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Acaso alguma criança pequena de hoje, em quem vejo a IMAGEM do que não recordo de mim? E em que eu poderia pecar nesse tempo? Acaso por desejar o peito da nutriz, chorando? Se agora eu suspirasse com a mesma avidez, não pelo seio materno, mas pelo alimento próprio da minha idade, seria justamente escarnecido e censurado. Logo, era então digno de repreensão o meu proceder; mas como não podia entender a censura, nem o costume nem a razão permitiam que eu fosse repreendido. Prova está que, ao crescermos, extirpamos e afastamos de nós essa sofreguidão; e jamais vi homem sensato que, para limpar uma coisa viciosa, prive-a do que tem de bom. Confissões I, VII

Quanto melhor teria sido para mim receber logo a saúde, e que meus cuidados e os dos meus fossem empregados em conservar intacta debaixo da tua proteção a saúde da minha alma, que me havias concedido! Melhor fora, certamente; porém, como minha mãe, sem dúvida, já previa quantas e quão grandes ondas de tentações me ameaçariam depois da meninice, preferiu expor-me a elas como terra grosseira que depois receberia forma, do que expor-me já como IMAGEM tua. Confissões I, XI

Acaso foi o gosto de agir pela fraude contra a tua lei, já que não o podia fazer por força, simulando, cativo, uma falsa liberdade ao fazer impunemente o que estava proibido, IMAGEM tenebrosa de tua onipotência? Confissões II, VI

Ignorava totalmente o princípio de nossa existência, que há em nós, e pelo qual a Escritura nos chama de IMAGEM e semelhança de Deus. Confissões III, VII

Atribuem a ti, com perversa cegueira, suas mentiras, a ti, que és a própria Verdade; alteram a glória de um Deus incorruptível, concebendo-a à semelhança e IMAGEM do homem corruptível, das aves, dos quadrúpedes, das serpentes. E convertem tua verdade em mentira, e adoram e servem antes à criatura do que ao Criador. Confissões V, III

Logo verifiquei que vossos filhos espirituais, a quem regeneraste no sei da santo mãe, a Igreja, não interpretavam aquelas palavras: “Fizeste o homem à sua IMAGEM” — de modo a acreditar que estavas encerrado na forma do corpo humano. E embora eu então não soubesse, nem sequer suspeitasse de longe o que fosse substância espiritual — alegrei-me com isso, envergonhando-me por ter ladrado durante tantos anos, não contra a católica, mas contra invenções de minha inteligência carnal. Tinha sido ímpio e temerário por criticar uma doutrina que eu deveria ter antes procurado conhecer. Mas tu — que estás ao mesmo tempo tão alto e tão perto de nós, tão escondido e tão presente, tu que não tens membros maiores nem menores, que estás inteiro em toda parte sem estar todo em nenhum lugar, certamente não tens nossa forma corpórea. Contudo, fizeste o homem à tua IMAGEM, e eis que ele, da cabeça aos pés, é limitado pelo espaço. Confissões VI, III

Não compreendendo como poderia se espelhar esta tua IMAGEM ao homem, eu deveria bater à porta, perguntando-te de que modo deveria entender essa crença, em lugar de me opor insolentemente, como se ela fosse o que eu imaginava. E assim, tanto mais fortemente me roia o coração o desejo de ter alguma certeza, quanto mais me envergonhava de ter sido o joguete dos que me haviam prometido a certeza, e por ter defendido com pueril empenho e animosidade tantas coisas duvidosas como sendo verdadeiras. Confissões VI, IV

Tu só sabes o que eu padecia, mas homem algum o sabia. De fato, quão pouco era o que minha palavra transmitia aos meus amigos mais íntimos! Chegava, porventura, a eles o tumulto de minha alma, que nem o tempo, nem as palavras bastavam para declarar? Contudo, chegavam a teus ouvidos as queixas que em meu coração rugiam, e meu desejo estava diante de ti, mas a luz de meus olhos não estava contigo, porque ela estava dentro, e eu olhava para fora. Ela não ocupava espaço algum, e eu só pensava nas coisas que ocupam lugar, e não achava nelas lugar de descanso, nem me acolhiam de modo que pudesse dizer: “Basta, Aqui estou bem!” — Nem me permitiam que eu fosse para onde me sentisse satisfeito. Eu era superior a estas coisas, mas sempre inferior a ti. Serias minha verdadeira alegria se eu te fosse submisso, pois sujeitasse a mim tudo o que criaste inferior a mim. Tal seria o justo equilíbrio e a região central de minha salvação: permanecer como IMAGEM tua, e servindo-te, ser o senhor de meu corpo. Mas, como me levantei soberbamente contra ti, investindo contra meu Senhor coberto com o escudo de minha dura cerviz, até mesmo as criaturas inferiores se fizeram superiores a mim, e me oprimiam, e não me davam um momento de alívio e de descanso. Confissões VII, VII

E por isso lia também nesses livros que a glória de tua natureza incorruptível havia sido transformada em ídolos e simulacros de todo tipo, à semelhança da IMAGEM do homem corruptível, das aves, dos quadrúpedes e serpentes. Isto é, naquele alimento do Egito pelo qual Esaú perdeu sua primogenitura. Israel, teu povo primogênito, voltando o coração para o Egito, honrou em teu lugar a cabeça de um quadrúpede, curvando tua IMAGEM, isto é, a própria alma, diante da IMAGEM de um bezerro comendo feno. Confissões VII, IX

E não se limita a isto a imensa capacidade de minha memória. Ali estão, como em um lugar recôndito, que alias, não é um lugar, todas as noções aprendidas das artes liberais, pelo menos as que ainda não esqueci. Mas, neste caso, não são as imagens delas que trago em mim, mas as próprias realidades em si. As noções de literatura, a dialética, as diferentes espécies de questões, tudo o que sei a respeito desses problemas estão em minha memória, mas não estão ali como a IMAGEM solta de uma coisa, cuja realidade se deixou fora. Nesse caso seria como um som que se ouve e passa, como a voz que deixa no ouvido um rastro, que permite que a lembremos, como se ainda soasse embora já não soe; ou como o perfume que, ao passar e desvanecer-se no ar, atinge o olfato e grava sua IMAGEM na memória, IMAGEM que a lembrança reproduz; ou como o alimento, que perde o sabor no estômago, mas o conserva na memória; ou como um corpo que se sente pelo tato e que, ausente, é imaginado pela memória. Todas essas realidades não nos penetram a memória, mas tão somente são captadas as suas imagens com maravilhosa rapidez, e dispostas, digamos, em compartimentos admiráveis, de onde são extraídas pelo milagre da lembrança. Confissões X, IX

Ouço dizer que há três gêneros de questões a saber: se uma coisa existe, qual a sua natureza e qual sua qualidade — retenho a IMAGEM dos sons de que se compõem estas palavras, e sei que estes atravessaram o ar como ruído, e já não existem. Mas as realidades significadas por tais palavras, eu jamais atingi com nenhum sentido do corpo, nem as vi em nenhuma parte fora de meu espírito; o que gravei na minha memória não são suas imagens, mas as próprias realidades. Que me digam, se o puderem, por onde entraram em mim! percorro em vão todas as portas do meu corpo, e não descubro por onde poderiam ter entrado. Com efeito: os olhos dizem: “Se são coloridas, fomos nós que as transmitimos.” — Os ouvidos dizem: “Se eram sonoras, foram por nós comunicadas”. — As narinas dizem: “Se tinham cheiro, passaram por aqui”. — E o gosto diz: “Se não têm sabor, nada me perguntem”. — O tato declara: “Se não são corpóreas, eu não as toquei, e portanto não poderia revelá-las” Confissões X, X

Vi linhas traçadas por artistas, finas como um fio de aranha. Mas as linhas materiais não são a IMAGEM das que vi com meus olhos carnais. Para reconhecê-las não há necessidade alguma de se pensar em um corpo qualquer, pois, é no espírito que as reconhecemos. Confissões X, XII

Contudo, certamente não poderíamos falar deles se não encontrássemos na memória não só os sons dessas palavras, segundo a IMAGEM gravada em nós pelos sentidos, mas ainda as noções que elas exprimem. Essas noções, nós não a recebemos por nenhuma porta da carne, mas a própria alma, sentindo-as pela experiência das próprias emoções, confiou-as à memória; ou então a própria memória as reteve, sem que ninguém lhas confiasse. Confissões X, XIV

Evoco uma dor do corpo, que está ausente de mim, já que nada me dói. Contudo, se a IMAGEM da dor não estivesse em minha memória, não saberia o que dizia, e ao raciocinar não a distinguiria do prazer. Confissões X, XV

Falo de saúde do corpo, estando são; neste caso, está em mim o próprio objeto. No entanto, se sua IMAGEM não estivesse em minha memória, de modo algum lembraria o significado dessa palavra. Os doentes, ouvindo falar de saúde, não saberiam do que se trata, não fosse o poder da memória a conservar a IMAGEM da ausência da realidade. Confissões X, XV

Evoco a IMAGEM do sol, e esta se apresenta à minha memória; e não evoco a IMAGEM de uma IMAGEM, mas a própria IMAGEM, disponível à recordação. Confissões X, XV

Estará ela presente a si própria por sua IMAGEM, e não por si mesma? Confissões X, XV

Mas, que é o esquecimento, senão falta de memória? E como pode ele estar presente na minha lembrança. Se sua lembrança significa não lembrar? Mas se nos lembramos, o guardamos na memória, e se nos é impossível reconhecer o que significa a palavra esquecimento, quando a ouvimos, a não ser que dele nos lembremos, logo a memória é a que retém o esquecimento. Ele está na memória, pois do contrário, nós o esqueceríamos; mas, ele presente, nós nos esquecemos. Segue-se que ele não está presente à memória por si mesmo, quando nos lembramos dele, mas por sua IMAGEM. Do contrário, o esquecimento não faria com que nos lembrássemos, mas com que nos esquecêssemos. Mas, enfim, quem poderá descobrir, quem poderá compreender o modo como isto se realiza? Confissões X, XVI

Que direi então, desde que tenho a certeza que lembro do esquecimento? Diria talvez que não está em minha memória o que recordo? Ou talvez direi que o esquecimento está em minha memória, para que não o esqueça? Ambas hipóteses são grandes absurdos. Vejamos uma terceira hipótese: poderei eu afirmar que minha memória retém a IMAGEM do esquecimento, e não o esquecimento em si, quando dele me lembro? Com que fundamento, pois, poderei dizê-lo, se para que se grave na memória a IMAGEM de um objeto, é necessário que este esteja presente antes, de onde emana a IMAGEM a ser gravada? É assim que lembro de Cartago, e assim de todos os outros lugares por que passei; assim me lembro do rosto dos homens que vi e das coisas que meus sentidos me deram a conhecer; assim me lembro ainda da dor física, coisas cujas imagens a memória fixou quando estavam presentes, para que eu as pudesse contemplar e repassar em espírito, quando eu as evocasse na sua ausência. Confissões X, XVI

Se, pois, é a IMAGEM do esquecimento que está na memória, e não ele mesmo, é evidente que nalgum momento esteve presente para que sua IMAGEM fosse fixada. Mas, se estava presente, como podia gravar na memória sua IMAGEM, se o esquecimento apaga com sua presença tudo o que lá está impresso? Contudo, seja qual for o mecanismo desse fenômeno, e por mais incompreensível e inexplicável que seja, estou certo de que me lembro do esquecimento, que apaga da memória, todas as nossas lembranças. Confissões X, XVI

Se alguma coisa desaparece de nossa vista, e não da memória — como sucede com um corpo visível — conservamos interiormente sua IMAGEM e o procuramos até que apareça a nossos olhos. Quando for encontrado, será reconhecido de acordo com essa IMAGEM interior. Não podemos dizer que encontramos um objeto perdido se não o reconhecemos; nem o podemos reconhecer se dele não lembramos. Tinha pois desaparecido da nossa vista, mas era conservado pela memória. Confissões X, XVIII

Mas não será justamente a felicidade que todos querem, sem exceção? E onde a conheceram para a desejarem tanto? Onde a viram para assim a amarem? O que é certo é que está em nós a sua IMAGEM. Mas não sei como isto se dá. E há diversos modos de ser feliz: quer possuindo realmente a felicidade, quer possuindo apenas sua esperança. Este último modo é inferior ao dos que são realmente felizes, embora estejam melhor que os não felizes nem na realidade, nem na esperança. Mesmo estes, todavia, não desejariam tanto a felicidade se esta lhes fosse completamente estranha, e é certo que a desejam. Não sei como a conheceram, e portanto ignoro a noção que dela têm. O que me preocupa é saber se essa noção reside na memória, pois, se é lá que reside, é sinal de já fomos felizes alguma vez. Por ora não busco saber se todos fomos felizes individualmente, ou se o fomos naquele que pecou primeiro, e no qual todos morremos, e de quem nascemos na infelicidade. O que procuro saber é se a felicidade reside na memória, porque certamente não a amaríamos se não a conhecêssemos. Mal ouvimos esta palavra, e todos confessamos que desejamos a mesma coisa; e não é o som da palavra que nos deleita. Quando um grego a ouve pronunciar em latim, não se alegra, porque ignora seu sentido. Mas nós nos alegramos ao ouvi-la, como ele se a ouvisse em sua língua. A felicidade, com efeito, não é grega nem latina; mas gregos e latinos, assim como todos que falam outras línguas, desejam alcançá-la. Confissões X, XX

Longe de mim, longe do coração de teu servo, Senhor, que a ti se confessa, a ideia de encontrar a felicidade não importa em que alegria! A felicidade é uma alegria que não é concedida aos ímpios, mas àqueles que te servem por puro amor: tu és essa alegria! Alegrar-se de ti, em ti e por ti: isso é felicidade. E não há outra. Os que imaginam outra felicidade, apegam-se a uma alegria que não é a verdadeira. Contudo, sempre há uma IMAGEM da alegria da qual sua vontade não se afasta. Confissões X, XXII

Quando me recordei de ti, ultrapassei aquela região da memória que também os animais possuem, pois não te encontrei entre as imagens dos objetos corpóreos. E cheguei àquela parte onde depositei os afetos de minha alma, mas também aí não te encontrei. Cheguei à morada que meu próprio espírito possui na memória — porque também o espírito lembra de si mesmo — mas nem ali estavas. Isso porque não és IMAGEM corpórea, nem afeto de ser vivo, como a alegria, a tristeza, o desejo, o temor, a lembrança, o esquecimento e outros semelhantes, e nem és meu próprio espírito, porque és o Senhor e Deus do espírito, e tudo isso é mutável, enquanto permaneces imutável e subsistes acima de todas as coisas, e te dignaste habitar em minha memória desde que te conheço. Confissões X, XXV

Gostaria de apelar para um exemplo tomado entre os muitos possíveis. Vejo a aurora, e prognostico o nascimento do sol. O que vejo é presente, o que anuncio é futuro. Não o sol, que já existe, mas seu surgimento, que ainda não ocorreu. Contudo, se eu não tivesse uma IMAGEM mental desse surgimento, como agora quando falo dele, ser-me-ia impossível a previsão. Mas essa aurora que vejo não é o nascimento do sol, embora o preceda; nem o é tampouco a IMAGEM que trago em meu espírito. As duas coisas estão presentes, eu as vejo, e assim posso predizer o que vai acontecer. O futuro, portanto, ainda não existe; se ainda não existe, não existe no agora; e se não existe não pode ser visto de modo algum, mas pode ser prognosticado pelos sinais presentes, que já existem e podem ser vistos. Confissões XI, XVIII

Quando leem ou ouvem as palavras de Moisés, veem que tua estável e eterna permanência, ó Deus, domina todos os tempos passados e futuros, e por isso não existe criatura corpórea que não seja obra tua. Veem que tua vontade, confundindo-se com teu ser, criou todas as coisas sem sofrer modificação, sem que nasça nela uma decisão nova, que não existisse antes; que criaste o mundo, não tirando de tua substância uma IMAGEM tua, forma substancial de toda realidade, mas tirando do nada uma matéria informe, diferente de ti mesmo; e esta poderia ser formada à tua IMAGEM pela volta à tua Unidade, segundo a medida previamente estabelecida e concedida a cada ser, de acordo com sua espécie. Veem assim que todas as obras da criação são excelentes, ou porque permanecem próximas a ti, ou porque, afastadas de ti no tempo e no espaço, fazem ou sofrem as admiráveis variedades do mundo. Reconhecem essas coisas, e por isso se alegram na luz de tua verdade, à medida que o podem com suas forças terrenas. Confissões XII, XXVIII

E o que a matéria corporal merecera de ti para existir, mesmo invisível e caótica? Nem mesmo essa existência teria, se não as tivesses criado. Não existindo ainda, não podia ter merecimento algum para existir. E a criatura espiritual, ainda no estado embrionário, que títulos teria, mesmo para ser essa coisa vagante e tenebrosa, semelhante ao abismo, diferente de ti, se por teu Verbo não fosse conduzida ao mesmo Verbo que a criou e se, iluminada por ele, também não se transformasse em luz, não igual, mas análoga à tua IMAGEM? Para um corpo, não é a mesma coisa existir e ser belo, pois de outro modo não poderia viver e viver sabiamente não são a mesma coisa, porque, se fosse, todo espírito seria imutável em sua sabedoria. Confissões XIII, II

Assim, Senhor, nosso Deus e nosso Criador, quando nossos afetos mundanos, que nos causam a morte porque nos faziam viver mal, se afastarem do amor do mundo, quando nossa alma, vivendo bem, se tornar alma viva, e quando se cumprir a palavra que proferiste pela boca de teu Apostolo: “Não vos conformeis com o mundo em que vivemos” — então seguir-se-á aquilo que acrescentaste imediatamente ao dizer: “Mas reformai-vos na novidade de vossa mente”. — E já não será “segundo vossa espécie” — como se fosse imitar nossos predecessores ou viver seguindo os exemplos de alguém melhor que nós. Não disseste: “Que o homem seja feito de acordo com sua espécie” — mas “façamos o homem à nossa IMAGEM e semelhança” — para que pudéssemos reconhecer tua vontade. Para tanto, o divulgador de teu pensamento, que gerou filhos pelo Evangelho, não querendo que continuassem como crianças os que alimentara com leite e agasalhara em teu seio como uma ama, dizia: “Reformai-vos renovando vosso coração, para discernir a vontade de Deus, que é bom, agradável e perfeito”. — Também não dizes: “Faça-se o homem” — mas “à nossa IMAGEM e semelhança”. Aquele que é renovado no espírito, que compreende e conhece tua verdade, não mais carece que um outro lhe ensine a imitar sua espécie. Graças às tuas lições, ele reconhece por si qual é tua vontade, o que é bom, agradável e perfeito. Tu lhe ensinas, pois agora é capaz deste ensinamento, a ver a Trindade da Unidade e a Unidade da Trindade. Eis por que, depois de falar no plural: “Façamos o homem” se diz no singular: “E Deus criou o homem”. Depois deste plural: “À nossa IMAGEM” — este singular: “À IMAGEM de Deus”. Assim o homem “se renova pelo conhecimento de Deus, à IMAGEM de seu criador” — e “tornando-se espiritual, julga todas as coisas”, que certamente hão de ser julgadas, “mas ele não é julgado por ninguém”. Confissões XIII, XXII

Por isso, na tua Igreja, Senhor, pela graça que lhe concedeste — pois somos obra tua, e criados para obras boas, tanto os que governam como os que obedecem segundo o Espírito tem o dom de julgar. Porque assim fizeste a criatura humana homem e mulher, em tua graça espiritual, onde não há distinção conforme o sexo, nem judeu nem grego, nem escravo nem homem livre. Os espirituais, portanto, tanto os que presidem como os que obedecem, julgam espiritualmente. Eles não julgam conhecimentos espirituais que brilham no firmamento, pois não lhes cabe fazer juízos sobre tão sublime autoridade. Nem julgam tua Escritura, mesmo em suas passagens obscuras: nós lhe submetemos nossa inteligência, e temos certeza de que até aquilo que está oculto à nossa compreensão é justo e verdadeiro. O homem, pois, embora já espiritual e renovado pelo conhecimento, conforme a IMAGEM de seu criador, deve ser cumpridor da lei, e não seu juiz. Nem pode ajuizar sobre o que distingue espirituais e carnais. Somente teus olhos, meu Senhor, os distinguem, mesmo que nenhuma obra sua os tenha revelado a nós, para que os reconheçamos por seus frutos. Mas tu, Senhor, já os conheces e os classificaste, e os chamaste no segredo de teu pensamento, antes de ter criado o firmamento. Confissões XIII, XXIII

Por isso, o homem que criaste à tua IMAGEM, não recebeu poder sobre os astros do céu, nem sobre o mesmo céu misterioso, nem sobre o dia e a noite que chamaste á existência antes da criação do céu, nem sobre a massa das águas, que é o mar. Mas recebeu poder sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre todos os animais, sobre toda a terra, e sobre tudo o que se arrasta pela superfície do solo. Confissões XIII, XXIII

Por que não abençoaste também a luz, que chamaste dia, nem a terra, nem o mar? Eu diria, meu Deus, que nos criaste à tua IMAGEM, diria que quiseste conceder especialmente ao homem esta benção, se não houvesses abençoado igualmente os peixes e os cetáceos, para que cresçam, se multipliquem, encham as águas do mar, e os pássaros para que se multipliquem sobre a terra. Confissões XIII, XXIV

Qual então o motivo de tua alegria, ó grande Paulo? De onde vem tal júbilo, de que te alimentas, ó homem renovado para o conhecimento de Deus, conforme a IMAGEM de teu Criador, alma viva que possui tal domínio de si, língua alada que exprime os mistérios? É certamente a tais almas que se deve este alimento. O que foi para ti esse alimento substancioso? A alegria. Confissões XIII, XXVI

Graças te damos, Senhor! Vemos o céu e a terra, isto é, a parte superior e inferior do mundo material, assim como a criação espiritual e material. E, como adorno dessas partes que se compõe, o conjunto do Universo, e o conjunto de toda a criação, vemos a luz que foi criada e separada pelas trevas. Vemos o firmamento do céu, tanto o que está situado entre as águas espirituais superiores e as águas materiais inferiores, como ainda esses espaços de ar, chamados também de céu, onde volitam as aves do céu entre as águas que se evolam em vapores, e nas noites serenas se condensam em orvalho, e as que correm pesadas sobre a terra. Vemos a beleza das águas reunidas nas planícies do mar, e a terra enxuta, ora nua, ora tomando forma visível e ordenada, mãe das plantas e das árvore . vemos os luminares do céu brilhando acima de nós, o sol bastar para o dia, a lua e as estrelas consolando a noite, e todos esses astros marcando e assinalando a cadência do tempo. Vemos o elementos úmido habitado por peixes, monstros, animais alados, porque a densidade do ar que sustenta o voo dos pássaros é aumentada pela evaporação das águas. Vemos a face da terra embelezar-se de animais terrestres, e o homem, criado à tua IMAGEM e semelhança, senhor de todos os animais irracionais, precisamente porque foi feito à tua IMAGEM e se assemelha a ti, em virtude da razão e da inteligência. E como na alma humana há uma parte que domina pela reflexão e outra que se submete na obediência, assim a mulher foi criada fisicamente para o homem; é fora de dúvida que ela possui um espírito e uma inteligência racional, iguais aos do homem, mas seu sexo a coloca sob a dependência do sexo masculino; é desse modo que o desejo, princípio da ação, se submete à razão que concebe a arte do agir retamente. Eis o que vemos, e que cada uma dessas coisas, tomadas por si, são boas, e que todas, em seu conjunto, são muito boas. Confissões XIII, XXXII

Acendeste então os luzeiros no firmamento: teus santos, que possuem a palavra de vida e brilham pela sublime autoridade dos seus dons espirituais. Depois, para difundir a entre as nações idólatras, fizeste com a matéria visível dos sacramentos os milagres bem perceptíveis, e determinaste as vozes das palavras sagradas, conformes ao firmamento de teu Livro, pelas quais seriam abençoados teus fiéis. Formaste depois a alma viva dos fiéis, pela disciplina das paixões bem ordenadas e pelo vigor da continência. Por fim renovaste a alma, que não estava sujeita senão a ti, e que não tinha mais necessidade de nenhuma autoridade humana para imitar, à tua IMAGEM e semelhança; submeteste, como a mulher ao homem, a atividade racional ao poder da inteligência. Quiseste que a teus ministros que são necessários ao progresso dos fiéis nesta vida, que esses mesmos fiéis propiciassem o necessário para suas necessidades temporais; obras valiosas de caridade, cujos frutos colherão no futuro. vemos todas essas coisas, e todas são muito boas, porque tu as contemplas em nós, tu que nos deste o Espírito, para que por ele pudéssemos vê-las e amar-te nelas. Confissões XIII, XXXIV