, como disse, concupiscência dos olhos. Essa função da visão, que pertence aos olhos, é usurpada metaforicamente pelos outros sentidos, quando buscam conhecer alguma coisa. Confissões X, XXXV
Quando deixaste de me acompanhar, ó Verdade, para me ensinar o que eu devia evitar ou procurar, sempre te consultei, a ti submetendo, dentro da minha limitação, meus medíocres pontos de vista? Percorri com os sentidos, como pude, o mundo exterior. Observei a vida de meu corpo e os meus próprios sentidos. Depois adentrei nas profundezas da memória em seus múltiplos domínios, tão maravilhosamente repletos de inúmeras riquezas; observei tudo isso, estupefato. Sem teu auxílio nada poderia distinguir, mas reconheci que nada disto eras tu. Nem era eu o descobridor de todas essas coisas; me esforcei para distingui-las e avaliá-las em seu devido valor, recebendo-a através dos sentidos e interrogando-as. Senti outras coisas unidas a mim, e as examinei, assim como aos sentidos que mas traziam; revolvi as vastas reservas da memória, analisando certas lembranças, guardando umas e trazendo outras à LUZ. Porque tu és a LUZ permanente que eu consultava sobre a existência, o valor e a qualidade de todas as coisas, e eu ouvia teus ensinamentos e tuas ordens. Costumo fazê-lo muitas vezes, pois essa é a minha alegria, e sempre que meus trabalhos me permitem algum descanso, refugio-me nesse prazer. Confissões X, XL
Procuravam um mediador para purificá-los, mas não o encontraram, senão ao demônio transfigurado em anjo de LUZ, que justamente por não possuir corpo de carne, seduziu-lhes fortemente a carne orgulhosa. Eram eles mortais e pecadores, e tu, Senhor, com quem eles procuravam com soberba reconciliar-se, és imortal e sem pecado. Confissões X, XLII
Permitas que te sacrifique meu pensamento e minha língua, mas concede-me o que te devo oferecer, porque sou pobre e indigente, enquanto és rico para todos os que te invocam e, sem cuidados contigo, cuidas de nossa existência. Livra-me, Senhor, de toda temeridade e de toda mentira que meus lábios e meu coração possam proferir. Que tuas Escrituras sejam minhas castas delicias, que não me engane nelas, nem com elas engane a ninguém. Senhor, ouve-me, e tem compaixão, Senhor meu Deus, LUZ dos cegos e vigor dos fracos, mas também LUZ dos que veem e força dos fortes; presta atenção à minha alma e ouve-a clamar do fundo do abismo. E se teus ouvidos estão ausentes do abismo, para onde iremos, por quem clamaremos? Confissões XI, II
É nesse princípio, ó Deus, que criaste o céu e a terra; em teu Verbo, em teu Filho, em tua virtude, em tua sabedoria, em tua verdade, falando e agindo de modo admirável. Quem o poderá compreender ou explicar? Que LUZ é essa que por vezes me ilumina, e que fere meu coração sem o lesar? Atemorizo-me e inflamo-me: tremo porque, de certo modo, sou tão diferente dela; e inflamo-me, porque também sou semelhante a ela. A Sabedoria é a mesma sabedoria que brilha em mim de quando em quando: ela rasga as nuvens de minha alma, que novamente me encobrem quando dela me afasto, pelas trevas e pelo peso de minhas memórias. Na indigência, meu vigor enfraqueceu de tal modo, que nem posso mais suportar o meu bem, até que tu, Senhor que te mostraste compassivo com todas minhas iniquidades, cures também todas as minhas fraquezas. Redimirás minha vida da corrupção; hás de me coroar na piedade e na misericórdia, e saciarás com teus bens meus desejos, porque minha juventude será renovada com a da águia. Confissões XI, IX
Os que assim falam não te compreendem ainda, ó Sabedoria de Deus, LUZ das inteligências; não compreendem ainda como é criado o que é criado por ti e em ti. Esforçam-se por saborear as coisas eternas, mas seu espírito voa ainda sobre as realidades passadas e futuras. Quem poderá deter esse pensamento, quem o fixará por um momento, para que tenha um rápido vislumbre do esplendor da eternidade imutável, e a compare com os tempos impermanentes, para perceber que qualquer comparação é impossível? Então veria que a sucessão dos tempos não é feita senão de uma sequência infindável de instantes, que não podem ser simultâneos; que, pelo contrário, na eternidade, nada é sucessivo, tudo é presente, enquanto o tempo não pode ser de todo presente. Veria que todo o passado é repelido pelo futuro, que todo futuro segue o passado, que tanto o passado como o futuro tiram seu ser e seu curso daquele que é sempre presente. Quem poderá deter a inteligência do homem para que pare e veja como a eternidade imóvel, que não é futura nem passada, determina o futuro e o passado? Acaso poderá realizar isso minha mão? Ou esta minha língua, com a palavra, poderia realizar tal obra? Confissões XI, XI
Senhor, que és a minha LUZ, tua verdade não escarnecerá também nisso o homem? Esse tempo passado, foi longo quando já havia passado ou quando ainda estava presente? Porque ele só podia ser longo enquanto existia alguma coisa que pudesse ser longa. Mas uma vez passado, não existia mais: donde se conclui que não podia ser longo, porque já deixara de existir. Não digamos, portanto: “O tempo passado foi longo” — pois não encontraremos nada que pudesse ter sido longo; uma vez passado não existe mais. Mas digamos: “O tempo presente foi longo” — porque só era longo enquanto presente. Ainda não havia passado, ainda não havia deixado de existir, e por isso era susceptível de ser longo. Mas logo que passou, deixou de ser longo, porque cessou de existir. Confissões XI, XV
Mas tu, que és soberano sobre tuas criaturas, de que modo ensinas às almas os fator porvir, como revelas aos teus profetas? De que modo ensinas o futuro, tu, para quem o futuro não existe? Ou antes, como ensinas os sinais presentes dos fatos futuros? Pois, o que ainda não existe não pode ser ensinado. O teu modo misterioso de agir está muito acima de minha inteligência, sobrepuja minhas forças. Por mim mesmo eu não o poderia alcançar, mas podê-lo-ei por ti, quando me concederes, ó doce LUZ dos olhos de minha alma! Confissões XI, XIX
Minha alma se inflama no desejo de deslindar este enigma tão complicado! Senhor, meu Deus, meu bom Pai, eu to suplico por Cristo; não queiras tolher a meu desejo a solução de tais problemas, tão familiares mas tão obscuros; permite que eu os penetre, e faze com que a LUZ de tua misericórdia os ilumine, Senhor! A quem poderia eu consultar sobre isso? A quem confessaria minha ignorância com mais proveito do que a ti, que não se despraz com o forte zelo que me inflama por tuas Escrituras? Concede-me o que amo, pois este amor é um dom teu. Dá-me, ó Pai, esta graça, tu que sabes presentear com boas dádivas a teus filhos. Concede-me essa LUZ, porque determinei conhecê-las, e meu esforço será rude até que me reveles esses mistérios. Eu to suplico, por Cristo, em nome do Santo dos Santos, que ninguém perturbe minha investigação. Confissões XI, XXII
Veja, pois, que o tempo é uma espécie de extensão. Mas eu o vejo, ou apenas tenho a impressão de vê-lo? Só tu mo demonstrarás, ó LUZ, ó Verdade! Confissões XI, XXIII
Senhor, meu Deus, que abismos profundos os de teus segredos, e quão longe deles me levaram as consequências de meus pecados! Cura meus olhos, para que eu me alegre com tua LUZ! Se houvesse de fato um espírito de ciência e de presciência tão grandes para conhecer o passado e o futuro, como conheço qualquer canto popular, esse espírito nos encheria de extraordinária admiração e espanto. Nada, com efeito, lhe seria oculto no passado e nos séculos vindouros, exatamente como, ao entoar essa melodia, sei tudo o que cantei desde o começo, e tudo o que falta cantar até o fim. Mas longe de mim a ideia de identificar um tal conhecimento àquele que tens de todas as coisas futuras e passadas, ó Criador do Universo, Criador dos espíritos e dos corpos. Tua ciência é incomparavelmente mais admirável e mais misteriosa. Confissões XI, XXXI
Mas esta terra era invisível e informe, era um profundo abismo acima do qual não pairava nenhuma LUZ, pois não tinha nenhuma forma. Por isso inspiraste estas palavras: “As trevas cobriam o abismo”. — Mas que são trevas, senão ausência da LUZ? De fato, se então existisse, onde estaria a LUZ senão sobre a terra, para iluminá-la? Mas como a LUZ ainda não existia, o que era a presença das trevas, senão a ausência da LUZ? As trevas reinavam sobre o abismo porque a LUZ não existia, do mesmo modo que onde não há ruído reina o silêncio. E que significa reinar o silêncio, senão falta de som? Confissões XII, III
Que nome darei a esta matéria, como sugerir sua ideia às inteligências mais curtas, senão usando um termo de uso corrente? O que se pode encontrar no mundo que seja mais parecido com essa ausência total de forma, que a terra e o abismo? Colocados no mais baixo grau da criação, eles não têm a beleza dos corpos que no alto brilham de LUZ fulgurante. Confissões XII, IV
Mas o céu do céu pertence a ti, Senhor; a terra, que deste aos filhos dos homens para que a vissem e tocassem, não era tal como agora e vemos e tocamos. Era invisível e informe: um abismo sobre o qual não havia LUZ. As trevas se estendiam sobre o abismo — isto é: mais profundas que o abismo. Esse abismo das águas, agora visíveis, tem até em suas profundezas uma luminosidade, perceptível aos peixes e aos animais que se arrastam no fundo. Mas tudo isso era quase o nada, sendo ainda completamente informe; porém já era um ser apto a receber uma forma. Confissões XII, VIII
Senhor, criaste o mundo de uma matéria sem forma; do nada fizeste este quase nada de onde tiraste as grandes coisas que admiramos, nós, os filhos dos homens. Porque este céu corpóreo é de fato admirável, este firmamento que separa uma água de outra, que criaste no segundo dia, depois da LUZ, dizendo: “Faça-se — e assim se fez”. Chamaste a este firmamento de céu: o céu desta terra e deste mar que criaste no terceiro dia, dando forma visível à matéria informe, criado por ti antes de todos os dias. Confissões XII, VIII
Ó Verdade, LUZ de meu coração, faze com que se calem as minhas trevas. Deixei-me cair nelas e fiquei às escuras; mas, mesmo do fundo desse abismo, eu te amei ardentemente. Andei, errante, mas lembrei de ti. Ouvi tua voz atrás de mim, que me exortava a que voltasse; mas dificilmente podia escutá-la, por causa do tumulto de minha alma. e agora, eis que, ardente e anelante, volto à tua fonte. Que ninguém mo impeça; beberei de sua água, e assim viverei. Que não seja eu minha própria vida! Vivi mal por minha culpa, e fui a causa de minha morte. Em ti eu revivo! Fala-me, ensina-me. Creio em teus livros, e tuas palavras encerram profundos mistérios. Confissões XII, X
“No princípio criou Deus o céu e a terra. A terra era invisível e informe, e as trevas se estendiam sobre o abismo.” Ouço estas palavras, meu Deus, e não encontrando menção do dia em que criaste essas coisas, concluo dessa omissão que se trata do céu do céu, do céu intelectual, onde a inteligência conhece simultaneamente e não por partes; não por enigma, ou como um espelho, mas por inteiro, em plena LUZ, face a face; conhece não ora isto, ora aquilo, mas, como disse, simultaneamente, sem a sequência temporal. Concluo também que se trata da terra invisível, informe, estranha às vicissitudes do tempo, que ora causam isto, ora aquilo, pois onde não há forma não pode haver isto ou aquilo. Confissões XII, XIII
Não encontramos o tempo antes dessa criação, porque a sabedoria foi a primeira de todas as tuas criações. E é claro que não me refiro à Sabedoria da qual és Pai, ó nosso Deus, e que te é perfeitamente igual e co-eterna, por quem todas as coisas foram criadas, e que é o princípio em que criaste o céu e a terra; refiro-me à sabedoria criada, dessa essência intelectual que, pela contemplação da LUZ, também é LUZ; a esta, embora criada, também chamamos de sabedoria. E assim como a LUZ que ilumina difere da LUZ refletida, a sabedoria criada difere da sabedoria incriada; e a justiça justificante difere da justiça nascida da justificação. Nós fomos também chamados de tua justiça. Porque um de teus servos disse: “Para que, em Cristo, nos tornemos a justiça de Deus”. — Há portanto, uma sabedoria criada antes de todas as coisas, e ela foi criada como espírito racional e inteligente, que habita tua cidade santa, nossa mãe, que está no alto, livre e eterna nos céus — e em que céus, senão aos céus dos céus, que te louvam, esse céu que pertence ao Senhor? — Se não encontramos o tempo antes dessa sabedoria, é porque ela precede à criação do tempo, tendo sido criada primeiro, mas antes dela há a eternidade de seu Criador, de quem recebeu sua origem, e não do tempo, pois este ainda não existia, mas pela sua condição de criatura criada. Confissões XII, XV
Ela procede pois, de ti, nosso Deus, embora seja de essência absolutamente diversa da tua. Não encontramos nenhum tempo, não apenas antes dela, mas nela própria, porque ela é capaz de contemplar sempre tua face sem jamais se apartar de ti, sendo incólume às mudanças e às variações. Contudo, há nela certa mutabilidade que poderia torná-la tenebrosa e gélida, não fosse o grande amor que a une a ti e que brilha como meridiana LUZ e calor. Confissões XII, XV
Quero discutir diante de ti apenas com os que reconhecem por verdadeiras as afirmações que tua verdade revelou à minha inteligência. Os que o negam, que ladrem quanto quiserem, até ficar roucos. Tentarei persuadi-los a que se acalmem, e deem acesso em seus corações à tua palavra. Se não o quiserem e me repelirem, peço-te, meu Deus, que não te cales, não te afastes de mim. fala com verdade em meu coração, porque só tu podes falar assim. E eu os deixarei fora, soprando o pó e levantando terra contra os próprios olhos. Retirar-me-ei em mim mesmo, levantando a ti cânticos de amor, soluçando altos gemidos durante meu exílio, lembrando-me de Jerusalém, voltando para ela meu coração — Jerusalém, minha pátria e minha mãe — e para ti, que reinas sobre ela, seu pai, sua LUZ, seu tutor, seu esposo, suas castas e grandes delícias, sua firme alegria, enfim, todos seus bens inefáveis, porque és o único, soberano e verdadeiro Bem. Não me apartarei de ti até que reúnas todas as partes dispersas e deformadas do meu ser na paz dessa mãe muito amada, onde estão as primícias de meu espírito, e de onde me vêm todas as certezas, e nela me reformes e confirmes por toda a eternidade, ó meu Deus, minha misericórdia. Confissões XII, XVI
Ouço e considero todas essas teorias, mas não quero discutir por questões de palavras, o que não serve para nada, senão para a confusão dos ouvintes. Pelo contrário, a lei é boa para a edificação se dela se faz uso legítimo, porque sua finalidade é a caridade que nasce de um coração puro, de uma boa consciência e de uma fé não fingida. Nosso Mestre sabe quais dos dois preceitos em que resumiu toda a lei e os profetas. A mim, que observo com zelo tais preceitos, ó meu Deus, LUZ de meus olhos na escuridão, que me importa que possa que possa encontrar sentidos diferentes para essas palavras, se todos são verdadeiros? Que me interessa, digo eu, que outros compreendam o texto de Moisés de modo diferente do meu? Nós todos que o lemos procuramos indagar e compreender o pensamento do autor. E como o julgamos verídico, não ousamos admitir que ele pusesse dizer o que sabemos ou o que consideramos falso. Confissões XII, XVIII
Assim, nos esforços que fazemos para compreender, na Escritura Sagrada, a ideia que o escritor quis transmitir, onde está o mal se o leitor interpreta o sentido que tu, LUZ de todas as inteligências sinceras, lhe fazes parecer verdadeiro, embora talvez não tenha sido este o pensamento do autor? E considerando que ele, pensando de outra maneira, só pensou verdades? Confissões XII, XVIII
O mesmo ocorre em relação à interpretação das palavras que se seguem. Entre essas, todas verdadeiras, cada um escolhe uma. Este diz: “A terra era invisível e caótica, e as trevas se estendiam sobre o abismo” — isto é, essa massa corpórea, que Deus fez, era a matéria ainda sem forma, sem ordem, sem LUZ, das coisas corpóreas. Confissões XII, XXI
Assim, se o Gênesis é omisso quanto à criação de certas coisas, criação essa que está acima de dúvidas para uma fé sadia e uma inteligência segura, e se nenhuma doutrina racional ousa sustentar que essas águas são co-eternas a Deus, pelo fato de as vermos mencionadas no Gênesis sem a menção do momento de sua criação , por que haveríamos de aceitar, à LUZ da verdade, que essa matéria informe, que a Escritura chama de terra invisível e desordenada e de abismo tenebroso, foi feita por Deus do nada e por isso não é co-eterna a Deus, embora a narração da Escritura tenha deixado de referir o momento em que foi criada? Confissões XII, XXII
Uma vez que não discordamos sobre essa LUZ do Senhor, nosso Deus, por que discutir sobre o pensamento de nosso próximo? Nós não o podemos ver como vemos a verdade imutável. Confissões XII, XXV
Quereria, se estivesse no lugar de Moisés — pois todos procedemos da mesma massa, e que é o homem se não te lembras dele? — e me tivesses confiado a missão de escrever o Gênesis, quereria receber de ti tal eloquência, tal qualidade de estilo, que mesmo os espíritos incapazes de compreender como foi que Deus criou, não pudessem rejeitar minhas palavras como superiores às suas forças; que os que já o pudessem, descobrissem, nas poucas palavras de teu servo, todas as verdades que sua reflexão já lhes tivesse proporcionado; e que se alguém, à LUZ de tua verdade, nelas percebesse outro significado, também ele o pudesse encontrar nessas mesmas palavras. Confissões XII, XXVI
Quando leem ou ouvem as palavras de Moisés, veem que tua estável e eterna permanência, ó Deus, domina todos os tempos passados e futuros, e por isso não existe criatura corpórea que não seja obra tua. Veem que tua vontade, confundindo-se com teu ser, criou todas as coisas sem sofrer modificação, sem que nasça nela uma decisão nova, que não existisse antes; que criaste o mundo, não tirando de tua substância uma imagem tua, forma substancial de toda realidade, mas tirando do nada uma matéria informe, diferente de ti mesmo; e esta poderia ser formada à tua imagem pela volta à tua Unidade, segundo a medida previamente estabelecida e concedida a cada ser, de acordo com sua espécie. Veem assim que todas as obras da criação são excelentes, ou porque permanecem próximas a ti, ou porque, afastadas de ti no tempo e no espaço, fazem ou sofrem as admiráveis variedades do mundo. Reconhecem essas coisas, e por isso se alegram na LUZ de tua verdade, à medida que o podem com suas forças terrenas. Confissões XII, XXVIII
E o que a matéria corporal merecera de ti para existir, mesmo invisível e caótica? Nem mesmo essa existência teria, se não as tivesses criado. Não existindo ainda, não podia ter merecimento algum para existir. E a criatura espiritual, ainda no estado embrionário, que títulos teria, mesmo para ser essa coisa vagante e tenebrosa, semelhante ao abismo, diferente de ti, se por teu Verbo não fosse conduzida ao mesmo Verbo que a criou e se, iluminada por ele, também não se transformasse em LUZ, não igual, mas análoga à tua imagem? Para um corpo, não é a mesma coisa existir e ser belo, pois de outro modo não poderia viver e viver sabiamente não são a mesma coisa, porque, se fosse, todo espírito seria imutável em sua sabedoria. Confissões XIII, II
Mas seu bem reside em se manter unido a ti, para não perder, afastando-se, a LUZ que adquiriu com a tua proximidade, tornando a cair em uma vida semelhante a um abismo de trevas. Confissões XIII, II
E também nós, que por nossa alma somos criaturas espirituais, nós nos afastamos de ti, nossa LUZ, nós fomos outrora trevas nesta vida e ainda padecemos por entre os restos de nossas trevas, até que nos tornamos tua justiça em teu Filho único, como as montanhas de Deus. Pois fomos objetos de teus juízos, que são profundos como abismos. Confissões XIII, II
Sobre as palavras que proferiste no começo da criação: “Faça-se a LUZ, e a LUZ foi feita” — eu entendo que se adaptam com propriedade à criatura espiritual, que já era uma espécie de via apta a receber tua LUZ. Mas assim como ela não tinha merecido de ti ser essa espécie de vida apta a receber a LUZ, do mesmo modo, uma vez criada, ela como as demais formas não mereceu de ti essa iluminação. Porque sua informidade não te agradaria se não tivesse tornado LUZ, e isso não se contentando com existir, mas contemplando a LUZ que a iluminava, unindo-se intimamente a ela. Assim, ela devia a existência e o viver feliz apenas à tua graça; voltada, por uma escolha feliz, para o que não pode mudar nem para melhor, nem para pior. Voltou-se para ti, que és o único que existes, e só o teu ser é simples, pois o viver e a felicidade são para ti a mesma coisa, porque és tua própria felicidade. Confissões XIII, III
Incorruptível, imutável, bastando-se a si mesma, tua vontade era suspensa acima da vida que tinhas criado, para a qual viver não é o mesmo que viver feliz, porque ela vive, mesmo quando flutua sobre as trevas. Esta vida carece ainda voltar-se para seu Criador, para viver cada vez mais próxima à fonte da vida, para ver a LUZ na LUZ divina, e nela haurir perfeição, brilho e felicidade. Confissões XIII, IV
Já falei longamente do céu do céu, da terra invisível e informe e do abismo das trevas, onde a natureza espiritual errante e fluida permaneceria tal se não se voltasse para Aquele de quem toda vida procede, para que, por meio de sua LUZ, se tornasse viva e bela, o céu do céu, criado mais tarde entre a água superior e a água inferior. Confissões XIII, V
Mas, ó LUZ da verdade, aproximo de ti meu coração para que ele não me ensine falsidades; dissipa-lhe as trevas e dize-me, eu to suplico por nossa mãe, a caridade, dize-me, por que só depois de ter nomeado o céu, a terra invisível e informe e as trevas sobre o abismo, por que só então é que as Escrituras falam de teu Espírito? Será porque convinha apresentá-lo assim pairando sobre alguma coisa? E seria isso possível se não mencionasse primeiro sobre o que pairava? De fato, não era sobre o Pai nem sobre o Filho que ele pairava, e seria impróprio falar assim se não pairasse sobre alguma coisa. Confissões XIII, VI
O anjo caiu, a alma do homem caiu, revelando assim as profundas trevas em que teria caído o abismo que continha todas as criaturas espirituais, se não tivesses dito desde o começo: “Faça-se a LUZ!” — se a LUZ não se tivesse feito, se todas as inteligências de tua cidade celeste não se tivessem unido na obediência a ti, se não tivessem repousado em teu Espírito que paira, imutável, sobre os seres transitórios. De outro modo, até o céu do céu não seria mais que abismo de trevas, enquanto que agora é LUZ no Senhor. Confissões XIII, VIII
Nesta lamentável inquietação dos espíritos decaídos, que, despidos da veste de tua LUZ, manifestam as próprias trevas, mostras claramente a grandeza de tua criatura racional; na busca da felicidade, ela só se sacia com tua grandeza, onde encontra repouso — pois que ela não pode bastar-se a si própria. Porque tu, Senhor, iluminarás nossas trevas. De ti vêm nossas vestes de LUZ, e nossas trevas serão como o sol do meio-dia. Confissões XIII, VIII
Feliz a criatura que não conheceu outro estado! Seria porém diferente do que é se, apenas criada, teu Espírito, que paira sobre todas as coisas mutáveis, não a tivesse erguido com este apelo: “Faça- te a LUZ” — e a LUZ se fez. Em nós, o tempo em que éramos trevas distingue-se do tempo em que nos tornamos LUZ. Mas dessa criatura só se diz o que teria sido se não fosse iluminada. A Escritura fala dela como se tivesse sido flutuante e tenebrosa, para nos realçar a causa que a transformou, isto é, que a conduziu para a LUZ inextinguível, para que também fosse LUZ. Quem o puder, compreenda, quem não o puder, que te peça a graça de o compreender. Por que importunam, como seu fosse a LUZ que ilumina a todo homem que vem a este mundo? Confissões XIII, X
Mas porque teu Espírito pairava sobre as águas, tua misericórdia não abandonou nossa miséria, e disseste: “Faça-se a LUZ”. Fazei penitencia, porque está próximo o reino de Deus. Fazei penitencia, faça-se a LUZ! E porque tínhamos a alma conturbada, nos lembramos de ti, Senhor, às margens do Jordão, sobre essa montanha grande como tu, que te tornaste pequeno por nós. Confissões XIII, XII
Nossas trevas te desagradaram, nós nos voltamos para ti, e a LUZ se fez. E eis que outrora fomos trevas e que agora somos LUZ no Senhor. Confissões XIII, XII
Contudo, somos LUZ apenas pela fé, e não por uma visão clara. É na esperança que fomos salvos, e a esperança que vê não é mais esperança. O abismo clama pelo abismo, mas é já pela voz de tuas cataratas. Não pude falar-vos como a homens espirituais, mas como a carnais. Quem assim fala, não julga ainda ter atingido sua meta e, esquecendo-se do que ficou para trás, avança para o que está vivo, como o cervo tem sede de água das fontes, e diz: “Quando chegarei?” — Ele deseja o abrigo de sua morada, que está no céu e chama o abismo inferior dizendo: “Não vos conformeis com este mundo, mas reformai-vos renovando vosso espírito, e não queirais ser crianças na mente, mas sede pequeninos quanto à malícia, para que sejais perfeitos no espírito…” Confissões XIII, XIII
E ainda: “Ó gálatas insensatos, quem vos fascinou?” — Mas não é mais sua voz que fala assim, e sim a tua voz, porque mandaste teu Espírito do alto do céu por intermédio de Jesus, que subiu ao céu e abriu as cataratas de seus dons, para que a torrente de alegria alegrasse tua cidade. É por essa cidade que suspira o amigo do esposo, ele que já possui as primícias do Espírito, mas que ainda geme, porque está à espera da adoção e do resgate do seu corpo. É por ela que suspira, porque ele é membro da Esposa de Cristo; por ela se abrasa em zelo, porque é o amigo do esposo. Zela por ela, não por si mesmo, pois é pela voz de tuas cataratas, e não com sua própria voz, que ele chama pelo outro abismo, objeto de seu zelo e de seus temores. Assim como a serpente enganou Eva com sua astúcia, ele receia que as inteligências débeis se corrompam e se afastem da pureza que está em teu Esposo, teu Filho único. Quão resplandecente será essa LUZ, quando o virmos tal como ele é, e quando tiverem passado essas lágrimas que se tornaram o pão de meus dias e de minhas noites, enquanto a cada dia me perguntam: Onde está o teu Deus? Confissões XIII, XIII
Por isso, em nossa peregrinação, recebemos dele o penhor de já sermos LUZ; ele já nos salvou pela esperança e, de filhos da noite e das trevas que éramos, ele fez filhos da LUZ e do dia. Confissões XIII, XIV
Na incerteza da ciência humana, só tu és capaz de distinguir entre uns e outros, porque põe nossos corações à prova e chamas à LUZ dia e às trevas noite. Quem, senão tu, sabe nos distinguir? E que temos nós que não o tenhamos recebido de ti? Nós, feitos vasos de honra, fomos feitos da mesma argila que serviu para fazer os vasos de ignomínia. Confissões XIII, XIV
Não é justo a teus olhos que a LUZ imutável seja conhecida pelo ser mutável, que ela ilumina, como ela se conhece a si própria. Por isso, minha alma é para ti como terra sem água, porque assim como não pode iluminar a si mesma, não se pode saciar por seus próprios meios. Porque em ti está a fonte da vida, e graças à tua LUZ é que veremos a LUZ. Confissões XIII, XVI
Senhor, assim como crias e concedes alegria e força, assim te peço que nasça da terra a vontade, e que a justiça lance os olhos sobre nós do alto dos céus, e que no firmamento brilhem os astros! Dividamos nosso pão com quem tem fome, acolhamos em nossa casa o pobre sem teto, vistamos quem está nu, e não desprezemos nossos semelhantes! Quando tais frutos nascem de nossa terra, olha, Senhor, e diz: Isso é bom; faze que tua LUZ brilho no momento oportuno. Por esta humilde messe de boas obras, faze que nos possamos elevar a uma contemplação deliciosa do Verbo da Vida, e que brilhemos no mundo como astros, fixados no firmamento de tua Escritura. Confissões XIII, XVIII
Deste modo já não és mais o único, no segredo de teu discernimento, como eras antes da criação do firmamento, a distinguir entre a LUZ e as trevas. Também tuas criaturas espirituais, dispostas e ordenadas nesse mesmo firmamento, depois que tua graça se manifestou através do mundo, brilham sobre a terra, separam o dia da noite e marcam as diferenças dos tempos. De fato, as coisas antigas passaram, e eis que se fizeram novas, nossa salvação está mais próxima do que quando começamos a crer, a noite avançou e se aproximou o dia, coroas o ano com tua benção, envias teus operários à tua messe, semeada pelo trabalho de outros operários, enviando-os também para outra sementeira, cuja messe será colhida no fim dos séculos. Confissões XIII, XVIII
Por desígnio eterno, lanças sobre a terra os bens do céu no tempo oportuno; a um, teu Espírito dá a palavra de sabedoria, luminar maior para os que encontram seu deleite na LUZ de uma verdade clara como o raiar do dia; a outro dás, pelo mesmo Espírito, a palavra de ciência, luminar menor; a outro a fé; a outro o poder de curar; a outro o dom dos milagres; a outro a graça da profecia; a este o discernimento dos espíritos, àquele o dom das línguas. E todos esses dons são como estrelas, são obra de um só e mesmo Espírito, que reparte a cada um os seus dons como lhe agrada, e que faz aparecer tais astros para o bem comum. Confissões XIII, XVIII
Quanto ao homem carnal, semelhante a um menino em Cristo, que só se alimenta de leite, que não se julgue abandonado em sua noite, que saiba contentar-se com a LUZ da lua e das estrelas, até que possa tomar alimento sólido e olhar para o sol. Eis o que nos ensinas em tua sabedoria, nosso Deus, em teu livro, que é teu firmamento, para que distingamos todas as coisas em contemplação admirável, embora ainda estejamos sob a lei dos sinais, dos tempos, dos dias e dos anos. Confissões XIII, XVIII
Mas vós, geração escolhida, fracos aos olhos do mundo, que tudo deixaste para seguir o Senhor, caminhais após ele, confundi os fortes; segui-lo com vossos pés resplandecentes, e brilhai no firmamento para que os céus cantem suas glórias, distinguindo a LUZ dos perfeitos, que ainda não são semelhantes aos anjos, e as trevas dos pequenos, que ainda não perderam a esperança. Brilhai sobre toda a terra! Que o dia resplandecente de sol transmita ao dia seguinte a palavra de Sabedoria, e que a noite, iluminada pela lua, transmita à noite a palavra de Ciência. A lua e as estrelas brilham na noite, mas a noite não as obscurece, porque são elas que iluminam a noite, de acordo com a sua capacidade. Confissões XIII, XIX
Como se Deus tivesse dito: Façam-se luminares no firmamento, e logo se fez ouvir um ruído vindo do céu, semelhante ao de um vento violento, e foram vistas línguas de fogo, que se dividiram e se colocaram sobre cada um deles. E apareceram luminares no céu, que possuíam a palavra de vida. Correi por toda parte, chamas sagradas, fogos admiráveis. Vós sois a LUZ do mundo, e não estais debaixo do alqueire. Aquele a quem vos unistes foi exaltado e ele vos exaltou. Correi e dai-vos a conhecer a todas as nações. Confissões XIII, XIX
Que o mar também conceba e dê à LUZ tuas obras; que as águas produzam répteis dotados de almas vivas. De fato, separando o precioso do vil, vos tornastes a boca de Deus, pela qual ele diz: “Produzam as águas…” não a alma viva, filha da terra, mas répteis dotados de almas vivas, e pássaros que voam sobre a terra. Assim como esses répteis, teus sacramentos, ó meu Deus, deslizaram, graças às obras de teus santos, por entre as ondas das tentações do século para regenerarem os povos com teu nome, em teu batismo. Confissões XIII, XX
Por que não abençoaste também a LUZ, que chamaste dia, nem a terra, nem o mar? Eu diria, meu Deus, que nos criaste à tua imagem, diria que quiseste conceder especialmente ao homem esta benção, se não houvesses abençoado igualmente os peixes e os cetáceos, para que cresçam, se multipliquem, encham as águas do mar, e os pássaros para que se multipliquem sobre a terra. Confissões XIII, XXIV
Quer dizer, então, ó minha LUZ, ó Verdade? Que tais palavras carecem de senso e foram ditas em vão? De nenhum modo, ó Pai de misericórdia. Longe de mim, longe do servidor de teu Verbo, uma tal afirmação! Apenas não compreendo o sentido dessas palavras, e espero que os melhores que eu, ou seja, os mais inteligentes, a entendam melhor, segundo a sabedoria que deste, meu Deus, a cada um. Que te agrade ao menos a confissão, que faço diante de ti, de minha certeza de que não falaste em vão aquelas palavras. Confissões XIII, XXIV
E note ainda nisto, meu leitor. Há uma frase que a Escritura declara de uma só forma, e que a voz fala apenas dessa maneira: “No princípio criou Deus o céu e a terra” — E não pode a frase ser interpretada diversamente — descartando o erro ou o sofisma — conforme os diversos pontos de vista legítimos? É assim que crescem e se multiplicam as gerações dos homens! Se consideramos a natureza das coisas, não alegoricamente, mas em sentido próprio, a sentença: “Crescei e multiplicai-vos” — se aplica a todas as criaturas que nascem de uma semente. Se, ao contrário, a interpretamos em sentido figurado, como penso que foi a intenção da Escritura, que não limita inutilmente essa benção aos peixes e aos homens, encontramos então multidões de criaturas espirituais e temporais, como no céu e na terra; de almas justas e injustas, como na LUZ e nas trevas; de escritores sagrados que nos anunciaram a Lei, como no firmamento estabelecido entre as águas; na sociedade amargurada dos povos, como no mar; no zelo das almas piedosas, como em terra enxuta; nas obras de misericórdia praticadas nesta vida, como nas plantas que nascem de semente e nas árvore frutíferas; nos dons espirituais concedidos para o bem de todos, como nos luminares do céu; nas paixões dominadas pela temperança, como na alma viva. Em todas essas coisas encontramos multidões, fecundidade, crescimento. Mas que esse crescimento e essa proliferação exprimam uma mesma ideia de vários modos e que uma só expressão possa ser entendida de muitas maneiras, esse fato, apenas o encontramos nos sinais sensíveis e nos conceitos intelectuais. Confissões XIII, XXIV
Graças te damos, Senhor! Vemos o céu e a terra, isto é, a parte superior e inferior do mundo material, assim como a criação espiritual e material. E, como adorno dessas partes que se compõe, o conjunto do Universo, e o conjunto de toda a criação, vemos a LUZ que foi criada e separada pelas trevas. Vemos o firmamento do céu, tanto o que está situado entre as águas espirituais superiores e as águas materiais inferiores, como ainda esses espaços de ar, chamados também de céu, onde volitam as aves do céu entre as águas que se evolam em vapores, e nas noites serenas se condensam em orvalho, e as que correm pesadas sobre a terra. Vemos a beleza das águas reunidas nas planícies do mar, e a terra enxuta, ora nua, ora tomando forma visível e ordenada, mãe das plantas e das árvore . vemos os luminares do céu brilhando acima de nós, o sol bastar para o dia, a lua e as estrelas consolando a noite, e todos esses astros marcando e assinalando a cadência do tempo. Vemos o elementos úmido habitado por peixes, monstros, animais alados, porque a densidade do ar que sustenta o voo dos pássaros é aumentada pela evaporação das águas. Vemos a face da terra embelezar-se de animais terrestres, e o homem, criado à tua imagem e semelhança, senhor de todos os animais irracionais, precisamente porque foi feito à tua imagem e se assemelha a ti, em virtude da razão e da inteligência. E como na alma humana há uma parte que domina pela reflexão e outra que se submete na obediência, assim a mulher foi criada fisicamente para o homem; é fora de dúvida que ela possui um espírito e uma inteligência racional, iguais aos do homem, mas seu sexo a coloca sob a dependência do sexo masculino; é desse modo que o desejo, princípio da ação, se submete à razão que concebe a arte do agir retamente. Eis o que vemos, e que cada uma dessas coisas, tomadas por si, são boas, e que todas, em seu conjunto, são muito boas. Confissões XIII, XXXII