Escuta-me, ó meu Deus! Ai dos pecados dos HOMENS! E quem isto te diz é um homem, e tu te compadeces dele porque o criaste, e não foste autor do pecado que nele existe. Confissões I, VII
Mas, por sorte, encontrei HOMENS que te invocavam, Senhor, e com eles aprendi a te sentir, quanto possível, como a um Ser grande que podia escutar-nos e vir em nosso auxílio, embora sem a percepção dos sentidos. Ainda menino, pois, comecei a invocar-te como refúgio e amparo e, para te invocar, desatei os nós de minha língua; e, embora pequeno, te rogava já com grande fervor para que não me açoitassem na escola. E quando não me escutavas, o que servia para meu proveito os mestres, assim como meus próprios pais, que certamente não desejavam o meu mal, riam-se daquele castigo, que então era para mim grave suplício. Confissões I, IX
Não gritem contra mim aqueles mestres a quem já não temo, enquanto confesso a ti os desejos de minha alma, e aborreço dos meus maus caminhos, a fim de amar os teus. Não gritem contra mim os comerciantes da gramática, pois, se eu os interrogar sobre se é verdade que Eneias veio uma vez a Cartago, como afirma o poeta, os néscios responderão que não sabem, e os sábios negarão o fato. Porém, se lhes perguntar como se escreve o nome de Eneias, todos os que estudaram me responderão a mesma coisa, de acordo com a convenção com que os HOMENS fixaram o valor das letras do alfabeto. Confissões I, XIII
Ai de ti, torrente dos hábitos humanos! Quem há que te resista? Quando te secarás? Até quando irás arrastar os filhos de Eva a esse mar imenso e tenebroso, que apenas logram passar os que embarcam sobre o lenho da cruz? Acaso não foi em ti que li a fábula de Júpiter que troveja e adultera? É verdade que não podia fazer tais coisas ao mesmo tempo, mas assim se representou para autorizar a imitação de um verdadeiro adultério com o encantamento de um falso ouvir com paciência a um homem nascido do mesmo pó que clama e diz: “Homero imaginava essas ficções e atribuía aos deuses os vícios humanos; porém, eu preferiria que atribuísse a nós as qualidades divinas”. Com mais verdade se diria que Homero imaginou tudo isso, atribuindo qualidades divinas a HOMENS corrompidos, para que os vícios não fossem considerados como tais, e para que todo aquele que os cometesse parecesse que imitava a deuses celestes, e não a HOMENS corrompidos. Confissões I, XVI
E contudo, ó torrente infernal, em ti se precipitam os filhos dos HOMENS, com o dinheiro gasto para aprender tais coisas. E consideram acontecimento importante representá-lo, publicamente no Foro, à vista das leis que concedem aos mestres um prêmio, além de seus salários particulares. Confissões I, XVI
Mas, por que admirar-se que eu me deixasse arrastar pelas vaidades e me afastar de ti, meu Deus, se me propunham como exemplos para imitar a uns HOMENS que se, ao contar alguma boa ação, deslizassem nalgum barbarismo ou solecismo cobriam-me de críticas e, pelo contrário, que eram elogiados por narrar suas torpezas com palavras castiças e apropriadas, de modo eloquente e elegante, e que os inchavam de vaidade? Confissões I, XVIII
Olha, meu Senhor e meu Deus, é vê paciente, como costumas ver, de que modo diligente os filhos dos HOMENS observam as regras de ortografia recebidas dos primeiros mestres, e desprezam as leis eternas de salvação perpétua recebidas de ti; de tal modo que, se alguns dos que sabem ou ensinam as regras antigas dos sons pronunciasse a palavra homo, sem aspirar a primeira letra, desagradaria mais aos HOMENS do que se, contra teus preceitos, odiasse a outro homem, sendo este homem. Confissões I, XVIII
Oh! Como és misericordioso, tu, que habitando silencioso nos céus, Deus grande e único, espalhas com lei infatigável cegueiras vingadoras sobre as paixões ilícitas! Quando o homem, aspirando à fama de eloquente, ataca a seu inimigo com ódio feroz diante do juiz, rodeado de grande multidão de HOMENS, toma todo o cuidado para que, por um lapsus linguae, não se lhe escape um inter ominibus, sem aspirar o h, sem cuidar que com o furor de seu ódio se tire um homem de entre os HOMENS. Confissões I, XVIII
Digo e confesso diante de ti, meu Deus, essas misérias, que me angariavam o louvor daqueles cuja simpatia equivalia para mim a uma vida honesta, pois não via o abismo pois não via o abismo de torpeza em que tudo isso me lançara, longe dos teus olhos. A teus olhos quem era mais repelente do que eu? E eu até desagradava tais HOMENS, enganando com infinidade de mentiras a meus criados, mestres e pais por amor dos jogos, por gosto de ver espetáculos frívolos e o desejo inquieto de os imitar. Confissões I, XIX
Tempo houve de minha adolescência em que ardi em desejos de me fartar dos prazeres mais baixos, e ousei a bestialidade de vários e sombrios amores, e se murchou minha beleza, e me transformei em podridão diante de teus olhos, para agradar a mim mesmo e desejar agradar aos olhos dos HOMENS. Confissões II, I
É certo, Senhor, que tua lei pune o furto, lei tão arraigada no coração dos HOMENS que nem a própria iniquidade pode apagar. Que ladrão há que suporte com paciência que o roubem? Nem o rico tolera isto a quem o faz forçado pela indigência. Também eu quis roubar, e roubei não forçado pela necessidade, mas por penúria, fastio de justiça e abundância de maldade, pois roubei o que tinha em abundância, e muito melhor. Nem me atraía ao furto o gozo de seu resultado, mas atraía-me o furto em si, o pecado. Confissões II, IV
Todavia, para obtermos estas coisas, não é necessário abandonarmos a ti, nem nos desviar de tua lei. Também a vida que aqui vivemos tem seus encantos, por certa beleza que lhe é própria, e pela harmonia que tem com as demais belezas terrenas. Cara é, finalmente, a amizade dos HOMENS pela união que une muitas almas com o doce laço do amor. Confissões II, V
Confesso que todos já me foram perdoados; o mal cometido voluntariamente, e o que deixei de fazer pela tua graça. Quem dentre os HOMENS, conhecendo tua fraqueza, poderá atribuir às próprias forças sua castidade e inocência para amar-te menos, como se tivesse menor necessidade de tua misericórdia, com a qual perdoas os pecados aos que se convertem a ti? Confissões II, VII
Entretanto, tua misericórdia, fiel, de longe pairava sobre mim. Em quantas iniquidades não me corrompi, meu Deus, levado por sacrílega curiosidade que, separando-me de ti, conduzia-me aos mais baixos, desleais e enganosos serviços aos demônios, a quem sacrificava minhas más ações, sendo em todas flagelado com duro açoite por ti! Também ousei apetecer ardentemente e procurar meios para conseguir os frutos da morte na celebração de teus mistérios, dentro dos muros de tua igreja. Por isso me açoitaste com duras penas, que nada eram comparadas com minhas culpas, ó Deus, misericórdia infinita, e meu refúgio contra os terríveis malfeitores, com os quais vaguei de cabeça erguida, afastando-me cada vez mais de ti, preferindo meus caminhos aos teus, amando a liberdade fugitiva! Os estudos a que era entregue, que se denominavam honestos ou nobres, tinham por objetivo as contendas do foro, nas quais deveria me distinguir com tanto maior louvor quanto mais hábeis fossem as mentiras. Tal é a cegueira dos HOMENS, que até de sua própria cegueira se gloriam! Eu já conseguira, naquele tempo, ser o primeiro da escola de retórica, e por isso me vangloriava soberbamente, e me inflava de orgulho. Contudo, tu sabes, Senhor, que eu era muito mais sossegado que os demais, e totalmente alheio às turbulências dos eversores — ou demolidores — nome sinistro e diabólico que eles consideravam distintivo de urbanidade, entre os quais vivia com imprudente pudor por não pertencer a seu grupo. É verdade que andava com eles, e que me deleitava, às vezes, com sua amizade, porém, sempre aborreci o que faziam, como as troças e a insolência com que surpreendiam e ridicularizavam a timidez dos novatos, sem outra finalidade senão rir de suas trapalhadas, fazendo disso alimento para suas malévolas alegrias. Nada há mais parecido a estas ações que as dos demônios, pelo que nenhum nome lhes cai melhor que o de eversores ou demolidores, por serem eles transformados e pervertidos totalmente pelos espíritos malignos, que assim os burlam e enganam, sem que o saibam, justamente no que eles gostam de ludibriar ou enganar os demais. Confissões III, III
Como ardia, meu Deus, como ardia meus desejos de voar para ti das coisas terrenas, sem que eu soubesse o que obravas em mim! Porque em ti está a sabedoria, pela qual aquelas páginas me apaixonavam. Não faltam os que nos iludam servindo-se da filosofia, colocando ou encobrindo seus erros com nome tão grande, tão doce e honesto. Mas quase todos os que assim fizeram em seu tempo e em épocas anteriores, são apontados e refutados nesse livro. Também se encontra ali bem claro aquele salutar aviso de teu Espírito, dado por meio de teu servo bom e piedoso (Paulo): Vede que ninguém vos engane com vãs filosofias e argúcias sedutoras, de acordo com a tradição dos HOMENS e os ensinamentos deste mundo, e não de acordo com Cristo, porque é nele que habita corporalmente toda a plenitude da divindade. Confissões III, IV
Deste modo vim cair com uns HOMENS que deliravam orgulhosos, demasiado carnais e loquazes; em sua boca havia laços diabólicos e engodo pegajoso feito com as silabas de teu nome, do nosso Senhor, Jesus Cristo, e do nosso Paracleto e Consolador, o Espírito Santo. Estes nomes nunca saíam de seus lábios, porém, só no som e ruído da boca, pois de resto, seu coração estava vazio de toda verdade. Confissões III, VI
Diremos, por isso, que a justiça é vária e inconstante? O que acontece é que os tempos a que ela preside não caminham no mesmo passo, porque são tempos. Mas os HOMENS, cuja vida terrestre é breve, por não saberem harmonizar as causas dos tempos idos, e das gentes que não viram nem conheceram, com as que agora veem e experimentam e, como também veem facilmente o que no mesmo corpo, na mesma hora e lugar convém a cada membro, a cada tempo, a cada parte e a cada pessoa, escandalizam-se com as coisas daqueles tempos, enquanto aceitam as de agora. Confissões III, VII
Acaso será em alguma parte e momento injusto amar a Deus de todo o coração, com toda a alma e com todo o entendimento, e amar ao próximo como a nós mesmos? Por isso, todos os pecados contra a natureza, como o foram os do sodomitas, hão de ser detestados e castigados sempre e em toda a parte, pois, mesmo que todos os cometessem, não seriam menos réus de crime diante da lei divina, que não fez os HOMENS para usar tão torpemente de si; de fato viola-se a união que deve existir com Deus quando a natureza, da qual ele é autor, se mancha com a depravação das paixões. Confissões III, VIII
Mas, que pecado pode atingir a ti, que não és atingido pela corrupção? Ou que crimes podem ser cometidos contra ti, a quem ninguém pode causar dano? O que vingas são os crimes que os HOMENS cometem contra si, porque, mesmo quando pecam contra ti, agem impiamente contra suas próprias almas, e sua iniquidade engana-se a si própria, quer corrompendo e pervertendo sua natureza — feita e ordenada por ti — quer usando imoderadamente das coisas permitidas, ou até desejando imoderadamente as não permitidas, pelo uso daquilo que é contra a natureza. Confissões III, VIII
Mas, entre tantas maldades, crimes e iniquidades, estão os pecados dos que progridem, pecados que os HOMENS de bom juízo vituperam, segundo a regra da perfeição, e louvam pela esperança de frutos futuros, como o verde é promissor das colheitas. Confissões III, IX
Por isso, muitas ações que parecem condenáveis aos HOMENS, são aprovadas por teu testemunho; e muitas, louvadas pelos HOMENS, são condenadas por teu testemunho, porque muitas vezes as aparências do ato diferem das intenções do seu autor, assim como circunstâncias ocultas do tempo. Confissões III, IX
Mas quando ordenas, algo insólito e imprevisto, mesmo que o tenhas proibido uma vez, mesmo que escondas por algum as razões do teu mandamento, mesmo que seja contra as convenções de alguns HOMENS da sociedade, quem pode duvidar de que se há de obedecer, sendo que só é justa a sociedade humana que te obedece? Felizes dos que sabem o que tu ordenaste, porque os que te servem fazem tudo o que mandas, ou porque assim o exige o tempo presente, ou para preparar o futuro. Confissões III, IX
Desconhecendo eu essas verdades, ria-me de teus santos e profetas. Mas, que fazia eu quando me ria deles, senão dar motivo para que te risses de mim? deixei-me cair insensivelmente, aos poucos, em tais extravagâncias, a ponto de acreditar que o figo, quando colhido, chora lágrimas de leite junto com a mãe figueira, e que se um “santo” da seita comesse o tal figo, colhido não por seu delito, mas de outrem, misturando-o em suas entranhas, gemendo e arrotando enquanto rezava, exalaria anjos e até mesmo partículas de Deus, partículas essas do verdadeiro Deus que ficariam cativas para sempre naquele fruto se não fossem libertadas pelos dentes e pelo estômago do “santo eleito”! Também acreditei, pobre de mim, que se devia ter mais misericórdia com os frutos da terra que com os HOMENS para os quais foram criados. Pois, se algum faminto, que não fosse maniqueísta me pedisse de comer, parecia-me que atendê-lo era como merecer, por aquele bocado, a pena de morte. Confissões III, X
Contudo, deixaste acaso de cuidar de mim também por meio daquele ancião? Ou talvez desistisse de curar minha alma? Tendo-me familiarizado muito com ele, passei a ser assistente assíduo e frequente de suas conversas, que eram agradáveis e graves, não pela elegância da linguagem, mas pela vivacidade das sentenças. Assim que ficou sabendo, por conversa, que eu me dedicava à leitura dos livros dos astrólogos, admoestou-me benigna e paternalmente a que os deixasse, e a que não gastasse inutilmente nessas quimeras meus cuidados e trabalho, que melhor empregaria em coisas úteis. Acrescentou que também ele havia cultivado aquela arte, a ponto de querer adotá-la, em sua juventude, como profissão para ganhar a vida, pois, se havia entendido Hipócrates, podia também entender aqueles livros; por fim, deixara aqueles estudos pelos da medicina, por causa da sua falsidade, não querendo, como homem sério, ganhar o pão enganando os outros. “Mas tu, disse-me ele — que tens para manter entre os HOMENS tuas aulas de retórica, segues essas mentiras não por necessidade, mas por mera curiosidade; mais um motivo para que acredites no que te digo, pois cuidei de aprendê-la tão perfeitamente que quis viver apenas de seu exercício”. Confissões IV, III
Mas para que falar dessas coisas, se agora não é tempo de investigar, mas de me confessar a ti? Eu era miserável, como o é toda alma prisioneira do amor pelas coisas temporais; se sente despedaçar quando as perde, sentindo então sua miséria, que a torna miserável antes mesmo de as perder. Assim é como eu era então e, chorando muito amargamente, descansava na amargura. E como era miserável! Contudo, mais que o amigo caríssimo, eu amava minha vida miserável, porque embora desejasse mudá-la, não queria perdê-la como ao amigo, não sei se gostaria de perdê-la por ele, como se conta de Orestes e Pílades — se não é ficção — que queriam morrer um pelo outro, porque para eles viver separados era pior que a morte. Mas não sei que novo sentimento nascera em mim, muito contrário a este: sentia pesado tédio de viver, e ao mesmo tempo tinha medo de morrer. Creio que quanto mais amava o amigo tanto mais odiava e temia a morte, como inimigo feroz que mo havia arrebatado; pensava que ela acabaria de repente com todos os HOMENS, como o fizera com ele. Este era meu estado de espírito, pelo que me lembro. Confissões IV, VI
Ó loucura, que não sabe amar os HOMENS humanamente! Ó homem insensato, que sofre desmedidamente os reveses humanos! Assim era eu então, e assim agitava-me, suspirava, chorava, perturbava-me, e não encontrava descanso nem conselho. Trazia a alma em farrapos e ensanguentada, indócil ao meu governo, e eu não encontrava lugar onde a pudesse depor. Nem os bosques amenos, nem os jogos e cantos, nem os lugares suavemente perfumados, nem os banquetes suntuosos, nem os prazeres da alcova e do leito, nem, finalmente, os livros e os versos podiam dar-lhe descanso. Tudo me causava horror, até a própria luz. Tudo o que não era o que ele era, era-me insuportável e odioso, exceto gemer e chorar, pois, somente nisto achava algum repouso. E se minha alma deixava de chorar, logo pesava sobre mim o grande fardo da desgraça. Confissões IV, VII
Filhos dos HOMENS, até quando sereis duros de coração? Será possível que, depois de ter a vida descido até vós, não queirais subir e viver? Mas para onde subis, quando vos ergueis e abris vossa boca no céu? Descei para subir, para subir até Deus, já que caístes levantando-vos contra Deus. Confissões IV, XII
Assim pois amava eu então aos HOMENS, pelo juízo dos HOMENS, e não pelo teu, meu Deus, em quem ninguém se engana. Contudo, por que não o louvava como se louva a uma auriga famoso ou a um caçador afamado pelas aclamações do povo, mas de modo mais distinto e mais ponderado, tal como eu gostaria de ser louvado? Confissões IV, XIV
Certamente, eu não gostaria de ser louvado e amado como os comediantes, embora eu também os ame e louve; antes, preferiria mil vezes, permanecer desconhecido a ser louvado dessa maneira, e mesmo ser odiado a ser amado assim. De que modo convivem em uma alma gostos tão vários e diversos? Como é que amo em outro o que rejeitaria e afastaria para longe de mim, sendo ambos HOMENS? Aprecia-se um bom cavalo, sem que se queira ser um cavalo, se isso fosse possível. Mas de um histrião não se pode dizer o mesmo, pois tem a mesma natureza que nós. Logo, amo em um homem o que teria horror de ser, embora também eu seja homem? Confissões IV, XIV
Mas qual o fruto disso, se eu te concebia, Senhor meu Deus, ó Verdade, como um corpo luminoso e infinito, e eu como uma parcela desse corpo? Que rematada perversidade! Assim era eu; não me envergonho agora, meu Deus, de confessar tuas misericórdias para comigo, e de te invocar, já que não me envergonhei então de proferir ante os HOMENS tais blasfêmias e de ladrar contra ti. De que me aproveitava, repito, a inteligência ágil para entender aquelas ciências, e para explicar com clareza tantos livros complicados, sem que ninguém mos houvesse explicado, se errava monstruosamente na piedade com sacrílega torpeza? E que prejuízo sofriam teus pequeninos em serem de menor inteligência, se não se afastavam de ti, para que, seguros no ninho da tua Igreja, se cobrissem de penas, e lhes alimentassem as asas da caridade com o sadio alimento da fé? Confissões IV, XVI
Diferentes de outra espécie de HOMENS que conheci, que tinham como suspeita a verdade, e não se lhe renderiam se lhes fosse apresentada com linguagem elegante e verbosa. Confissões V, VI
Com isso vi-me obrigado, quando professor, a suportar nos outros costumes que não quis adotar como meus quando estudante; e por isso desejava ir para uma cidade na qual, segundo me asseguravam, não aconteciam tais coisas. E tu, Senhor, minha esperança e meu quinhão na terra dos vivos, a fim de que eu mudasse de residência para a saúde de minha alma, me punhas espinhos em Cartago, para arrancar-me dali, e deleites em Roma para atrair-me para lá. Atraías-me por meio de HOMENS que amavam uma vida morta, dos quais uns agiam aqui como loucos, e outros me aliciavam alhures com bens ilusórios. E, para corrigir meus passos, usavas ocultamente da sua e da minha perversidade. Porque os que perturbavam minha paz estavam cegos por uma raiva vergonhosa, e os que me convidavam para mudar sabiam a terra; e eu, que detestava em Cartago uma verdadeira miséria, buscava em Roma uma falsa felicidade. Confissões V, VIII
Ainda então me parecia que não éramos nós que pecávamos, mas não sei que estranha natureza que pecava em nós; por isso minha soberba se deleitava em me ter como isento de culpa, e portanto de todo desobrigado a confessar meu pecado, quando agia mal, para que pudesses curar minha alma que te ofendia. Antes, gostava de me desculpar, acusando a não sei que ser estranho que estava em mim, mas que não era eu. Na verdade, eu era tudo aquilo, embora minha impiedade me tivesse dividido contra mim mesmo. E o mais incurável de meu pecado era justamente o não me considerar pecador, preferindo, minha execrável iniquidade, que fosses vencido em mim, para minha perdição, ó Deus onipotente, a que vencesses minha alma para minha salvação. Ainda não tinhas posto guarda diante da minha boca, nem porta de proteção ao redor de meus lábios, a fim de que meu coração não se inclinasse para as más palavras, nem buscasse desculpas para seus pecados, como os HOMENS prevaricadores. Eis a razão pela qual eu ainda mantinha relações de amizade com os eleitos dos maniqueus. Mas, desesperado de poder progredir para a verdade dentro daquela falsa doutrina, contentava-me a segui-la até encontrar algo melhor, professando-a já com mais liberdade e frouxidão. Confissões V, X
Quanto a meu hospede, não me furtei de admoestar sua excessiva credulidade com que aceitava as fábulas de que estavam cheios os livros dos maniqueus. Todavia, tinha mais amizade com tais HOMENS do que com os estranhos à sua heresia. É verdade que já não a defendia com a antiga animosidade; mas sua familiaridade — em Roma havia muitos deles ocultos — tornava-me bastante negligente para procurar outra coisa. Desesperava eu principalmente de poder achar a verdade em tua Igreja, ó Senhor dos céus e da terra, Criador de todas as coisas visíveis e invisíveis, verdade da qual eles me afastavam. Parecia-me mui torpe acreditar que tinhas figura de carne humana, e que estavas limitado pelos contornos de um corpo como o nosso. E quando queria pensar em meu Deus, não o sabia imaginar senão com massa corpórea — pois não me parecia que pudesse existir algo diferente — esta era a causa principal e quase única de meu erro inevitável. Confissões V, X
É que seu espírito não era dominado pela embriaguez, nem o amor do vinho a incitava ao ódio da verdade, como acontece a muitos HOMENS e mulheres, que ao ouvir o cântico da sobriedade, sentem a mesma repulsa que os ébrios diante de um copo d’água. Mas ela, ao trazer as cestas com as oferendas usuais para serem provadas e repartidas, não bebia mais que um pequeno copo de vinho, temperado segundo seu paladar bastante sóbrio e condizente com sua dignidade. E se eram muitos os sepulcros que devia honrar desse modo, levava sempre o mesmo copo, usando-o para todos, de modo que o vinho não só estava muito aguado, mas até quente. Confissões VI, II
Na oração, eu ainda não implorava o teu socorro, mas meu espírito achava-se ocupado em investigar e inquieto por discutir. Considerava ao próprio Ambrósio como homem feliz aos olhos do mundo, vendo-o tão honrado pelas mais altas autoridades. Somente seu celibato me parecia difícil. Mas eu não podia aquilatar, por nunca as ter experimentado, as esperanças que o animavam, nem a luta que tinha de travar contra as tentações de sua alta posição; nem conhecia os consolos na adversidade, nem os saborosos deleites do interior do seu coração quando ruminava teu alimento. Ele, por sua vez, desconhecia minha inquietação e o abismo em que estava para cair, porque não lhe podia perguntar, como desejava, o que queria. Uma multidão de HOMENS de negócios, a quem ele acudia nas dificuldades, impediam-me de o ouvir ou de lhe falar. Confissões VI, III
Depois, com suavidade e misericórdia, começaste, Senhor, a cuidar e à preparar aos poucos o meu coração, e foi aceitando tudo o que eu acreditava sem o ter visto, e a cuja realização não presenciara. Tantos fatos da história dos povos, tantas notícias sobre lugares e cidades que não vira, tudo o que aceitava acreditando em amigos, em médicos e em outras pessoas que, se não as acreditássemos, não poderíamos dar um passo na vida. E, sobretudo, que fé inabalável eu tinha em ser filho de meus pais, coisa que não poderia saber sem prestar fé no que ouvia. Então me convenceste de que os dignos de censura não são os que acreditam em teus livros, cuja autoridade estabeleceste entre quase todos os povos, mas o que não creem neles. E eu não devia dar ouvidos ao que talvez me dissessem: “Como sabes que esses livros foram dados aos HOMENS pelo Espírito de Deus, único e verdadeiro?” Ora, era precisamente isto o que eu devia crer, porque nenhuma objeção caluniosa ou agressiva, das que eu havia lido nos escritos contraditórios dos filósofos, nunca conseguiram arrancar-me a certeza de tua existência, embora ignorasse o que eras, e a certeza de que o governo das coisas humanas está em tuas mãos. Confissões VI, V
A alegria do mendigo não era certamente verdadeira, mas a que eu buscava com minhas ambições era ainda mais falsa. Ele, pelo menos, estava alegre, e eu, angustiado; ele seguro, e eu inquieto. Se alguém me perguntasse se preferia estar alegre ou triste eu responderia: alegre; mas se me perguntassem novamente se queria ser como aquele mendigo ou ser como eu era, sem dúvida escolheria a mim mesmo, embora cheio de cuidados e de temores. Mas isto eu faria por maldade ou com razão? Eu não devia preferir-me ao mendigo por ser mais culto, pois a ciência para mim não era fonte de felicidade, mas apenas um meio de agradar aos HOMENS, e não instruí-los. Confissões VI, VI
Aqui estariam os limites de meus desejos. Muitos HOMENS grandes e dignos de imitação, apesar de casados, dedicaram-se ao estudo da sabedoria. Confissões VI, XI
Seriamos cerca de dez HOMENS os que desejávamos formar essa sociedade. Alguns de nós, muito ricos, como Romaniano, meu conterrâneo, cujos sérios cuidados de negócios o tinham trazido à corte imperial. Era muito amigo meu desde menino, e um dos que mais instavam nesse projeto, tendo sua opinião um grande peso pois sua riqueza era bem superior que a dos outros. Confissões VI, XIV
Ainda por isso, meu Deus, quero confessar-te tuas misericórdias desde o mais íntimo de minha alma! Foste tu, e só tu — pois, quem pode afastar-nos da morte do erro, senão a Vida que desconhece a morte, a Sabedoria que ilumina as pobres inteligências sem precisar de outra luz, e que governa o mundo até as folhas que tremulam nas árvores? Foste tu que medicaste a obstinação com que me opunha ao sábio velho Vindiciano e ao magnânimo jovem Nebrídio, que diziam — o primeiro, com veemência, o segundo com alguma hesitação, mas frequentemente — não existir a tal arte de predizer as coisas futuras, e que as conjecturas dos HOMENS muitas vezes têm concurso do acaso e que, de tanto repetir, acertavam em predizer algumas coisas, sem que os mesmos que as diziam o soubessem. Confissões VII, VI
Deste modo, ó meu auxílio, já me havias libertado daqueles grilhões. Contudo eu buscava ainda a origem do mal, e não encontrava solução. Mas não permitias que as vagas de meu pensamento me apartassem da fé. Fé na tua existência, na tua substância imutável, na tua providência para os HOMENS, e na tua justiça que os julgará. Já acreditava que traçaste o caminho da salvação dos HOMENS, rumo à vida que sobrevém depois da morte, em Cristo, teu Filho e Senhor nosso, e nas Sagradas Escrituras, recomendadas pela autoridade de tua Igreja Católica. Confissões VII, VII
Primeiramente, querendo tu mostrar-me como resistes aos soberbos e dás tua graça aos humildes, e com quanta misericórdia ensinaste aos HOMENS o caminho da humildade, por se ter feito carne teu Verbo, e ter habitado entre os HOMENS, me fizeste chegar às mãos por meio de um homem inchado de monstruoso orgulho, alguns livros dos platônicos, traduzidos do grego para o latim. Confissões VII, IX
Neles eu li — não com estas palavras, mas substancialmente o mesmo e expresso com muitos e diversos argumentos — que “no princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Este estava desde o princípio em Deus. Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada foi feito do que foi feito. O que foi feito é vida nele, e a vida era a luz dos HOMENS. E a luz brilha nas trevas, mas as trevas não a compreenderam. Diziam também que a alma do homem, embora dê testemunho da luz, não é a luz, mas o Verbo, Deus, é a verdadeira luz, que ilumina a todo homem que vem a este mundo. E que neste mundo estava, e que o mundo é criatura sua, e que o mundo não o conheceu”. Confissões VII, IX
Igualmente achei nesses livros, dito de diversos e múltiplos modos, que o Filho, consubstancial ao Pai, não considerou usurpação ser igual a Deus, porque o é por natureza. Não dizem porém que se aniquilou a si mesmo, tomando a forma de escravo, que se fez semelhante aos HOMENS, sendo julgado homem por seu exterior; e que se humilhou, fazendo-se obediente até a morte, e morte de cruz, pelo que Deus o ressuscitou entre os mortos, e lhe deu um nome acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobrem todos os joelhos no céu, na terra e no inferno, e toda língua confesse que o Senhor Jesus está na glória de Deus Pai. Confissões VII, IX
Buscava um meio que me der força necessária para gozar de ti, e não a encontrei enquanto não me abracei ao Mediador entre Deus e os HOMENS, o homem Cristo Jesus, que está sobre todas as coisas, Deus bendito por todos os séculos, que chama e diz: Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ele une o alimento à carne (alimento que eu não tinha forças para tomar), porque o Verbo se fez carne, para que tua Sabedoria, pela qual criaste todas as coisas, fosse o leite de nossa infância. Confissões VII, XVIII
Mas eu então julgava de outro modo. Considerava meu Senhor Jesus Cristo apenas um homem de extraordinária sabedoria, a quem ninguém poderia igualar. Sobretudo seu miraculoso nascimento de uma virgem, que nos ensina a desprezar os bens temporais para adquirir a imortalidade. Parecia-me ter merecido, por decreto da Providência divina, uma soberana autoridade para ensinar os HOMENS. Confissões VII, XIX
Quanto a mim, aborrecia-me a vida que levava no mundo, e era para mim fardo pesadíssimo, agora que os apetites mundanos, como a esperança de honras e riquezas, já não me animavam para suportar tão pesada servidão. Essas paixões haviam perdido para mim o encanto, diante de tua doçura e da beleza de tua casa, que já amava. Mas sentia-me ainda fortemente amarrado à mulher. Sem dúvida o Apóstolo não me proibia de casar, embora em seu ardente desejo de ver todos os HOMENS semelhantes a ele, exortasse a um estado mais elevado. Confissões VIII, I
Ouvira da boca da própria Verdade que há eunucos que mutilavam a si próprios por amor ao reino dos céus, embora acrescentando que o compreenda quem o puder compreender. São vãos, por certo, todos os HOMENS nos quais não reside a ciência de Deus, e que nas coisas visíveis não puderam achar aquele que é. Mas eu já me livrara dessa vaidade, já a havia ultrapassado, e pelo testemunho de tua criação, te encontrara a ti, nosso Criador, e a teu Verbo, Deus em ti, e contigo um só Deus, por quem criaste todas as coisas. Confissões VIII, I
Mas depois que hauriu forças nas leituras e orações, temeu ser renegado por Cristo diante de seus anjos, se tivesse medo de o confessar diante dos HOMENS. Sentiu-se réu de um grande crime por se envergonhar dos mistérios de humildade de teu Verbo, não se envergonhando do culto sacrílego de demônios soberbos, que ele próprio aceitara como soberbo imitador; envergonhou-se da vaidade, e enrubesceu diante da verdade. De repente, disse a Simpliciano, segundo este mesmo contava: “Vamos à Igreja; quero me tornar cristão”. Simpliciano, não cabendo em si de alegria, foi com ele. Recebidos os primeiros sacramentos da religião, não muito depois, deu seu nome para receber o batismo que renegara, causando admiração em Roma e alegria na Igreja. Viram-no os soberbos, e se iraram; rangiam os dentes e se consumiam de raiva. Confissões VIII, II
Até os prazeres da vida humana, não só compensam os HOMENS de desgraças casuais e involuntárias, mas também de moléstias premeditadas e desejadas. Não há prazer algum em beber ou comer sem que haja antes o estímulo da sede ou da fome. Os ébrios costumam comer antes alguma coisa salgada, que lhes cause sede ardente e que transformará em prazer quando acalmada com a bebida. O costume quer que as esposas não sejam entregues imediatamente aos maridos: o marido desprezaria a noiva se não tivesse que esperar e suspirar por ela. Confissões VIII, III
Mas se estes são menos conhecidos pelo mundo dos HOMENS, mesmo os que os conhecem se alegram menos; mas quando a alegria é partilhada por muitos, ainda é maior em cada um, porque se aquece e inflama de uns para os outros. Confissões VIII, IV
Enfim, naquela angustiante hesitação, fazia mil gestos, como soem fazer os HOMENS que querem e não podem, ou porque não têm membros, ou porque os têm atados em cadeias, debilitados pela fraqueza ou paralisados de qualquer outro modo. Se puxei os cabelos, se feri a fronte, se apertei os joelhos entre os dedos entrelaçados, eu o fiz porque quis. Poderia porém querer fazê-lo e não o fazer, se a flexibilidade de meus membros não me obedecesse. Portanto, fiz muitas coisas, nas quais o querer não era o mesmo que o poder. Confissões VIII, VIII
Mas, de onde vinha este prodígio? Qual sua causa? Brilhe a tua misericórdia, e perguntarei — se é que me podem responder — aos sombrios castigos infligidos aos HOMENS, e às tenebrosas misérias dos filhos de Adão. De onde vem este prodígio? E qual sua causa? Confissões VIII, XI
Junto dela, uma turba de meninos e meninas, uma juventude numerosa, e HOMENS de toda idade, viúvas veneráveis e virgens idosas. Em todas essas almas, não era estéril, mas fecunda a mãe de filhos nascidos nas alegrias do esposo, que eras tu, Senhor! E a continência zombava de mim com ironia animadora, como se dissesse: “Então, não serás capaz de fazer o mesmo que eles? Ou será que estes e estas encontraram forças em si mesmos, e não no Senhor, seu Deus? Foi o Senhor Deus, quem me entregou a eles. Por que te apóias em ti, se és vacilante? Lança-te nele, não temas, que ele não se apartará de ti, e tu não cairás. Lança-te com confiança, que ele te receberá e te curará.” Confissões VIII, XI
Esta minha determinação, te era conhecida; dos HOMENS, só a conheciam os de minha intimidade. E, mesmo assim, tínhamos combinado de nada deixar transpirar. Contudo, quando subíamos do vale de lágrimas, cantando o cântico gradual (série de salmos cantados pelos peregrinos que sobem os degraus do templo de Jerusalém) nos tinhas dado setas agudas e carvões destruidores contra a língua pérfida que contradiz, sob o pretexto de aconselhar e, como quem se alimenta, consome o que ama. Confissões IX, II
Estremeci de medo, ao mesmo tempo me abrasei de alegre esperança em tua misericórdia, ó Pai! E todos estes sentimentos saíam pelos meus olhos e pela voz quando, dirigindo-se para nós, teu Espírito de bondade nos dizia: Filhos dos HOMENS, até quando sereis duros de coração? Por que amais a vaidade e buscais a mentira? Confissões IX, IV
Juntamos também a nós o jovem Adeodato, filho carnal de meu pecado; a quem dotaste de grandes qualidades. Tinha cerca de quinze anos, mas por seu talento ultrapassava já muitos HOMENS maduros e doutos. Confesso-te que eram dons teus, meu Senhor e meu Deus, criador de todas as coisas, tão poderoso para corrigir nossas deformidades, pois este menino nada havia de meu, senão meu pecado. Se o criei em tua disciplina, foste tu, e mais ninguém, quem no-lo inspirou. Sim, confesso que eram dons teus. Confissões IX, VI
Este dom me pareceria de pouca monta se uma triste experiência não me houvesse mostrado grande número de pessoas — por não sei que horrível contagio de pecados, espalhados por toda parte — que não só revelam as palavras pesadas de inimigos irados, mas que ainda acrescentam coisas que não foram ditas. Quem fosse realmente humano, deveria ter em pouca conta ou não excitar nem fomentar as inimizades dos HOMENS, e melhor ainda procurar extingui-las com boas palavras. Confissões IX, IX
Mas eu, ó Deus invisível, meditando nos dons que infundes no coração de teus fiéis, e nas admiráveis colheitas que deles brotam, alegrava-me e te dava graças. Lembrava-me do grande cuidado que sempre demonstrara acerca de sua sepultura, adquirida e preparada junto ao corpo do marido. Tendo vivido com ele na maior concórdia, assim também queria — visão própria da alma humana incapaz das coisas divinas — ter a felicidade de que os HOMENS recordassem que, depois de sua viagem para além-mar, lhe fora concedida a graça de a mesma terra cobrir o pó de ambos os cônjuges. Confissões IX, XI
Agora, com a ferida do meu coração já sanada, na qual se podia censurar um afeto muito carnal, derramo diante de ti, meu Deus, por tua serva, outra espécie de lágrimas, bem diferentes, aquelas que brotam do espírito comovido à vista dos perigos que corre toda alma que morre em Adão. É verdade que minha mãe, vivificada em Cristo, antes mesmo de ser livre dos laços da carne, viveu de tal modo, que teu nome era louvado em sua fé e em seus costumes. Contudo, não me atrevo a dizer que desde que a regeneraste no batismo não saiu de sua boca nenhuma palavra contrária à tua lei. Porque a Verdade, que é teu Filho, disse: “Quem chamar a seu irmão de louco será réu do fogo da geena”. Ai da vida dos HOMENS, por mais louvável que seja, se tu a julgares sem a tua misericórdia! Mas porque não examinas nossos pecados com rigor, confiadamente esperamos tomar lugar a teu lado. Quem enumera diante de ti seus próprios méritos, que mais expõe senão teus dons? Oh! Se os HOMENS se reconhecessem como HOMENS! Se quem se glorifica se glorificasse no Senhor! Por isso, Deus de meu coração, minha vida e minha gloria, esquecendo por um momento as boas ações de minha mãe, pelas quais te dou graças com alegria, peço-te agora perdão por seus pecados. Ouve-me pelos méritos daquele que é o médico de nossas feridas, que foi suspenso do madeiro da cruz e que, sentado agora à tua direita, intercede por nós junto a ti. Eu sei que ela sempre agiu com misericórdia, e que perdoou de coração todas as faltas contra ela cometidas; perdoa-lhe também suas dívidas, se algumas contraiu em tantos anos que se seguiram ao batismo. Perdoa-lhe, Senhor, perdoa-lhe, te suplico, e não entres em juízo com ela. Confissões IX, XIII
Assim, meu Deus, a confissão que faço em tua presença, é e não é silenciosa; a boca se cala, mas meu coração clama. Tudo o que digo aos HOMENS de verdadeiro já tinhas ouvido de mim, e nem ouves nada de mim que antes não me tivesses dito. Confissões X, II
Que tenho eu que ver com os HOMENS, para que me ouçam as confissões, como se eles pudessem curar as minhas enfermidades? São curiosos para conhecer a vida alheia, mas indolentes para corrigir a própria! Por que desejam ouvir de mim quem sou, quando não se importam em saber de ti o que são? E como podem saber, ao me ouvirem falar de mim mesmo, se lhes digo a verdade, uma vez que homem algum sabe o que se passa no outro, senão o espírito do homem, que nele, habita? Mas, se ouvissem a ti falar deles, não poderiam dizer: “O Senhor mente”. E o que é ouvir-te falar de si, senão conhecerem-se a si mesmos? E quem, conhecendo a si mesmo, pode dizer “é falso”, sem mentir? Confissões X, III
A caridade crê em tudo — pelo menos entre corações que ela unifica em si por seus laços — por isso também eu, Senhor, me confesso a ti para que me ouçam os HOMENS. A eles não posso provar que falo a verdade; mas creem-me aqueles cujos ouvidos a caridade abre para mim. Confissões X, III
Mas, Senhor meu — a quem todos os dias se confessa minha consciência, agora mais confiante com a esperança na tua misericórdia que na sua inocência — que proveito haverá em confessar aos HOMENS, na tua presença, neste livro, não o que fui, mas o que sou agora? Sobre a confissão do passado, e dos seus eventuais proveitos, já falei acima. Confissões X, III
Este poderá ser fruto de minhas confissões, não do que fui, mas do que sou. Farei minha confissão não apenas a ti, com íntima alegria mesclada de temor, e com secreta tristeza mesclada de esperança, mas também para os HOMENS, que compartilham minha alegria e de minha mortalidade, meus concidadãos e peregrinos como eu, quer os que me precederam, como os que me seguem ou me acompanham no caminho da vida. Estes são teus servos, meus irmãos, que tu quiseste fossem filhos teus e meus senhores, e a quem me mandaste servir se quisesse viver contigo e de ti. Confissões X, IV
O que sei, Senhor, sem sombra de dúvida, é que te amo. Feriste meu coração com tua palavra, e te amei. O céu, a terra e tudo quanto neles existe, de todas as partes me dizem que te ame; nem cessam de repeti-lo a todos os HOMENS, para que não tenham desculpas. Terás compaixão mais profunda de quem já te compadeceste; e usarás de misericórdia com quem já foste misericordioso. De outro modo, o céu e a terra cantariam teus louvores a surdos. Confissões X, VI
Os animais, pequenos ou grandes, a veem; mas não podem interrogá-la, porque não receberam a razão que, como juiz, interprete as mensagens dos sentidos. Os HOMENS, porém, podem interrogá-la, para que as perfeições invisíveis de Deus se manifestem pelas suas obras. Confissões X, VI
Esta ideia me provoca grande admiração, e me enche de espanto. Viajam os HOMENS para admirar as alturas dos montes, as grandes ondas do mar, as largas correntes dos rios, a imensidão do oceano, a órbita dos astros, e se esquecem de si mesmos! Nem se admiram que eu fale dessas coisas sem vê-las com os olhos; contudo, eu não as poderia mencionar se esses montes, se essas ondas, esses rios, esses astros, que eu vi, se esse oceano, no qual acredito pelo testemunho alheio, eu não os visse na memória em toda sua dimensão, como se estivessem diante de mim. mas quando eu os vi com meus olhos, eu não os absorvi; não são as coisas que se encontram dentro de mim, mas apenas suas imagens. E sei por qual sentido do corpo recebi a impressão de cada uma delas. Confissões X, VIII
Que direi então, desde que tenho a certeza que lembro do esquecimento? Diria talvez que não está em minha memória o que recordo? Ou talvez direi que o esquecimento está em minha memória, para que não o esqueça? Ambas hipóteses são grandes absurdos. Vejamos uma terceira hipótese: poderei eu afirmar que minha memória retém a imagem do esquecimento, e não o esquecimento em si, quando dele me lembro? Com que fundamento, pois, poderei dizê-lo, se para que se grave na memória a imagem de um objeto, é necessário que este esteja presente antes, de onde emana a imagem a ser gravada? É assim que lembro de Cartago, e assim de todos os outros lugares por que passei; assim me lembro do rosto dos HOMENS que vi e das coisas que meus sentidos me deram a conhecer; assim me lembro ainda da dor física, coisas cujas imagens a memória fixou quando estavam presentes, para que eu as pudesse contemplar e repassar em espírito, quando eu as evocasse na sua ausência. Confissões X, XVI
Que significa isto? Se perguntarmos a dois HOMENS se querem alistar-se no exército, talvez um responda que sim o outro que não. Mas, perguntemos se desejam ser felizes, e ambos responderão que sim, sem nenhuma hesitação. E desejando um engajar-se, e o outro não, têm ambos a mesma finalidade: ser felizes. Um gosta disto, outro daquilo, mas ambos concordam em ser felizes, como seria unânime a resposta afirmativa a quem lhes perguntasse se querem estar alegres. Essa alegria é o que eles chamam de felicidade. E ainda que um siga por um caminho e outro por outro, a finalidade de todos é um só: a alegria. Como a alegria é um sentimento do qual todos temos experiência, a encontramos em nossa memória, e a reconhecemos ao ouvir pronunciar a palavra felicidade. Confissões X, XXI
Há ainda um pouco de luz entre os HOMENS: caminhem, caminhem, para que as trevas não os surpreendam. Confissões X, XXIII
Mas por que a verdade gera o ódio? Por que os HOMENS olham como inimigo aquele que a prega em teu nome, uma vez que amam a felicidade, que mais não é que a alegria nascida da verdade? Talvez por amarem a verdade de tal modo que tudo de diferente que amam, querem que seja verdade; e, não admitindo ser enganados, também não querem ser convencidos de seu erro. Desse modo, detestam a verdade por amarem aquilo que tomam pela verdade. Amam-na quando ela brilha, mas odeiam-na quando os repreende; e, como não querem ser enganados, mas enganar, eles a amam quando ela se manifesta, mas a odeiam quando ela os denuncia. Confissões X, XXIII
Os HOMENS te consultam sobre o que querem, mas nem sempre ouvem as respostas que querem. Confissões X, XXVI
Quantos encantos os HOMENS acrescentaram às seduções dos olhos, com a variedade de suas artes, com sua indústria de vestidos, de calçados, de vasos, de objetos de toda espécie, com pinturas e esculturas diversas que de longe ultrapassam os limites do necessário e moderado e da expressão piedosa. Exteriormente perseguem as produções de suas artes, e em seu interior abandonam Àquele que os criou, deturpando em si o que ele fez. Confissões X, XXXIV
É esse quê de mórbido de curiosidade que faz com que se exibam monstruosidades nos espetáculos. É ela que nos induz a perscrutar os segredos da natureza exterior, cujo conhecimento de nada serve, mas que os HOMENS buscam conhecer apenas pelo prazer de conhecer. É ela também que inspira o homem a pesquisar, com fim semelhante, a ciência perversa, que é a arte da magia. Confissões X, XXXV
Mas, Senhor, tu és o único que sabe mandar sem orgulho, porque és o único Senhor verdadeiro, que não tem senhor! Diga-me, terá cessado em mim, se isso pode acontecer nesta vida, esta terceira espécie de tentação, que consiste em querer ser temido e amado pelos HOMENS, com o único fim de obter uma alegria que não é alegria? Que vida miserável, que arrogância indigna! Aí está o principal motivo porque não te amamos e tememos piamente. Por isso resistes aos soberbos, enquanto dás tua graça aos humildes. Trovejas contra as ambições do mundo, e faz abalar as montanhas até suas raízes. Confissões X, XXXVI
Ora, como é necessário, para se adequar à sociedade, fazer-se amar e temer pelos HOMENS, o inimigo de nossa verdadeira felicidade nos alicia, e por toda parte semeia seus laços gritando: “Bravo! Muito bem!” — para que, ávidos, recolhamos as lisonjas e nos deixemos incautamente enredar. Seu intento é que deixemos de encontrar nossa alegria na verdade, para buscá-la na mentira dos HOMENS; estimula em nós o prazer em nos fazer temer e amar, não pelo teu amor, mas em teu lugar. Com isso nos tornamos semelhantes a ele, não unidos na caridade, mas partilhando de suas penas. Ele quis fixar sua morada no aquilão (vento gelado do norte), para que nós, nas trevas e no frio, servíssemos o perverso e sinuoso imitador de teu poder. Confissões X, XXXVI
Quem busca o louvor dos HOMENS, quando tu o reprovas, não será por estes defendido quando o julgares, nem poderá subtrair á tua condenação. Mas quando não se louva um pecados pelos desejos de sua alma, nem se abençoa quem pratica iniquidades, mas te louva um homem pelos dons que lhe concedeste, se ele se compraz mais no louvor do que no dom que lhe atrai os louvores, tu o reprovas, a despeito dos louvores que recebe dos HOMENS. E quem o louva é melhor do que é louvado, porque um se agradou com o dom de Deus, e o outro alegrou-se com o dom do homem. Confissões X, XXXVI
Todos os dias somos acometidos por estas tentações, Senhor, somos tentados sem trégua. Os louvores dos HOMENS são a fornalha onde todos os dias somos postos à prova. Confissões X, XXXVII
Sou pobre e necessitado, e só melhoro quando, com gemidos íntimos e com desagrado de mim mesmo, busco tua misericórdia, até que minha indigência seja reparada e sanada com a paz que o olho soberbo ignora! Todavia, as palavras de nossa boca, ou nossos atos conhecidos dos HOMENS, encerram uma tentação muito perigosa, filha do amor dos louvores que, para nos iludir com certa excelência, recolhe e mendiga os aplausos alheios. A vanglória me tenta até quando a critico em mim, e é por isso mesmo que eu a desaprovo. Muitas vezes, por excesso de vaidade, há quem se glorie até mesmo do desprezo da vanglória; mas de fato não é mais do desprezo da vanglória que se orgulha, porque ninguém a despreza quando se gloria de a desprezar. Confissões X, XXXVIII
Era necessário que o mediador entre Deus e o homem tivesse alguma semelhança tanto com Deus como com os HOMENS; pois se assemelhasse apenas aos HOMENS, estaria muito longe de Deus; e se assemelhando só a Deus, estaria muito longe dos HOMENS; em ambos os casos não poderia ser mediador. Confissões X, XLII
E aquele falso mediador que é o demônio, a quem teus ocultos juízos permitem que iluda a soberba, tem de comum com os HOMENS apenas uma coisa, isto é, o pecado. Finge contudo, ter algum traço em comum com Deus, e como não está revestido de carne mortal, pretende ser imortal. Mas, como a morte é o salário do pecado, ele tem isso em comum com os HOMENS: como eles, ele é condenado à morte. Confissões X, XLII
O verdadeiro mediador que tua insondável misericórdia enviou e revelou aos HOMENS, para que aprendessem a humildade pelo seu exemplo, é esse mediador entre Deus e os HOMENS, o homem Jesus Cristo. Apareceu como intermediário entre os pecadores mortais e o Justo imortal, mortal como os HOMENS e justo como Deus. E, como a vida e a paz são a recompensa da justiça, pela justiça que o une a Deus ele suprimiu a morte entre os ímpios justificados, e quis compartilhá-la com eles. Foi revelado aos santos dos antigos tempos, para que eles se salvassem pela fé em sua paixão futura, como nós nos salvamos pela fé em sua paixão passada. De fato, só é mediador enquanto homem; enquanto Verbo não é intermediário, por ser igual a Deus: Deus em Deus e, ao mesmo tempo, Deus único. Confissões X, XLIII
Mesmo que eu fosse capaz de enumerar na ordem tais coisas, as gotas de meu tempo me são preciosas. De há muito que anseio ardentemente meditar sobre tua lei, e te confessar nela minha ciência e minha ignorância, os começos de tuas luzes na minha alma e o que ainda resta em mim de trevas, até que minha fraqueza seja absorvida por tua força. Não quero gastar em outros cuidados as horas de liberdade que me restam além dos cuidados indispensáveis do corpo, do trabalho intelectual, dos serviços que devemos aos HOMENS, e dos que prestamos sem lhe dever. Confissões XI, II
Imploro-te, Senhor meu Deus, qual o porquê disso tudo? De certo modo eu o compreendo, mas não sei como exprimi-lo. Poderei dizer que tudo o que tem começo e fim, começa e acaba quando a razão eterna, que não tem começo nem fim, sabe que deve começar ou acabar? Essa inteligência é teu Verbo, que é o princípio, porque também nos fala. Assim falou-nos no Evangelho com voz humana, e a palavra ecoou exteriormente nos ouvidos dos HOMENS, para que cressem nele, e o buscassem em seu íntimo, e o encontrassem na eterna Verdade, onde um bom e único mestre instrui todos os seus discípulos. Confissões XI, VIII
E tu, Deus, concede aos HOMENS que percebam, que reconheçam neste modesto exemplo, o que as coisas grandes e pequenas têm em comum. Há astros e luminares celestes que nos servem de sinais e marcam as estações, os dias e os anos. Isso é verdade; todavia, como eu jamais diria que a volta realizada por aquela roda de madeira representa o dia, nem o sábio cuja opinião transcrevo poderia afirmar que a volta da roda não representa o tempo. Confissões XI, XXIII
Mas, Senhor, onde está o céu de que nos falou a voz do salmista: “O céu do céu pertence ao Senhor, mas ele deu a terra aos filhos dos HOMENS?” — Onde está esse céu que não vemos, e diante do qual tudo o que vemos é apenas terra? Confissões XII, II
De fato, todo este mundo material, cuja base é a terra, embora não seja inteiramente belo em toda parte, recebeu até em seus últimos elementos, uma aparência atraente. Mas, comparado com esse céu do céu, o céu de nossa terra também não passa de terra. Por isso, não é absurdo chamar de terra esses dois grandes corpos visíveis, se os compararmos a esse céu misterioso que pertence ao Senhor, e não aos filhos dos HOMENS. Confissões XII, II
Por que, então, não aceitar que essa matéria informe, que criaste sem beleza para com ela moldar um mundo cheio de beleza, fosse comodamente designada aos HOMENS pelos termos de terra invisível e informe? Confissões XII, IV
Mas o céu do céu pertence a ti, Senhor; a terra, que deste aos filhos dos HOMENS para que a vissem e tocassem, não era tal como agora e vemos e tocamos. Era invisível e informe: um abismo sobre o qual não havia luz. As trevas se estendiam sobre o abismo — isto é: mais profundas que o abismo. Esse abismo das águas, agora visíveis, tem até em suas profundezas uma luminosidade, perceptível aos peixes e aos animais que se arrastam no fundo. Mas tudo isso era quase o nada, sendo ainda completamente informe; porém já era um ser apto a receber uma forma. Confissões XII, VIII
Senhor, criaste o mundo de uma matéria sem forma; do nada fizeste este quase nada de onde tiraste as grandes coisas que admiramos, nós, os filhos dos HOMENS. Porque este céu corpóreo é de fato admirável, este firmamento que separa uma água de outra, que criaste no segundo dia, depois da luz, dizendo: “Faça-se — e assim se fez”. Chamaste a este firmamento de céu: o céu desta terra e deste mar que criaste no terceiro dia, dando forma visível à matéria informe, criado por ti antes de todos os dias. Confissões XII, VIII
Eles dizem: “Sem dúvida, isso é verdade, mas não era isso que Moisés queria exprimir quando, inspirado pelo Espírito Santo, escreveu: “No princípio criou Deus e céu e a terra” — Pela palavra céu, ele não quis significar essa criatura espiritual ou intelectual, que contempla eternamente a face de Deus; e pela palavra terra, uma matéria informe. — Que quis dizer então? — O que nós afirmamos — respondem — isso é o que Moisés quis dizer, e o que expressou naquelas palavras. — E que é que afirmais? — Pelas palavras céu e terra quis significar, em primeiro lugar, globalmente e de forma concisa, todo o mundo visível, para em seguida pormenorizar, enumerando os dias, ponto por ponto, esse conjunto que aprouve ao Espírito Santo designar com uma expressão global. O povo rude e carnal ao qual falava era constituído de HOMENS tais que julgou conveniente dar-lhes a conhecer apenas as obras visíveis de Deus”. Confissões XII, XVII
Todavia, meu Deus, que me elevas em minha pequenez, que descansas minha fadiga, que ouves minhas confissões e perdoas meus pecados, tu me ordenas que eu ame a meu próximo como a mim mesmo; não posso crer que Moisés, teu servo tão fiel, tenha sido aquinhoado com menos dons do que eu teria desejado e apetecido se tivesse nascido em seu tempo, e me tivesses confiado a tarefa de te servir com meu coração e minha língua, e disseminar essas Escrituras. Estas, tanto tempo depois, deviam ser úteis a todos os HOMENS e, pelo mundo afora, triunfar com o prestígio de sua autoridade sobre as afirmações das doutrinas falsas e orgulhosas. Confissões XII, XXVI
Quisera que os HOMENS refletissem sobre três coisas que têm dentro de si mesmos. Elas diferem muito da Trindade, e eu só as proponho para que as usem como exercício e experiência do pensamento, e com isso compreender como estão longe deste mistério. Eis as três coisas: ser, conhecer, querer. Porque existo, conheço, quero e vejo. Eu sou aquele que conhece e quer. Sei que existo e que quero, e quero existir e saber. Repare, quem puder, como nessas três coisas a vida é indivisível, a unidade da vida, a unidade da inteligência, a unidade da essência; veja a impossibilidade de distinguir elementos inseparáveis e, contudo, distintos. O homem está diante de si mesmo; que ele se examine, veja e me responda. Contudo, por ter encontrado e reconhecido esta analogia, não julgue por isso ter compreendido a essência do Ser imutável, que transcende tais movimentos da alma, que existe imutavelmente, conhece imutavelmente e quer imutavelmente. Mas é por causa de tais atributos que em deus há a Trindade, ou esses três atributos pertencem a cada pessoa divina, cada uma sendo assim uma e trina? Ou ambas as coisas são admiravelmente reais: a Trindade, misteriosamente simples e múltipla, sendo para si mesma seu próprio fim infinito, pelo qual existe, se conhece e se basta imutavelmente na magnitude superabundante de sua unidade? Quem conceberá facilmente este mistério? Quem poderia explicá-lo? Quem, temerariamente, ousaria enunciá-lo de algum modo? Confissões XIII, XI
Contudo, somos luz apenas pela fé, e não por uma visão clara. É na esperança que fomos salvos, e a esperança que vê não é mais esperança. O abismo clama pelo abismo, mas é já pela voz de tuas cataratas. Não pude falar-vos como a HOMENS espirituais, mas como a carnais. Quem assim fala, não julga ainda ter atingido sua meta e, esquecendo-se do que ficou para trás, avança para o que está vivo, como o cervo tem sede de água das fontes, e diz: “Quando chegarei?” — Ele deseja o abrigo de sua morada, que está no céu e chama o abismo inferior dizendo: “Não vos conformeis com este mundo, mas reformai-vos renovando vosso espírito, e não queirais ser crianças na mente, mas sede pequeninos quanto à malícia, para que sejais perfeitos no espírito…” Confissões XIII, XIII
E quem, senão tu, nosso Deus, estendeu sobre nós um firmamento de autoridade, da tua divina Escritura? O céu se dobrará como um livro, e agora ele se estende sobre nós como um pergaminho. Mais sublime é a autoridade de que goza tua divina Escritura depois que morreram aqueles que cujo intermédio no-las comunicaste. E sabes, Senhor, sabes como cobriste de peles os HOMENS, quando o pecado os tornou mortais. Por isso estendeste como um pergaminho o firmamento de teu Livro, e tuas palavras em tudo concordes, que dispuseste sobre nós pelo ministério de HOMENS mortais. Por sua morte, a autoridade de tuas palavras, por eles divulgadas, desdobra sua força sobre tudo o que existe em baixo; ela não se erguia tão alto enquanto eles viviam. É que ainda não tinhas desenrolado o céu como um pergaminho, nem tinhas ainda difundido a glória de sua morte por toda parte. Confissões XIII, XV
Contudo, teus dons são necessários àqueles HOMENS, a quem teu prudente servidor não pôde dirigir como a espirituais, mas como a carnais, ele que pregou a Sabedoria entre os perfeitos. Confissões XIII, XVIII
Todas tuas obras são belas, mas és indizivelmente mais belo tu, que criaste tudo o que existe. Se Adão não se tivesse separado de ti, em sua queda, de seu seio não teria saído o oceano amargo do gênero humano, com sua profunda curiosidade, seu orgulho cheio de tempestades, suas ondas instáveis. E os dispensadores de tuas palavras não teriam a necessidade de representar, no meio de tantas águas, por meio de sinais físicos e sensíveis, teus atos e palavras místicas. Foi nesse sentido que entendi esses répteis e essas aves. Mas até os HOMENS iniciados nesses sinais e deles imbuídos, não avançariam no conhecimento desses mistérios, aos quais estão sujeitos, se sua alma não se elevasse á vida do espírito, e, após a palavra inicial, não aspirasse à perfeição. Confissões XIII, XX
Também as aves, ainda que nascidas no mar, multiplicam-se sobre a terra. As primeiras gerações evangélicas foram motivadas pela incredulidade dos HOMENS, mas também fiéis nela encontram diariamente copiosas exortações e bênçãos. Todavia, a alma viva, extrai da terra sua origem, porque somente aos fiéis é meritório abster-se de amar este mundo, para que sua alma viva por ti, essa alma que estava morta quando vivia em delícias mortíferas. Ó Senhor, só tu fazes as delicias de um coração puro. Confissões XIII, XXI
Mas que é isto? Que mistério é este? Abençoas os HOMENS, Senhor, para que eles cresçam, se multipliquem, e encham a terra. Não queres nisto dar-nos a entender alguma coisa? Confissões XIII, XXIV
Afirmaria ainda que essa benção foi reservada às espécies vivas que se reproduzem por meio de geração, caso a encontrasse também nas árvores, nas plantas, nos animais da terra. Mas não foi dito nem às plantas, nem às árvore , nem aos répteis: “Crescei e multiplicai-vos” — embora todas essas criaturas se multipliquem pela procriação, como os peixes, os pássaros e os HOMENS, conservando assim sua espécie. Confissões XIII, XXIV
E note ainda nisto, meu leitor. Há uma frase que a Escritura declara de uma só forma, e que a voz fala apenas dessa maneira: “No princípio criou Deus o céu e a terra” — E não pode a frase ser interpretada diversamente — descartando o erro ou o sofisma — conforme os diversos pontos de vista legítimos? É assim que crescem e se multiplicam as gerações dos HOMENS! Se consideramos a natureza das coisas, não alegoricamente, mas em sentido próprio, a sentença: “Crescei e multiplicai-vos” — se aplica a todas as criaturas que nascem de uma semente. Se, ao contrário, a interpretamos em sentido figurado, como penso que foi a intenção da Escritura, que não limita inutilmente essa benção aos peixes e aos HOMENS, encontramos então multidões de criaturas espirituais e temporais, como no céu e na terra; de almas justas e injustas, como na luz e nas trevas; de escritores sagrados que nos anunciaram a Lei, como no firmamento estabelecido entre as águas; na sociedade amargurada dos povos, como no mar; no zelo das almas piedosas, como em terra enxuta; nas obras de misericórdia praticadas nesta vida, como nas plantas que nascem de semente e nas árvore frutíferas; nos dons espirituais concedidos para o bem de todos, como nos luminares do céu; nas paixões dominadas pela temperança, como na alma viva. Em todas essas coisas encontramos multidões, fecundidade, crescimento. Mas que esse crescimento e essa proliferação exprimam uma mesma ideia de vários modos e que uma só expressão possa ser entendida de muitas maneiras, esse fato, apenas o encontramos nos sinais sensíveis e nos conceitos intelectuais. Confissões XIII, XXIV
E é por isso, Senhor, creio que disseste tanto às águas como aos HOMENS: “Crescei e multiplicai-vos” — Nessa benção, penso que nos deste a faculdade, o poder de formular de várias maneiras uma única ideia, e de compreender também de muitas maneiras uma expressão única, mas obscura. Confissões XIII, XXIV
Nutrem-se com esses alimentos os que neles se alegram; não encontram neles alegria os HOMENS cujo deus é seu ventre. E até entre os que ofertam esses frutos, o fruto não é o que eles dão, mas o espírito com que o oferecem. Por isso, naquele que servia a seu Deus e não a seu ventre percebo claramente a fonte de sua alegria; e participo fortemente de seu regozijo. Paulo recebera os presentes que os filipenses lhes tinham mandado por intermédio de Epafrodito. Vejo bem a razão de sua alegria. E é dela que se nutria, porque ele diz com verdade: “Alegrei-me muito no Senhor, vendo enfim reflorescer para mim vossa estima, da qual já andáveis desgostados”. Confissões XIII, XXVI
O oposto sucede aos que veem tuas obras através de teu Espírito, pois és tu é quem as vê neles. Portanto, quando veem que elas são boas, tu também vês essa bondade; em tudo o que lhes agrada por tua causa, tu és que nos agradas, e o que nos agrada através de teu Espírito é em nós que te agrada. Com efeito, quem dentre os HOMENS sabe das coisas do homem, senão o espírito do homem que nele habita? Do mesmo modo o que pertence a Deus ninguém o sabe, a não ser o Espírito de Deus. “Quanto a nós, diz ainda Paulo, não recebemos e espírito deste mundo, mas o Espírito de Deus, para que conheçamos os dons que nos vêm de Deus”. Confissões XIII, XXXI