Agostinho: homem

És grande, Senhor e infinitamente digno de ser louvado; grande é teu poder, e incomensurável tua sabedoria. E o HOMEM, pequena parte de tua criação quer louvar-te, e precisamente o HOMEM que, revestido de sua mortalidade, traz em si o testemunho do pecado e a prova de que resistes aos soberbos. Todavia, o HOMEM, partícula de tua criação, deseja louvar-te. Confissões I, I

Permita, porém, que eu fale em presença de tua misericórdia, a mim, terra e cinza; deixa que eu fale, porque é à tua misericórdia que falo, e não ao HOMEM, que de mim escarnece. Talvez também tu te rias de mim, mas, voltado para mim, terás compaixão. Confissões I, VI

Eu te confesso, Senhor dos céus e da terra, louvando-te por meus princípios e por minha infância, de que não tenho memória, mas que, por tua graça, o HOMEM pode conjectura de si pelos outros, crendo em muitas coisas, ainda que confiado na autoridade de humildes mulheres. Confissões I, VI

Escuta-me, ó meu Deus! Ai dos pecados dos homens! E quem isto te diz é um HOMEM, e tu te compadeces dele porque o criaste, e não foste autor do pecado que nele existe. Confissões I, VII

Acaso alguma criança pequena de hoje, em quem vejo a imagem do que não recordo de mim? E em que eu poderia pecar nesse tempo? Acaso por desejar o peito da nutriz, chorando? Se agora eu suspirasse com a mesma avidez, não pelo seio materno, mas pelo alimento próprio da minha idade, seria justamente escarnecido e censurado. Logo, era então digno de repreensão o meu proceder; mas como não podia entender a censura, nem o costume nem a razão permitiam que eu fosse repreendido. Prova está que, ao crescermos, extirpamos e afastamos de nós essa sofreguidão; e jamais vi HOMEM sensato que, para limpar uma coisa viciosa, prive-a do que tem de bom. Confissões I, VII

Ai de ti, torrente dos hábitos humanos! Quem há que te resista? Quando te secarás? Até quando irás arrastar os filhos de Eva a esse mar imenso e tenebroso, que apenas logram passar os que embarcam sobre o lenho da cruz? Acaso não foi em ti que li a fábula de Júpiter que troveja e adultera? É verdade que não podia fazer tais coisas ao mesmo tempo, mas assim se representou para autorizar a imitação de um verdadeiro adultério com o encantamento de um falso HOMEM nascido do mesmo que clama e diz: “Homero imaginava essas ficções e atribuía aos deuses os vícios humanos; porém, eu preferiria que atribuísse a nós as qualidades divinas”. Com mais verdade se diria que Homero imaginou tudo isso, atribuindo qualidades divinas a homens corrompidos, para que os vícios não fossem considerados como tais, e para que todo aquele que os cometesse parecesse que imitava a deuses celestes, e não a homens corrompidos. Confissões I, XVI

Olha, meu Senhor e meu Deus, é vê paciente, como costumas ver, de que modo diligente os filhos dos homens observam as regras de ortografia recebidas dos primeiros mestres, e desprezam as leis eternas de salvação perpétua recebidas de ti; de tal modo que, se alguns dos que sabem ou ensinam as regras antigas dos sons pronunciasse a palavra homo, sem aspirar a primeira letra, desagradaria mais aos homens do que se, contra teus preceitos, odiasse a outro HOMEM, sendo este HOMEM. Confissões I, XVIII

Como se o HOMEM pudesse ter inimigo mais pernicioso que o ódio com que se irrita contra si mesmo, ou como se pudesse causar a outrem maior dano, perseguindo-o, do que causa a seu próprio coração odiando! Com certeza, não nos é mais íntima a ciência das letras do que a consciência, que manda não fazer a outrem o que não queremos que não nos façam. Confissões I, XVIII

Oh! Como és misericordioso, tu, que habitando silencioso nos céus, Deus grande e único, espalhas com lei infatigável cegueiras vingadoras sobre as paixões ilícitas! Quando o HOMEM, aspirando à fama de eloquente, ataca a seu inimigo com ódio feroz diante do juiz, rodeado de grande multidão de homens, toma todo o cuidado para que, por um lapsus linguae, não se lhe escape um inter ominibus, sem aspirar o h, sem cuidar que com o furor de seu ódio se tire um HOMEM de entre os homens. Confissões I, XVIII

Pelo menos eu deveria atender com mais diligencia à voz de tuas nuvens: Também eles sofrerão as tribulações da carne; mas eu quisera poupar-vos; e bom é ao HOMEM não tocar em mulher; o que está sem mulher pensa nas coisas de Deus, de como o há de agradar; mas o que está ligado pelo matrimonio pensa nas coisas do mundo, e em como há de agradar à mulher. Confissões II, II

Mesmo de Catilina, HOMEM sem entranhas e muito cruel, de quem se disse que era mau e cruel sem razão, acrescenta o historiador um motivo: “Para que a ociosidade não embotasse suas mãos e sentimento”. Confissões II, V

E agora pergunto, meu Deus: que é que me deleitava no furto? Pois não encontro nenhuma beleza nele. Já não falo da beleza que reside na justiça e na prudência, nem sequer da que resplandece na inteligência do HOMEM, na memória, nos sentidos ou na vida vegetativa; nem da que brilha nos magníficos astros em suas órbitas, ou na terra e no mar, cheios de criaturas, que nascem para sucederem umas às outras; nem sequer da defeituosa e sombria formosura dos vícios enganadores. Confissões II, VI

Arrebatavam-me os espetáculos teatrais, cheios das imagens de minhas misérias e de alimento para o fogo de minha paixão. Mas, por que quer o HOMEM condoer-se ao contemplar coisas tristes e trágicas, que de modo algum gostaria de suportar? Contudo, o espectador deseja sofrer com elas, e até essa mesma dor é seu deleite. Que é isso, senão rematada loucura? De fato, tanto mais se comove alguém com elas quanto menos livre se está de tais afetos, embora chamemos de misérias os sofrimentos próprios, e de compaixão a comiseração do mal alheio. Confissões III, II

Quer isso dizer que amamos as lágrimas e a dor? Sem dúvida que todo HOMEM busca o gozo; mas como não agrada a ninguém ser miserável, e sendo grato a todos ser misericordioso, e como a piedade é inseparável da dor, não seria esta a causa verdadeira para que apreciemos essas emoções dolorosas? Confissões III, II

Também isso provém da amizade. Mas para onde se dirige? Para onde vai? Por que se atira à torrente da pez ardente, às vagas horrendas de negras leviandades em que a amizade se transforma voluntariamente, afastada e privada de sua celestial serenidade que o HOMEM repudia? Confissões III, II

Hoje, porém, tenho mais compaixão do HOMEM que se alegra em seus vícios, que do que sofre pela perda de um prazer funesto ou pela perda de uma mísera felicidade. Esta misericórdia é certamente mais verdadeira, mas nela a dor não encontra nenhum prazer. E embora seja certo que se aprove quem por caridade se compadece do miserável, contudo, quem é fraternalmente compassivo preferiria que não houvesse razões para se compadecer. Porque assim como não é possível que exista uma benevolência malévola, tampouco o é que haja miseráveis para deles se compadecer. Confissões III, II

Tais são os que se indignam quando ouvem dizer que em outros tempos se permitiam aos justos coisas que não se lhe permitem agora, e que Deus mandou àqueles uma coisa e a estes outra, conforme os tempos, servindo uns e outros à mesma norma de santidade. E, contudo, é bem visível que no mesmo HOMEM, no mesmo dia e na mesma hora e na mesma casa, o que convém a um membro não convém a outro; e aquilo que há pouco era licito, já não o é mais; e que o que se concede em uma parte, é justamente proibido e castigado em outra. Confissões III, VII

Pecam também os que com o pensamento e a palavra se revoltam contra ti, dando coices contra o aguilhão; ou quando, uma vez quebrados os limites da sociedade humana, alegram-se audaciosamente com as facções ou desuniões, de acordo com as suas simpatias ou antipatias. E tudo isso o HOMEM faz quando és abandonado, fonte da vida, único e verdadeiro criador e senhor do universo, e com orgulho egoísta ama-se uma parte do todo como se fosse o todo. Confissões III, VIII

De fato, sem ti, que sou eu para mim mesmo senão um guia que conduz ao abismo? Ou que sou eu, quando tudo me corre bem, senão uma criança que suga o leite, e que se alimenta de ti, alimento incorruptível? E que é o HOMEM, seja ele quem for, se é HOMEM? Confissões IV, I

Por isso, não cessava de consultar os impostores chamados matemáticos, já que estes não usavam em suas adivinhações de quase nenhum sacrifício, nem dirigiam preces a nenhum espírito o que, consequentemente, é condenado e repelido com razão pela piedade cristã e verdadeira. Porque o bom é confessar-te, Senhor, e dizer-te: Tem misericórdia de mim, e cura minha alma, porque pecou contra ti, e não abusar da tua indulgência para pecar mais livremente, mas ter sempre presente a sentença do Senhor: Eis-te curado: não peques mais, para que te não suceda algo pior — Estas palavras, cujo efeito salutar os astrólogos querem destruir, dizendo: “O impulso de pecar vem dos céus; foi Vênus, Saturno ou Marte que fizeram isto” — e tudo para que o HOMEM, que é carne, e sangue, e soberba podridão, se sinta sem culpa, e atribua esta ao criador e ordenador do céu e das estrelas. E quem é este, senão tu, nosso Deus, suavidade e fonte de justiça, que dás a cada um de acordo com suas obras, e não desprezas ao coração contrito e humilhado? Confissões IV, III

Contudo, deixaste acaso de cuidar de mim também por meio daquele ancião? Ou talvez desistisse de curar minha alma? Tendo-me familiarizado muito com ele, passei a ser assistente assíduo e frequente de suas conversas, que eram agradáveis e graves, não pela elegância da linguagem, mas pela vivacidade das sentenças. Assim que ficou sabendo, por conversa, que eu me dedicava à leitura dos livros dos astrólogos, admoestou-me benigna e paternalmente a que os deixasse, e a que não gastasse inutilmente nessas quimeras meus cuidados e trabalho, que melhor empregaria em coisas úteis. Acrescentou que também ele havia cultivado aquela arte, a ponto de querer adotá-la, em sua juventude, como profissão para ganhar a vida, pois, se havia entendido Hipócrates, podia também entender aqueles livros; por fim, deixara aqueles estudos pelos da medicina, por causa da sua falsidade, não querendo, como HOMEM sério, ganhar o pão enganando os outros. “Mas tu, disse-me ele — que tens para manter entre os homens tuas aulas de retórica, segues essas mentiras não por necessidade, mas por mera curiosidade; mais um motivo para que acredites no que te digo, pois cuidei de aprendê-la tão perfeitamente que quis viver apenas de seu exercício”. Confissões IV, III

Esse HOMEM já errava em espírito comigo, e minha alma não podia viver sem ele. Confissões IV, IV

Ó loucura, que não sabe amar os homens humanamente! Ó HOMEM insensato, que sofre desmedidamente os reveses humanos! Assim era eu então, e assim agitava-me, suspirava, chorava, perturbava-me, e não encontrava descanso nem conselho. Trazia a alma em farrapos e ensanguentada, indócil ao meu governo, e eu não encontrava lugar onde a pudesse depor. Nem os bosques amenos, nem os jogos e cantos, nem os lugares suavemente perfumados, nem os banquetes suntuosos, nem os prazeres da alcova e do leito, nem, finalmente, os livros e os versos podiam dar-lhe descanso. Tudo me causava horror, até a própria luz. Tudo o que não era o que ele era, era-me insuportável e odioso, exceto gemer e chorar, pois, somente nisto achava algum repouso. E se minha alma deixava de chorar, logo pesava sobre mim o grande fardo da desgraça. Confissões IV, VII

Mas, meu Senhor e meu Deus, qual o motivo de dedicar esses livros a Hiério, orador de Roma? Não o conhecia, apreciando-o apenas pela fama de sua doutrina, que era grande, e por alguns ditos seus, que ouvira, e que me agradaram. Mas dele gostava principalmente porque ele agradava aos outros, que lhe tributavam grandes elogios, admirados de que um sírio, educado na eloquência grega, chegasse a orador admirável na latina, e grande conhecedor de todos os assuntos, ligados à filosofia. Assim, ouve-se louvar a um HOMEM, e, embora ausente, começa-se a amá-lo. Entrará o amor no coração do que ouve pela boca do que louva? É certo que não, mas o amor de um se inflama com amor do outro. Por isso se ama ao que é louvado; mas só quando se está persuadido de que o louvor vem de coração sincero, ou quando o louvor é inspirado pelo amor. Confissões IV, XIV

Certamente, eu não gostaria de ser louvado e amado como os comediantes, embora eu também os ame e louve; antes, preferiria mil vezes, permanecer desconhecido a ser louvado dessa maneira, e mesmo ser odiado a ser amado assim. De que modo convivem em uma alma gostos tão vários e diversos? Como é que amo em outro o que rejeitaria e afastaria para longe de mim, sendo ambos homens? Aprecia-se um bom cavalo, sem que se queira ser um cavalo, se isso fosse possível. Mas de um histrião não se pode dizer o mesmo, pois tem a mesma natureza que nós. Logo, amo em um HOMEM o que teria horror de ser, embora também eu seja HOMEM? Confissões IV, XIV

Grande abismo é o HOMEM, cujos cabelos tu, Senhor, tens contados; e não se perde um sem que tu o saibas; e, contudo, mais fáceis de contar são seus cabelos que suas paixões e os movimentos de seu coração. Confissões IV, XIV

Se em vez de o louvarem aquelas mesmas pessoas o criticassem, e se me contassem dele as mesmas coisas, mas com censura e desprezo, certamente não me entusiasmaria por ele; não obstante, os fatos não seriam diferentes e nem o HOMEM outro, mas unicamente os sentimentos dos narradores. Confissões IV, XIV

Para mim era importante que aquele HOMEM conhecesse minhas palavras e meus trabalhos. Se ele os aprovasse, me entusiasmaria ainda mais por ele; mas se os reprovasse, meu coração fútil e vazio de tua firmeza, se lastimaria. Contudo, meu prazer era pensar e refletir no problema do belo e do conveniente, assunto do livro que lhe dedicara, admirando-o na minha imaginação, mesmo que ninguém mais o louvasse. Confissões IV, XIV

Assim como se cometem crimes quando o movimento do espírito é vicioso e se atira insolente e turbulento, e se cometem infâmias quando o afeto da alma, fonte dos prazeres carnais, é imoderado, assim os erros e falsas opiniões contaminam a vida se a alma racional está viciada, como estava a minha então. Ignorava que ela deveria ser ilustrada por outra luz para participar da verdade, por não ser da mesma essência da verdade, porque tu, Senhor, alumiarás minha lâmpada; tu, meu Deus, iluminarás minhas trevas, e todos participamos de tua plenitude, porque és a luz verdadeira que ilumina a todo HOMEM que vem a este mundo, e porque em ti não há mudança nem a momentânea obscuridade. Confissões IV, XV

Parecia-me que essa obra falava com muita clareza das substâncias, como o HOMEM, e das coisas que nelas se encerram, como a forma do HOMEM; a estatura, quantos pés mede; o parentesco, de quem é irmão; onde se encontra, quando nasceu; se está de pé, sentado, calçado ou armado; se faz alguma coisa ou se padece de alguma coisa, e, enfim, uma infinidade de relações que se contêm nestes nove gêneros, dos quais citei alguns exemplos, ou no próprio gênero da substância, que são também inumeráveis os que encerra. Confissões IV, XVI

Recebe, Senhor, o sacrifício de minhas Confissões por meio da minha língua, que tu formaste e impeliste a confessar teu nome. Cura todos os meus ossos, e que eles proclamem: Senhor, quem haverá semelhante ai ti? Na verdade, quem se dirige a ti, nada te informa do que ocorre em si, porque não há coração fechado que se possa subtrair a teu olhar, nem dureza de HOMEM que possa repelir tua mão. Ao contrário, a abrandas quando queres, ou para compadecer-te, ou para castigar; não há quem se esconda de teu calor. Mas, que minha alma te louve para que te ame, a confesse tuas misericórdias para que te louve. Toda a criação não cala teus contínuos louvores, nem os espíritos todos, com sua boca voltada para ti, nem os animais e coisas corporais, pela boca dos que os contemplam. Assim, apoiando-se em tua criação, nossa alma se levanta de sua franqueza, e chega a ti, seu admirável criador, onde encontrará rejuvenescimento e verdadeira fortaleza. Confissões V, I

Que se convertam, pois, e te busquem, porque não abandonas tua criatura, como elas abandonaram a seu Criador. Que se convertam, e logo estarás em seus corações, nos corações dos que te confessam, dos que se lançam em ti, dos que choram em teu regaço depois de percorrerem penosos caminhos. E tu, bondoso, enxugarás suas lágrimas; e chorarão ainda mais, mas serão felizes por chorar, porque és tu, Senhor, e nenhum HOMEM de carne e sangue, tu, Senhor, que os criaste, que os consolas e robusteces. Confissões V, II

Antecedera-o a fama de HOMEM erudito em toda espécie de ciência, e particularmente instruído nas artes liberais. E como eu tinha lido muitas teorias dos filosofo, e as guardava na memória, quis comparar algumas destas com as grandes fábulas do maniqueísmo. Pareciam-me mais prováveis as doutrinas daqueles que chegaram a conhecer a ordem do mundo, embora não tivessem encontrado a seu Criador. Porque tu és grande, Senhor, e pondes os olhos nas coisas humildes, e as elevadas as conheces de longe, e não te aproximas senão dos contritos de coração. Nem és encontrado pelos soberbos, ainda que sua curiosa perícia seja capaz de contar as estrelas do céu e as areias do mar; seja capaz de medir as regiões do céu e de investigar o curso dos astros. Confissões V, III

Atribuem a ti, com perversa cegueira, suas mentiras, a ti, que és a própria Verdade; alteram a glória de um Deus incorruptível, concebendo-a à semelhança e imagem do HOMEM corruptível, das aves, dos quadrúpedes, das serpentes. E convertem tua verdade em mentira, e adoram e servem antes à criatura do que ao Criador. Confissões V, III

Senhor, Deus da verdade, acaso te agradará quem conhecer essas coisas? Infeliz do HOMEM que, conhecendo-a todas, te ignora ti; mas feliz de quem te conhece, embora as ignore! Quanto ao que conhece a ti e a elas, este não é mais bem-aventurado por causa de seu saber, mas só é feliz por ti, se, conhecendo-te, te glorifica como Deus, e te dá graças, e não se desvanece em seus pensamentos. Confissões V, IV

É melhor aquele que reconhece estar na posse de uma árvore e te dá graças por sua utilidade, embora ignore quantos côvados tem de altura e de largura, que o que a mede, e conta todos os seus ramos, mas não a possui, nem conhece, nem ama a seu Criador. Assim o HOMEM fiel, a quem pertencem todas as riquezas do mundo, e que, nada possuindo, possui tudo, por estar unido a ti, a quem servem todas as coisas — embora desconheça até o curso das estrelas da Ursa — e seria insensatez duvidar — é certamente melhor do que o que mede os céus, conta as estrelas e pesa os elementos, mas despreza a ti, que dispuseste todas as coisas em número, peso e medida. Confissões V, IV

Mas, quem pediu a esse Manés que escrevesse sobre coisas cujo conhecimento não é necessário à piedade? Tu disseste ao HOMEM: Vê que a piedade é a sabedoria. Manés podia muito bem ignorar essa piedade ainda que fosse muito instruído nas ciências profanas. Mas, como não as conhecia, e se atrevia desavergonhadamente a ensiná-las, de nenhum modo conhecia a piedade. Pois certamente é vaidade alardear conhecimentos humanos, mesmo verdadeiros, e é piedade confessar-te a ti. Manés, afastando-se dessa regra, falou tanto sobre essas coisas que foi convencido de sua ignorância pelos que as conhecem bem. Donde se viu-se claramente o crédito que merecia em matérias mais obscuras. Ele não queria ser pouco estimado; empenhou-se em convencer aos demais que tinha em si, pessoalmente, e na plenitude de seu poder, o Espírito Santo, que consola e enriquece teus fiéis. Surpreendido em erro ao falar do céu, das estrelas, e do curso do sol e da lua, embora tais coisas não pertençam à religião, claramente deixou ver ser sacrílego seu atrevimento ao ensinar coisas que ignorava e também falsas, e isso com tão insano orgulho a ponto de atribuí-las à pretensa divindade de sua pessoa. Confissões V, V

Quando pois ouço que este ou aquele irmão em Cristo ignora esses problemas, e confunde uma coisa com outra, suporto com paciência seu modo de opinar. Nada vejo que possa ser-lhe prejudicial enquanto não fizer ideia indigna de ti, Senhor, criador do universo, mesmo que ignore até o lugar e a natureza das coisas materiais. O mal seria acreditar que esses problemas pertencem à essência da piedade, e tenazmente atrever-se a afirmar o que ignora. Mas ainda essa fraqueza é suportada nos primórdios da pela mãe caridade, até que o HOMEM novo cresça e se transforme em varão perfeito, e não possa ser abalado por qualquer vento de doutrina. Confissões V, V

Quanto a Manés, que se atreveu a se fazer de doutor, de mestre, de guia e cabeça daqueles a quem convertera, de tal forma que os que o seguiam acreditassem seguir não um HOMEM qualquer, mas teu Espírito Santo, quem não julgaria que tão rematada loucura, uma vez demonstrada sua falácia, deveria ser detestada e afastada para bem longe? Confissões V, V

Logo que chegou, pude notar que se tratava de um HOMEM simpático, de fala cativante, e que expunha os temas comuns dos maniqueus, mas com muito mais agrado que eles. Mas, que interessava à minha sede este elegante copeiro de copos preciosos? Eu já tinha os ouvidos fartos daquelas teorias, e nem me pareciam melhores por serem expostas em melhor estilo, nem mais verdadeiras pela elegância de suas formas; nem eu considerava Fausto mais sábio por ter o rosto de mais graça e sua linguagem mais finura. Aqueles que mo haviam recomendado não eram bons juizes: tinham Fausto como HOMEM sábio e prudente somente porque lhes agradava sua facúndia. Confissões V, VI

Contudo, na reunião dos ouvintes, me aborrecia não poder apresentar-lhe minhas dúvidas, e dividir com ele os cuidados de meus problemas, conferindo com ele minhas dificuldades em forma de perguntas e respostas. Quando, enfim, o pude fazer, acompanhado de meus amigos, comecei a falar-lhe em ocasião e lugar oportunos para tais discussões, apresentando-lhe algumas objeções das que mais me preocupavam. Vi então que se tratava de HOMEM completamente ignorante das artes liberais, com exceção da gramática, que conhecia de modo superficial. Confissões V, VI

Quanto ao mais, todo o empenho que eu havia posto em progredir na seita desapareceu por completo tão logo conheci este HOMEM, mas não a ponto de me separar definitivamente dela. Confissões V, VII

E tu, Senhor, agiste comigo de modo admirável, pois isso foi obra tua, meu Deus. Porque o Senhor é quem dirige os passos do HOMEM e quem inspira seu caminho. E quem poderá dar-nos a salvação, senão tua mão, que restaura o que fez? Confissões V, VII

Nesse tempo, veio-me à mente a ideia de que os filósofos chamados acadêmicos haviam sido mais prudentes que os outros, por sustentarem que se deve duvidar de tudo, e que nenhuma verdade pode ser compreendida pelo HOMEM. Julguei então que era esse o seu pensamento, como geralmente se crê, não tendo ainda compreendido suas verdadeiras intenções. Confissões V, X

Esse HOMEM de Deus recebeu-me paternalmente, e se interessou muito por minha viagem, como bispo. Comecei a amá-lo; a princípio, não como mestre da verdade, que eu desesperava de achar em tua Igreja, mas pela sua amabilidade para comigo. Ouvia-o atentamente quando pregava ao povo, não com espírito adequado, mas como se quisesse sondar sua eloquência, para ver se correspondia à sua fama, ou se era maior ou menor que a que se dizia; ficava suspenso das suas palavras, mas indiferente ao conteúdo, coisa que eu até desprezava. Deleitava-me com a suavidade dos sermões, os quais, embora mais eruditos que os de Fausto, eram contudo, menos alegres e envolventes no estilo. Quanto à substância de tais sermões não havia comparação, pois Fausto se perdia por entre as fábulas dos maniqueus, e Ambrosio ensinava claramente a mais sã doutrina da salvação. Mas a salvação anda longe dos pecadores, tal como eu era então. Todavia, insensivelmente e sem o saber, ia-me aproximando dela. Confissões V, XIII

Não cuidava eu de aprender o que dizia, interessado apenas em como o dizia — era este gosto frívolo o único que ainda permanecia em mim, perdidas já as esperanças de que se abrisse para o HOMEM o caminho para ti. Todavia, infiltravam-se em meu espírito, juntamente com as palavras que me agradavam, as coisas que desprezava. Já não me era possível discernir umas das outras, e assim, ao abrir meu coração à sua eloquência, nele entrava ao mesmo tempo e aos poucos, a verdade. Confissões V, XIV

Na oração, eu ainda não implorava o teu socorro, mas meu espírito achava-se ocupado em investigar e inquieto por discutir. Considerava ao próprio Ambrósio como HOMEM feliz aos olhos do mundo, vendo-o tão honrado pelas mais altas autoridades. Somente seu celibato me parecia difícil. Mas eu não podia aquilatar, por nunca as ter experimentado, as esperanças que o animavam, nem a luta que tinha de travar contra as tentações de sua alta posição; nem conhecia os consolos na adversidade, nem os saborosos deleites do interior do seu coração quando ruminava teu alimento. Ele, por sua vez, desconhecia minha inquietação e o abismo em que estava para cair, porque não lhe podia perguntar, como desejava, o que queria. Uma multidão de homens de negócios, a quem ele acudia nas dificuldades, impediam-me de o ouvir ou de lhe falar. Confissões VI, III

Muitas vezes, estando eu presente — pois ninguém estava proibido de entrar, nem era costume anunciar quem se apresentava — vi-o ler em silêncio, e nunca de outra maneira. E ali ficava eu por muito tempo calado — pois, quem se atreveria molestar um HOMEM tão atento? — e por fim me afastava. Conjeturava eu que nos curtos momentos que encontrava para repousar o espírito, livre do tumulto dos negócios alheios, não queria que o ocupassem com outra coisa. Lia em silêncio (era comum naqueles tempos ler em voz alta, tanto pela dificuldade dos textos como pela escassez dos livros, muitas vezes lidos em comum), talvez para evitar que algum ouvinte, suspenso e atento à leitura, encontrando alguma passagem obscura, pedisse explicações, ou o obrigasse a dissertar sobre questões difíceis. Gastaria o tempo em tais coisas, e impedido de ler todos os livros que desejava, embora fosse mais provável que lesse em silêncio para poupar a voz, que facilmente lhe enrouquecia. Confissões VI, III

Em todo caso, qualquer que fosse sua intenção, só poderia ser boa em um HOMEM como ele. Confissões VI, III

Logo verifiquei que vossos filhos espirituais, a quem regeneraste no sei da santo mãe, a Igreja, não interpretavam aquelas palavras: “Fizeste o HOMEM à sua imagem” — de modo a acreditar que estavas encerrado na forma do corpo humano. E embora eu então não soubesse, nem sequer suspeitasse de longe o que fosse substância espiritual — alegrei-me com isso, envergonhando-me por ter ladrado durante tantos anos, não contra a católica, mas contra invenções de minha inteligência carnal. Tinha sido ímpio e temerário por criticar uma doutrina que eu deveria ter antes procurado conhecer. Mas tu — que estás ao mesmo tempo tão alto e tão perto de nós, tão escondido e tão presente, tu que não tens membros maiores nem menores, que estás inteiro em toda parte sem estar todo em nenhum lugar, certamente não tens nossa forma corpórea. Contudo, fizeste o HOMEM à tua imagem, e eis que ele, da cabeça aos pés, é limitado pelo espaço. Confissões VI, III

Não compreendendo como poderia se espelhar esta tua imagem ao HOMEM, eu deveria bater à porta, perguntando-te de que modo deveria entender essa crença, em lugar de me opor insolentemente, como se ela fosse o que eu imaginava. E assim, tanto mais fortemente me roia o coração o desejo de ter alguma certeza, quanto mais me envergonhava de ter sido o joguete dos que me haviam prometido a certeza, e por ter defendido com pueril empenho e animosidade tantas coisas duvidosas como sendo verdadeiras. Confissões VI, IV

Havia nesse tempo um senador poderosíssimo, a quem estavam sujeitos muitos clientes, uns por benefícios, outros por terror. Segundo o costume dos poderosos, este senador tentou fazer não sei que coisa era proibida pelas leis, e Alípio se lhe opôs. À tentativa de corrompê-lo, Alípio reconheceu com o riso. Zombou das ameaças que aquele lhe dirigiu, causando admiração geral pela rara qualidade de sua alma, que não desejava a amizade e nem temia a inimizade de HOMEM tão poderoso, conhecido por seus inúmeros meios de prestar favores ou de prejudicar. Até o próprio juiz, de que Alípio era assessor, embora se opusesse também, não o fazia abertamente, responsabilizando a Alípio que, dizia ele, não lhe permitia fazer o que desejava, porque, se acedesse — e era verdade — demitir-se-ia imediatamente. Confissões VI, X

Entretanto, multiplicavam-se meus pecados. Quando arrancaram do meu lado, por ser impedimento ao meu matrimonio, aquela com quem partilhava o leito, meu coração, ao qual ela estava unida, ficou ferido e sangrando. Ela, por sua vez, voltando para a África, fez-te voto, Senhor, de jamais conhecer outro HOMEM, deixando comigo o filho natural que dela tivera. Confissões VI, XV

E sendo eu HOMEM — e que HOMEM — esforçava-me para imaginar a ti, o sumo, o único e verdadeiro Deus. Com toda minha alma eu te julgava incorruptível, inviolável e imutável. Mesmo não sabendo de onde nem como me vinha esta certeza, eu via com clareza e tinha como certo que o incorruptível é melhor do que o corruptível. Sem hesitar, colocava o que não pode ser vencido acima do que o pode ser, e o que não sofre mudança parecia-me melhor do que é suscetível a mudanças. Confissões VII, I

Tais pensamentos de novo me deprimiam e sufocavam, mas não me arrastavam até aquele abismo de erro, onde ninguém te confessa, e onde se antepõe a tese que tu és sujeito ao mal a considerar o HOMEM capaz de o cometer. Confissões VII, III

Esse HOMEM, chamado Firmino, educado nas artes liberais e instruído na eloquência, veiome consultar, como amigo íntimo, sobre alguns assuntos nos quais alimentava esperanças mundanas, para ver qual seria meu vaticínio conforme suas constelações, como eles dizem. Eu, que já começara a me inclinar à opinião de Nebrídio, embora não me negasse a fazer-lhe o horóscopo e expor-lhe as suas conclusões, acrescentei, contudo, que estava quase persuadido de que tudo aquilo era ridícula quimera. Confissões VII, VI

O astrólogo, portanto, deveria prognosticar coisas falsas, ou, no caso de falar coisas verdadeiras, estas forçosamente deveriam ser diferentes, a despeito da identidade das observações. Logo, se seus prognósticos fossem verdadeiros, não o seriam por efeito da arte, mas do acaso. Porque tu, Senhor, governador justíssimo do Universo, por inspiração secreta, desconhecida dos consulentes e astrólogos, fazes que cada um ouça a resposta que lhe convém, de acordo com os méritos das almas, do fundo do abismo de teu justo juízo. E que o HOMEM não se atreva a dizer: Que é isto? Por que isto? Não o diga, não o diga, porque é um simples HOMEM. Confissões VII, VI

Tu só sabes o que eu padecia, mas HOMEM algum o sabia. De fato, quão pouco era o que minha palavra transmitia aos meus amigos mais íntimos! Chegava, porventura, a eles o tumulto de minha alma, que nem o tempo, nem as palavras bastavam para declarar? Contudo, chegavam a teus ouvidos as queixas que em meu coração rugiam, e meu desejo estava diante de ti, mas a luz de meus olhos não estava contigo, porque ela estava dentro, e eu olhava para fora. Ela não ocupava espaço algum, e eu só pensava nas coisas que ocupam lugar, e não achava nelas lugar de descanso, nem me acolhiam de modo que pudesse dizer: “Basta, Aqui estou bem!” — Nem me permitiam que eu fosse para onde me sentisse satisfeito. Eu era superior a estas coisas, mas sempre inferior a ti. Serias minha verdadeira alegria se eu te fosse submisso, pois sujeitasse a mim tudo o que criaste inferior a mim. Tal seria o justo equilíbrio e a região central de minha salvação: permanecer como imagem tua, e servindo-te, ser o senhor de meu corpo. Mas, como me levantei soberbamente contra ti, investindo contra meu Senhor coberto com o escudo de minha dura cerviz, até mesmo as criaturas inferiores se fizeram superiores a mim, e me oprimiam, e não me davam um momento de alívio e de descanso. Confissões VII, VII

Quando as olhava, elas me vinham ao encontro atabalhoadamente de todos os lados; mas quando nelas me concentrava, tais imagens corporais me barravam para que me retirasse, como se me dissessem: “Para onde vais, indigno e impuro?” E estas recobravam forças com a minha chaga, porque humilhaste o soberbo como a um HOMEM ferido. Minha presunção me separava de ti, e meu rosto de tão inchado, fechava meus olhos. Confissões VII, VII

Primeiramente, querendo tu mostrar-me como resistes aos soberbos e dás tua graça aos humildes, e com quanta misericórdia ensinaste aos homens o caminho da humildade, por se ter feito carne teu Verbo, e ter habitado entre os homens, me fizeste chegar às mãos por meio de um HOMEM inchado de monstruoso orgulho, alguns livros dos platônicos, traduzidos do grego para o latim. Confissões VII, IX

Neles eu li — não com estas palavras, mas substancialmente o mesmo e expresso com muitos e diversos argumentos — que “no princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Este estava desde o princípio em Deus. Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada foi feito do que foi feito. O que foi feito é vida nele, e a vida era a luz dos homens. E a luz brilha nas trevas, mas as trevas não a compreenderam. Diziam também que a alma do HOMEM, embora dê testemunho da luz, não é a luz, mas o Verbo, Deus, é a verdadeira luz, que ilumina a todo HOMEM que vem a este mundo. E que neste mundo estava, e que o mundo é criatura sua, e que o mundo não o conheceu”. Confissões VII, IX

Igualmente achei nesses livros, dito de diversos e múltiplos modos, que o Filho, consubstancial ao Pai, não considerou usurpação ser igual a Deus, porque o é por natureza. Não dizem porém que se aniquilou a si mesmo, tomando a forma de escravo, que se fez semelhante aos homens, sendo julgado HOMEM por seu exterior; e que se humilhou, fazendo-se obediente até a morte, e morte de cruz, pelo que Deus o ressuscitou entre os mortos, e lhe deu um nome acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobrem todos os joelhos no céu, na terra e no inferno, e toda língua confesse que o Senhor Jesus está na glória de Deus Pai. Confissões VII, IX

E por isso lia também nesses livros que a glória de tua natureza incorruptível havia sido transformada em ídolos e simulacros de todo tipo, à semelhança da imagem do HOMEM corruptível, das aves, dos quadrúpedes e serpentes. Isto é, naquele alimento do Egito pelo qual Esaú perdeu sua primogenitura. Israel, teu povo primogênito, voltando o coração para o Egito, honrou em teu lugar a cabeça de um quadrúpede, curvando tua imagem, isto é, a própria alma, diante da imagem de um bezerro comendo feno. Confissões VII, IX

E conheci então que “castigaste o HOMEM por causa de sua iniquidade”, e “que secaste minha alma como uma teia de aranha”, e eu disse: Porventura não existe a verdade, por não ser difusa pelos espaços finitos e infinitos? E tu me gritaste de longe: Na verdade, Eu sou o que sou. Confissões VII, X

Buscava um meio que me der força necessária para gozar de ti, e não a encontrei enquanto não me abracei ao Mediador entre Deus e os homens, o HOMEM Cristo Jesus, que está sobre todas as coisas, Deus bendito por todos os séculos, que chama e diz: Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ele une o alimento à carne (alimento que eu não tinha forças para tomar), porque o Verbo se fez carne, para que tua Sabedoria, pela qual criaste todas as coisas, fosse o leite de nossa infância. Confissões VII, XVIII

Mas eu então julgava de outro modo. Considerava meu Senhor Jesus Cristo apenas um HOMEM de extraordinária sabedoria, a quem ninguém poderia igualar. Sobretudo seu miraculoso nascimento de uma virgem, que nos ensina a desprezar os bens temporais para adquirir a imortalidade. Parecia-me ter merecido, por decreto da Providência divina, uma soberana autoridade para ensinar os homens. Confissões VII, XIX

Somente conhecia, pelas coisas que dele nos deixaram escritas, que comeu, bebeu, dormiu, passeou, que se alegrou, se entristeceu e pregou, e que essa carne não se juntou a teu Verbo senão com alma e inteligência humanas. Tudo isso sabe quem conhece a imutabilidade de teu Verbo, que eu já conhecia quanto me era possível, sem que disso nada duvidasse. Com efeito, mover os membros do corpo à vontade, ou não movê-los, estar dominado por algum afeto ou não o estar, traduzir por palavras sábios pensamentos e depois calar, são caracteres próprios da mutabilidade da alma e da inteligência. Se esses testemunhos das Escrituras fossem falsos, tudo o mais correria o risco de ser mentira, e o gênero humano não teria mais nesses livros a , condição de salvação. Mas como são verdadeiras as coisas nela escritas, eu reconhecia em Cristo um HOMEM completo, não somente o corpo de um HOMEM, ou um corpo sem uma alma inteligente, mas um HOMEM real, que eu julgava superior a todos os outros não por ser a personificação da verdade, mas em razão da singular excelência de sua natureza humana, e de uma mais perfeita participação na sabedoria. Confissões VII, XIX

Porque, embora o HOMEM se deleite com a lei de Deus, segundo o HOMEM interior, que fará dessa outra lei que luta em seus membros contra a lei de seu espírito, e que o prende sob a lei do pecado, impressa em seus membros? Porque tu és justo, Senhor; nós, porém, pecamos, cometemos iniquidades; procedemos como ímpios, e tua mão se fez pesada sobre nós, e é com justiça que fomos entregues ao pecador antigo, ao príncipe da morte, porque ele persuadiu nossa vontade a se conformar à sua, que não quis persistir com tua verdade. Confissões VII, XXI

Que fará esse HOMEM infeliz? Quem o livrará deste corpo de morte, senão tua graça, por Jesus Cristo, nosso Senhor, a quem tu geraste co-eterno e criaste no princípio de teus caminhos, ele, em quem o príncipe deste mundo não achou nada que merecesse a morte, e a quem, contudo, matou? Com o que foi anulada a sentença que havia contra nós? Confissões VII, XXI

Há ainda outra espécie de ímpios; os que, conhecendo a Deus, não o glorificam como Deus, nem lhe renderam graças. Eu também tinha caído nesse pecado; mas tua destra me amparou e libertou, colocando-me em lugar onde me pudesse curar; e disseste ao HOMEM: Eis que a piedade é a sabedoria. E ainda: Não queiras parecer sábio, porque os que se dizem sábios tornaram-se insensatos. Confissões VIII, I

Bom Deus, que se passa no HOMEM para que se alegre mais com a salvação de uma alma desesperada, quando salva de grande perigo, do que se ela sempre tivesse tido esperança, ou se o perigo tivesse sido menor? Também tu, Pai misericordioso, sentes mais alegria por um pecador arrependido do que por noventa e nove justos que não têm necessidade de penitência. Grande é o nosso prazer ao falar da alegria do pastor trazendo de volta sobre os ombros a ovelha desgarrada, e da mulher que repõe em teus tesouros, para satisfação geral dos vizinhos, a dracma perdida. E nos arranca lágrimas a alegria das festas de tua casa quando lemos que teu filho menor estava morto e reviveu; estava perdido e foi encontrado. Confissões VIII, III

Em vão me deleitava em tua lei, segundo o HOMEM interior, porque em meus membros outra lei combatia a lei de meu espírito, mantendo-me cativo sob a lei do pecado que estavas em meus membros. Com efeito, a lei do pecado é a violência do hábito, pelo qual a alma é arrastada e presa, mesmo contra sua vontade, merecidamente porém, pois se deixa arrastar por vontade própria. Pobre de mim! Quem poderia libertar-me deste corpo de morte senão tua graça, por Cristo, nosso Senhor? Confissões VIII, V

E quando lhe declarei que aquele livro ocupava o melhor de minha atenção, tomando a palavra, começou a falar-nos de Antão, monge do Egito, cujo nome era celebrado entre teus fiéis, mas que nós desconhecíamos até aquela hora. Informado disto, continuou a falar, revelando esse grande HOMEM à nossa ignorância, que ele muito admirou. Confissões VIII, VI

Eles é que são de fato maus, que seguem tais más doutrinas; somente serão bons quando aceitarem a verdade, concordando com os que a possuem. E assim o Apóstolo poderá dizer deles: Outrora fostes trevas, mas agora sois luz no Senhor. Mas esses, querendo ser luz não no Senhor, mas em si mesmos, julgam que a natureza da alma á a mesma que a de Deus; vão-se tornando trevas ainda mais densas, pois em sua terrível arrogância se afastam ainda mais de ti, luz verdadeira, que ilumina a todo HOMEM que vem a este mundo. Atentai para o que dizeis, e enchei-vos de vergonha. Aproximai-vos dele, e sereis iluminados, e vossos rostos não serão cobertos de confusão. Confissões VIII, X

Mas, suponhamos que um dos nossos queira decidir, e conflitando as duas vontades, titubeie entre ir ao teatro ou à nossa igreja; não ficarão indecisos os maniqueístas na resposta que hão de dar? Porque, ou hão de confessar o que não querem, que é boa a vontade que o leva à nossa igreja, como vão a ela os que foram iniciados em seus mistérios e lhe permanecem fiéis, ou terão de reconhecer que num mesmo HOMEM lutam duas naturezas más e duas almas más. E então terão de contradizer o que afirmam, que uma natureza é boa e outra má. Ou então terão de aceitar a verdade e, neste caso, não negarão que, quando alguém escolhe, é uma mesma alma a que hesita entre duas vontades opostas. Confissões VIII, X

Portanto, quando virem duas vontades que se contrapõem ao mesmo HOMEM, não falem mais de luta entre duas almas contrárias, uma boa e outra má, originadas em duas substâncias antagônicas. Porque tu, ó Deus verdadeiro, os confundes, como no caso em que ambas as vontades são más; por exemplo, quando alguém hesita, entre matar a outrem com um punhal ou veneno; entre assaltar esta ou aquela propriedade alheia, quando não pode assaltar a ambas; entre esbanjar na compra do prazer da luxúria, ou guardar dinheiro por avareza; entre ir ao circo ou ao teatro, quando ambos sejam concomitantes; e ainda acrescento uma terceira incerteza: entre roubar ou não a casa do próximo, em havendo a oportunidade, ou ainda, acrescento uma quarta hipótese: entre cometer ou não adultério, se tem possibilidade para isso. Suponhamos que todas essas circunstâncias ocorram simultaneamente; como todas são igualmente desejadas, e irrealizáveis ao mesmo tempo, a alma será dilacerada por um conflito entre quatro vontades, ou mais ainda, tão numerosos são os objetos de desejo! Contudo, os maniqueus não afirmam que existe tão grande número de substâncias diferentes. Confissões VIII, X

O mesmo acontece com as vontades boas. Se eu lhes pergunto se é bom deleitar-se com a leitura do Apóstolo, com a leitura de algum salmo espiritual, ou com o comentar do Evangelho, eles responderão a cada questão: “É bom” — Ora, se as três atividades têm a mesma atração simultaneamente, não teríamos vontades opostas a dividir o coração do HOMEM, enquanto escolhe qual delas abraçar de preferência? Confissões VIII, X

E dizia comigo mesmo: “Vamos! Mãos à obra, sem demoras!” E quase passava da palavra à ação. Estava a ponto de agir, mas não agia. Eu já não recaía nas antigas paixões, mas delas estava bem próximo, e tomava ainda alento de seu ar. Quase a alcançava, faltava pouco, cada vez menos, e já quase chegava ao termo e a segurava; mas não a alcançava, nem a tocava; hesitava entre morrer para a morte e viver para a vida. O mal arraigado dominava-me mais do que o bem, cujo hábito eu não possuía; na medida que ia se aproximando o momento em que me transformaria em outro HOMEM, maior era o horror que me incutia, sem contudo me fazer voltar para trás ou mudar de caminho. Simplesmente mantinha-me indeciso. Confissões VIII, XI

Não muito depois de nossa conversão e regeneração por teu batismo, fez-se por fim católico fiel. Servia-te na África junto aos seus, em castidade e continência perfeitas; toda sua família, sob sua influência, se fizera cristã. Libertaste-o então dos laços da carne, vivendo agora no seio de Abraão, seja qual for o significado dessa expressão. Ali vive meu Nebrídio, meu doce amigo que, de liberto, se tornou teu filho adotivo. Ali vive — pois, que outro lugar conviria a uma alma assim? Ali vive, nesse lugar sobre o qual indagava muitas coisas a mim, pobre HOMEM ignorante. Já não aproxima seu ouvido da boca, mas aproxima sua boca espiritual de tua fonte, e bebe avidamente de tua sabedoria, numa felicidade sem fim. Mas não creio que se embriague a ponto de esquecer de mim, enquanto tu, Senhor, que és sua bebida, te lembras de nós. Confissões IX, III

Meus bens já não eram exteriores, e eu já não os buscava à luz deste sol, com olhos carnais. Os que querem gozar externamente, facilmente se dissipam e derramam pelas coisas visíveis e temporais, lambendo com pensamento faminto apenas as aparências. Oh! Se eles se esgotassem com a privação, e perguntassem: Quem nos mostrará o bem? E que ouvissem nossa resposta: Está gravada dentro de nós a luz de teu rosto, Senhor! — Porque não somos nós a luz que ilumina a todo HOMEM, mas somos iluminados por ti, para que sejamos luz em ti, nós que outrora fomos trevas. Confissões IX, IV

Oh! Se eles vissem essa luz interior e eterna que eu havia visto! E como a havia saboreado, irritava-me por não poder mostrá-la. Se, pelo seus olhares dirigidos para fora, visse seu coração afastado de ti, me dissessem: “Quem nos mostrará o bem? Pois ali, onde me irritara contra mim mesmo, ali, no recôndito de meu coração onde, arrependido, eu havia sacrificado e imolado em mim o velho HOMEM; onde, pondo em ti minha esperança, começara a meditar a renovação de mim mesmo, ali fizeste com que eu sentisse tua doçura, dando alegria a meu coração. E exclamava ao ler, fora de mim, essas palavras cuja verdade ecoava em mim; e não queria desdobrar-me pelos bens terrenos, devorando o tempo e sendo por ele devorado, porque possuía na eterna simplicidade outro trigo, outro vinho e outro azeite. Confissões IX, IV

Educada assim na modéstia e na temperança, mais sujeita a seus pais pela tua mão que por seus pais a ti, logo que chegou à idade núbil, foi dada em matrimônio a um HOMEM, a quem serviu como a senhor. Procurou conquistá-lo para ti, falando-lhe de ti com suas virtudes, com as quais tu a tornavas bela e reverentemente amável e admirável ante seus olhos. Suportou suas infidelidades conjugais com tanta paciência, que jamais teve com ele a menor briga por isso, pois esperava que tua misericórdia viria sobre ele, e que lhe trouxesse, com a , a castidade. Confissões IX, IX

Havia sido mulher de um só HOMEM, cumprira sua dívida de gratidão com os pais, governara sua casa piedosamente e dava testemunho com suas boas obras. Educara os filhos, dando-os à luz tantas vezes quantas os via apartarem-se de ti. Confissões IX, IX

Ali, sozinhos, conversávamos com grande doçura, esquecendo o passado, ocupados apenas no futuro, indagávamos juntos, na presença da Verdade, que és tu, qual seria a vida eterna dos santos, que nem os olhos viram, nem os ouvidos ouviram, nem o coração do HOMEM pode conceber. Abríamos ansiosos os lábios de nosso coração ao jorro celeste de tua fonte — da fonte da vida que está em ti — para que, banhados por ela, pudéssemos de algum modo meditar sobre coisa tão transcendente. Confissões IX, X

Depois adormeci. Ao despertar, minha dor estava mitigada; só, em meu leito, lembrei-me dos versos cheios de verdade de teu Ambrósio. Porque, na verdade Tu és Deus, criador de quanto existe, De todo o mundo supremo governante, Que o dia vestes com tua luz brilhante, E de sonhos gratos a noite triste A fim de que os membros cansados O descanso ao trabalho prepare E as mentes cansadas, repare E os peitos de pena oprimidos Depois, pouco a pouco voltava aos sentimentos de antes sobre tua serva. Recordava de sua piedade para contigo, de sua solicitude e paciência comigo, da qual subitamente me via privado. E senti consolação em chorar diante de ti, por causa dela e por ela, e por minha causa e por mim. E deixei que as lágrimas reprimidas corressem à vontade, estendendo-as como um leito reparador sob meu coração. Teus ouvidos eram os que ali me escutavam, e não os de nenhum HOMEM, que pudesse interpretar com soberba meu pranto. Confissões IX, XII

Que tenho eu que ver com os homens, para que me ouçam as confissões, como se eles pudessem curar as minhas enfermidades? São curiosos para conhecer a vida alheia, mas indolentes para corrigir a própria! Por que desejam ouvir de mim quem sou, quando não se importam em saber de ti o que são? E como podem saber, ao me ouvirem falar de mim mesmo, se lhes digo a verdade, uma vez que HOMEM algum sabe o que se passa no outro, senão o espírito do HOMEM, que nele, habita? Mas, se ouvissem a ti falar deles, não poderiam dizer: “O Senhor mente”. E o que é ouvir-te falar de si, senão conhecerem-se a si mesmos? E quem, conhecendo a si mesmo, pode dizer “é falso”, sem mentir? Confissões X, III

És tu, Senhor, quem me julga, porque ninguém conhece o que se passa no HOMEM, a não ser o seu espírito que nele está, todavia há no HOMEM coisas que até o espírito que nele habita ignora. Mas tu, Senhor, que o criaste, conheces todas as coisas. E eu, embora diante de ti me despreze e me considere como terra e cinza, sei algo de ti que ignoro de mim mesmo. É certo que agora vemos por espelho, em enigmas, e não face a face. Por isso, enquanto peregrino longe de ti, estou mais presente a mim do que a ti. Sei que em nada podes ser prejudicado, mas ignoro a que tentações posso resistir e a quais não posso. Todavia há esperança, pois és fiel, e não permites que sejamos tentados além de nossas forças; com a tentação, dás também meios para suportar, para que possamos resistir. Confissões X, V

Mas, que amo eu, quando te amo? Não amo a beleza do corpo, nem o esplendor fugaz, nem a claridade da luz, tão cara a estes meus olhos, nem as doces melodias das mais diversas canções, nem a fragrância de flores, de unguentos e de aromas, nem o maná, nem o mel, nem os membros tão afeitos aos amplexos da carne. Nada disto amo quando amo o meu Deus. E, contudo, amo uma luz, uma voz, um perfume, um alimento, um abraço de meu HOMEM interior, onde brilha para minha alma uma luz sem limites, onde ressoam melodias que o tempo não arrebata, onde exalam perfumes que o vento não dissipa, onde se provam iguarias que o apetite não diminui, onde se sentem abraços que a saciedade não desfaz. Eis o que amo quando amo o meu Deus! Então, o que é Deus? Perguntei à terra, e ela me disse: “Eu não sou Deus”. E tudo o que nela existe me respondeu o mesmo. Perguntei ao mar, aos abismos e aos répteis viventes, e eles me responderam: “Não somos teu Deus; busca-o acima de nós”. Perguntei aos ventos que sopram; e todo o ar, com seus habitantes, me disse: “Anaxímenes está enganado eu não sou Deus”. Perguntei ao céu, ao sol, à luz e às estrelas. “Tampouco somos o Deus a quem procuras” Confissões X, VI

Dirigi-me, então, a mim mesmo, e perguntei: “E tu, quem és?” — e respondi: “Um HOMEM”. Confissões X, VI

Para me servirem, tenho um corpo e uma alma: aquele exterior, esta interior. Por qual deles deverei perguntar pelo meu Deus, a quem já havia procurado com o corpo desde a terra até o céu, até onde pude enviar os raios de meu olhar como mensageiros? Melhor, sem dúvida, é a parte interior de mim mesmo. É a ela que dirigem suas respostas todos os mensageiros de meu corpo, como a um presidente ou juiz, respostas do céu, da terra, e de tudo o que existe, e que proclamam: “Não somos Deus” — e ainda — “Ele nos criou”. O HOMEM interior conhece essas coisas por meio do HOMEM exterior; mas o HOMEM interior, que é a alma, também conhece essas coisas por meio dos sentidos do corpo. Confissões X, VI

Grande é o poder da memória! E ela tem algo de terrível, meu Deus, em sua complexidade infinita e profunda. E isto é o espírito, e isto sou eu mesmo. Que sou, pois meu Deus? Qual a minha natureza? Vida vária e multiforme, de amplidão imensa. Eis-me em minha memória, em seus campos, antros, inumeráveis cavernas, tudo isso infinitamente cheio de toda espécie de coisas, também inumeráveis. Umas gravadas em imagens, como os corpos; outras, estão sob a forma de não sei que noções e sinais, como os afetos da alma, que a memória conserva quando a alma já não os sente, embora tudo o que está na memória esteja também no espírito. Percorro em todas as direções este mundo interior, vou de um lado para outro, e nele me aprofundo o mais possível, sem encontrar-lhe os limites, tão grande é a vida que reside no HOMEM mortal! Que hei de fazer, pois, meu Deus, minha verdadeira vida? Ultrapassarei também esta faculdade que se chama memória? Ultrapassa-la-ei para chegar a ti, doce luz? Que dizes? Confissões X, XVII

É assim o coração do HOMEM! Cego e lerdo, torpe e indecente: quer permanecer oculto, mas não quer que nada lhe seja ocultado. Em castigo, sucede-lhe o contrário: não consegue esconder-se da verdade, enquanto esta lhe continua oculta. Contudo, apesar de tão infeliz, prefere encontrar alegrias na verdade que no erro. Será, portanto, feliz quando, livre de perturbações, se alegrar somente na Verdade, origem de tudo o que é verdadeiro. Confissões X, XXIII

Ai de mim, Senhor, tem piedade de mim! As tristezas do meu mal lutam com minhas santas alegrias, e eu não sei de que lado está a vitória. Ai de mim! Senhor, tem piedade de mim! Eis minhas feridas: eu não as escondo. Tu és o médico, eu o enfermo; és misericordioso, e eu, miserável. Não é contínua tentação a vida do HOMEM sobre a terra? Quem quer aborrecimentos e dificuldades? Mandas que os suportemos, e não que os amemos. Ninguém ama o que tolera, ainda que goste de o tolerar; e mesmo que alguém se alegre em tolerar, preferiria nada ter que suportar. Na adversidade, desejo a prosperidade, e na prosperidade temo a adversidade. Entre estes dois extremos, qual será o termo médio onde a vida humana não seja tentação? Confissões X, XXVIII

Ai das prosperidades do século, onde se receia a adversidade e a alegria é corrompida! Ai das adversidades do século, uma, duas, três vezes ai! Pelo desejo da prosperidade, por ser dura a adversidade, e pelo temor que vença a nossa paciência! A vida do HOMEM sobre a terra não é pois uma contínua tentação? Confissões X, XXVIII

Ouvi ainda de ti outra palavra: “Não corras atrás de tuas concupiscências, e reprime teus apetites” — Tua graça ainda me fez ouvir outra palavra, de que tanto gostei: “Se comemos, não teremos abundância; e se não comemos, não sofreremos privação”. — Ou seja: nem isto me fará rico, nem aquilo pobre. — E ouvi ainda esta outra: “Aprendi a me contentar com o que tenho: sei viver na abundância e suportar a penúria. Tudo posso naquele que me fortalece”. — Eis como fala o bom soldado da milícia celeste: nada parecido ao que somos. Mas, Senhor, lembra-se que somos , e que de fizeste o HOMEM; que este havia se perdido, e que foi reencontrado. Confissões X, XXXI

“Tu me ensinaste, Pai bondoso, que tudo é puro para os puros, mas que é mau para o HOMEM comer com escândalo, que tudo o que fizeste é bom, e que nada deve ser rejeitado do que se recebe com ação de graças; que os alimentos não nos recomendam a Deus, que ninguém nos deve julgar pela comida ou pela bebida; que o que come não deve julgar o que não come”. — Por essas lições, graças e louvores te dou, meu Deus, meu Mestre, que bateste à porta de meus ouvidos e iluminaste meu coração. Livra-me de toda tentação. Não receio a impureza dos alimentos, mas a impureza do prazer. Confissões X, XXXI

É esse quê de mórbido de curiosidade que faz com que se exibam monstruosidades nos espetáculos. É ela que nos induz a perscrutar os segredos da natureza exterior, cujo conhecimento de nada serve, mas que os homens buscam conhecer apenas pelo prazer de conhecer. É ela também que inspira o HOMEM a pesquisar, com fim semelhante, a ciência perversa, que é a arte da magia. Confissões X, XXXV

Quem busca o louvor dos homens, quando tu o reprovas, não será por estes defendido quando o julgares, nem poderá subtrair á tua condenação. Mas quando não se louva um pecados pelos desejos de sua alma, nem se abençoa quem pratica iniquidades, mas te louva um HOMEM pelos dons que lhe concedeste, se ele se compraz mais no louvor do que no dom que lhe atrai os louvores, tu o reprovas, a despeito dos louvores que recebe dos homens. E quem o louva é melhor do que é louvado, porque um se agradou com o dom de Deus, e o outro alegrou-se com o dom do HOMEM. Confissões X, XXXVI

Era necessário que o mediador entre Deus e o HOMEM tivesse alguma semelhança tanto com Deus como com os homens; pois se assemelhasse apenas aos homens, estaria muito longe de Deus; e se assemelhando só a Deus, estaria muito longe dos homens; em ambos os casos não poderia ser mediador. Confissões X, XLII

O verdadeiro mediador que tua insondável misericórdia enviou e revelou aos homens, para que aprendessem a humildade pelo seu exemplo, é esse mediador entre Deus e os homens, o HOMEM Jesus Cristo. Apareceu como intermediário entre os pecadores mortais e o Justo imortal, mortal como os homens e justo como Deus. E, como a vida e a paz são a recompensa da justiça, pela justiça que o une a Deus ele suprimiu a morte entre os ímpios justificados, e quis compartilhá-la com eles. Foi revelado aos santos dos antigos tempos, para que eles se salvassem pela em sua paixão futura, como nós nos salvamos pela em sua paixão passada. De fato, só é mediador enquanto HOMEM; enquanto Verbo não é intermediário, por ser igual a Deus: Deus em Deus e, ao mesmo tempo, Deus único. Confissões X, XLIII

Como nos amaste, Pai bondoso! Não poupando teu Filho único, o entregaste por nós pecadores! Oh! Como nos amaste! Foi por amor a nós que teu Filho, que não considerava rapina o ser igual a ti, submeteu-se até a morte de cruz. Ele era o único livre entre os mortos, tendo o poder de dar sua vida e de novamente retomá-la. Por nós se fez diante de ti vencedor e vítima; por nós, diante de ti, se fez sacerdote e sacrifício, e sacerdote porque ele era o sacrifício; de escravos, fez de nós teus filhos; nascidos de ti, se fez nosso escravo. Com razão ponho nele a firme esperança que curarás todas as minhas enfermidades por intermédio dele, que está sentado à tua direita e intercede por nós junto de ti. De outro modo desesperaria, pois são muitos e grandes meus males; porém mais poderoso é o poder do teu remédio. Poderíamos pensar que teu Verbo estava muito longe para se unir ao HOMEM, e desesperar de nós, se ele não se tivesse feito carne, habitando entre nós. Confissões X, XLIII

Vê, meu Deus, de onde nasce meu desejo. Os ímpios contaram-me suas alegrias, mas esses prazeres não são como os proporcionados por tua lei. É ela que inspira meu desejo. Olha, ó Pai, olha, e vê, e aprova. Queira tua misericórdia que eu encontre graça diante de ti, e que os arcanos secretos de tuas palavras se abram a meu espírito que bate às suas portas! Isso eu te suplico por nosso Senhor, Jesus Cristo, teu filho, aquele que está sentado à tua direita, o Filho do HOMEM, a quem estabeleceste como mediador entre nós e ti. Por ele nos procuraste quanto não te procurávamos, e nos procuraste para que te buscássemos! Em nome de teu Verbo, por quem criaste todas as coisas, e a mim entre outras; de teu Filho unigênito, por quem chamaste à adoção o povo dos crentes, no qual também estou. Confissões XI, II

Com certeza ainda estão cheios do erro do velho HOMEM os que nos dizem: “Que fazia Deus antes de criar o céu e a terra?” — Se estava ocioso, se nada fazia, porque não continuou a se abster sempre de qualquer ação? Se em Deus apareceu um movimento novo, uma vontade nova de dar o ser ao que ainda não tinha criado, como falar de uma verdadeira eternidade se nela nasce uma vontade que não existia antes? Mas a vontade de Deus não é uma criatura, ela é anterior a toda criatura; nenhuma criação seria possível se a vontade do Criador não a precedesse. A vontade, portanto, pertence à própria substância de Deus. Logo, se na substância de Deus nasce algo que antes não existia, não se pode mais com verdade chamá-la eterna. E se, desde toda eternidade, Deus quis a existência da criatura, por que a criatura também não é eterna? Confissões XI, X

Os que assim falam não te compreendem ainda, ó Sabedoria de Deus, luz das inteligências; não compreendem ainda como é criado o que é criado por ti e em ti. Esforçam-se por saborear as coisas eternas, mas seu espírito voa ainda sobre as realidades passadas e futuras. Quem poderá deter esse pensamento, quem o fixará por um momento, para que tenha um rápido vislumbre do esplendor da eternidade imutável, e a compare com os tempos impermanentes, para perceber que qualquer comparação é impossível? Então veria que a sucessão dos tempos não é feita senão de uma sequência infindável de instantes, que não podem ser simultâneos; que, pelo contrário, na eternidade, nada é sucessivo, tudo é presente, enquanto o tempo não pode ser de todo presente. Veria que todo o passado é repelido pelo futuro, que todo futuro segue o passado, que tanto o passado como o futuro tiram seu ser e seu curso daquele que é sempre presente. Quem poderá deter a inteligência do HOMEM para que pare e veja como a eternidade imóvel, que não é futura nem passada, determina o futuro e o passado? Acaso poderá realizar isso minha mão? Ou esta minha língua, com a palavra, poderia realizar tal obra? Confissões XI, XI

Senhor, que és a minha luz, tua verdade não escarnecerá também nisso o HOMEM? Esse tempo passado, foi longo quando já havia passado ou quando ainda estava presente? Porque ele só podia ser longo enquanto existia alguma coisa que pudesse ser longa. Mas uma vez passado, não existia mais: donde se conclui que não podia ser longo, porque já deixara de existir. Não digamos, portanto: “O tempo passado foi longo” — pois não encontraremos nada que pudesse ter sido longo; uma vez passado não existe mais. Mas digamos: “O tempo presente foi longo” — porque só era longo enquanto presente. Ainda não havia passado, ainda não havia deixado de existir, e por isso era susceptível de ser longo. Mas logo que passou, deixou de ser longo, porque cessou de existir. Confissões XI, XV

Nós só falamos de tempo, e de tempo, e de tempos e de tempos. Quanto tempo esse HOMEM falou? Quanto tempo demorou para fazê-lo? Há quanto tempo não vejo isto! A duração desta sílaba é o dobro daquela, que é breve. Assim nos expressamos e assim ouvimos, e todos nos compreendem, e nós compreendemos. São palavras claras e de uso corrente, mas encerram mistérios, e compreendê-las requer melhor análise. Confissões XI, XXII

Ouvi um HOMEM instruído dizer que o tempo é nada mais do que o movimento do sol, da lua e dos astros. Não concordo. Por que não seria então o tempo o movimento de todos os corpos? Se os astros passassem, e a roda de um oleiro continuasse a rodar, deixaria acaso de existir tempo para medir suas voltas? Como poderíamos dizer que elas se davam a intervalos iguais, ou ora mais rápida, ora mais lentamente, e que umas demoravam mais e outras menos? E, dizendo isto, não estaríamos falando do tempo? Não haveria mais em nossas palavras sílabas longas e breves, porque umas ressoam por mais tempo e outras por menos tempo? Confissões XI, XXIII

Ninguém, portanto, me diga que o tempo é o movimento dos corpos celestes. Quando a oração de um HOMEM fez parar o sol para concluir vitoriosamente a batalha, o sol estava imóvel, mas o tempo caminhava; e a batalha terminou no espaço de tempo que lhe era necessário. Confissões XI, XXIII

E o que acontece com a canção tomada em seu conjunto, também ocorre com cada uma de suas partes, com cada sílaba; e também acontece com uma ação mais longa, da qual essa melodia talvez faça parte. O mesmo acontece com toda a vida do HOMEM, da qual seus atos são partes. Sucede, enfim, com toda a história dos filhos do HOMEM, da qual cada existência é apenas uma parte. Confissões XI, XXVIII

Mas porque tua misericórdia é superior a todas as vidas, e eis que minha vida não é mais que distensão, e tua destra me acolheu em meu Senhor, o Filho do HOMEM, mediador entre ti, que és uno, e nós, que somos muitos e vivemos divididos por diversas paixões. Assim. Por ele me unirei àquele, que por ele se uniu a nós, e liberto dos antigos dias, recolherei meu ser seguindo tua Unidade. Esquecido do passado, sem me preocupar com as coisas futuras e transitórias, atento apenas àquilo que é eterno, não com dispersão mas com todas as minhas forças buscarei a palma da vocação celeste, onde ouvirei a voz de teu louvor, e onde contemplarei tua alegria, que não conhece futuro nem passado. Confissões XI, XXIX

Chamava de informe essa matéria, não porque a imaginasse sem forma, mas por tê-las tão estranhas e bizarras que, se a visse, afastaria meus sentidos e confundiria minha fraqueza de HOMEM. Confissões XII, VI

Algum outro dirá, talvez, que a realidade invisível e visível não foi chamada impropriamente de céu e terra, e portanto, que o universo criado por Deus na sabedoria, isto é, no princípio, está compreendido sob esses dois termos. Porém as coisas não foram feitas da substância de Deus, mas do nada, e não se confundem com Deus, e nelas existe o princípio da mutabilidade, quer permaneçam como morada eterna de Deus, quer mudando-se como a alma e o corpo do HOMEM. Confissões XII, XVII

Mas poderei dizer com a mesma certeza que Moisés teve essa intenção, e não outra, quando escreveu: “No princípio, criou Deus o céu e a terra”? — Embora esteja persuadido de que isto está claro na tua verdade, não vejo com igual certeza o que Moisés pretendia ao escrever tais palavras. Por essa expressão: “no princípio” pode ter significado: “no começo da criação”. Por céu e terra, pode ter querido dar-nos a entender, a natureza espiritual e corporal, não já formada e perfeita, mas uma e outra, só esboçada e sem forma. Vejo que ambos os sentidos são igualmente plausíveis. Mas não posso atinar em qual dos dois pensava Moisés quando escrevia essas palavras. Fosse porém qual fosse sua intenção ao exprimir essas palavras, eu não poderia duvidar de que tão grande HOMEM tenha entrevisto a verdade e a tenha formulado adequadamente. Confissões XII, XXIV

Quereria, se estivesse no lugar de Moisés — pois todos procedemos da mesma massa, e que é o HOMEM se não te lembras dele? — e me tivesses confiado a missão de escrever o Gênesis, quereria receber de ti tal eloquência, tal qualidade de estilo, que mesmo os espíritos incapazes de compreender como foi que Deus criou, não pudessem rejeitar minhas palavras como superiores às suas forças; que os que já o pudessem, descobrissem, nas poucas palavras de teu servo, todas as verdades que sua reflexão já lhes tivesse proporcionado; e que se alguém, à luz de tua verdade, nelas percebesse outro significado, também ele o pudesse encontrar nessas mesmas palavras. Confissões XII, XXVI

Alguns, lendo ou escutando aquelas palavras, imaginam a Deus como HOMEM ou como massa material dotada de imenso poder que, por decisão nova e repentina, criara fora de si mesma e como que à distância, o céu e a terra, esses dois grandes corpos, um superior, outro inferior, onde estão contidas todas as coisas. E ao ouvirem dizer:”Deus disse: faça-se isto! E isto foi feito! — imaginam que se trata de palavras comuns, que começam e terminam, que soam no tempo e passam. Julgam que, logo após pronunciadas, começa existir o que ordenaram que existisse. Todas as suas demais concepções ressentem-se do mesmo hábito de pensar de modo carnal. Confissões XII, XXVII

Por mim, digo-o sem hesitar e do fundo do coração: se, investido da mais alta autoridade, tivesse algo a escrever, preferiria fazê-lo de modo que minhas palavras proclamassem tudo o que cada um pudesse conceber de verdadeiro sobre isso, em vez de propor um significado único e claro que excluísse todos os demais, cuja falsidade não me pudesse ofender. E também não quero, meu Deus, ser tão temerário a ponto de acreditar que esse grande HOMEM não mereceu de ti essa graça. Confissões XII, XXXI

Enfim, Senhor, tu que és Deus, e não carne e sangue, se um HOMEM não pôde ver tudo por completo, poderia teu Espírito bom, que me deve conduzir à terra da retidão, desconhecer algo do que tencionavas revelar por essas palavras a seus leitores vindouros, apesar de teu mensageiro não entender senão um dos numerosos sentidos verdadeiros? Se assim é, o sentido que ele pensou era o mais elevado de todos. Mas revela a nós, Senhor, esse sentido ou algum outro que for de teu agrado e real; e quer nos mostres o mesmo sentido que ao HOMEM de Deus, quer seja outro, inspirado pelas mesmas palavras, alimenta nosso espírito, guarda-nos da ilusão do erro. Confissões XII, XXXII

O anjo caiu, a alma do HOMEM caiu, revelando assim as profundas trevas em que teria caído o abismo que continha todas as criaturas espirituais, se não tivesses dito desde o começo: “Faça-se a luz!” — se a luz não se tivesse feito, se todas as inteligências de tua cidade celeste não se tivessem unido na obediência a ti, se não tivessem repousado em teu Espírito que paira, imutável, sobre os seres transitórios. De outro modo, até o céu do céu não seria mais que abismo de trevas, enquanto que agora é luz no Senhor. Confissões XIII, VIII

Feliz a criatura que não conheceu outro estado! Seria porém diferente do que é se, apenas criada, teu Espírito, que paira sobre todas as coisas mutáveis, não a tivesse erguido com este apelo: “Faça- te a luz” — e a luz se fez. Em nós, o tempo em que éramos trevas distingue-se do tempo em que nos tornamos luz. Mas dessa criatura só se diz o que teria sido se não fosse iluminada. A Escritura fala dela como se tivesse sido flutuante e tenebrosa, para nos realçar a causa que a transformou, isto é, que a conduziu para a luz inextinguível, para que também fosse luz. Quem o puder, compreenda, quem não o puder, que te peça a graça de o compreender. Por que importunam, como seu fosse a luz que ilumina a todo HOMEM que vem a este mundo? Confissões XIII, X

Quisera que os homens refletissem sobre três coisas que têm dentro de si mesmos. Elas diferem muito da Trindade, e eu só as proponho para que as usem como exercício e experiência do pensamento, e com isso compreender como estão longe deste mistério. Eis as três coisas: ser, conhecer, querer. Porque existo, conheço, quero e vejo. Eu sou aquele que conhece e quer. Sei que existo e que quero, e quero existir e saber. Repare, quem puder, como nessas três coisas a vida é indivisível, a unidade da vida, a unidade da inteligência, a unidade da essência; veja a impossibilidade de distinguir elementos inseparáveis e, contudo, distintos. O HOMEM está diante de si mesmo; que ele se examine, veja e me responda. Contudo, por ter encontrado e reconhecido esta analogia, não julgue por isso ter compreendido a essência do Ser imutável, que transcende tais movimentos da alma, que existe imutavelmente, conhece imutavelmente e quer imutavelmente. Mas é por causa de tais atributos que em deus há a Trindade, ou esses três atributos pertencem a cada pessoa divina, cada uma sendo assim uma e trina? Ou ambas as coisas são admiravelmente reais: a Trindade, misteriosamente simples e múltipla, sendo para si mesma seu próprio fim infinito, pelo qual existe, se conhece e se basta imutavelmente na magnitude superabundante de sua unidade? Quem conceberá facilmente este mistério? Quem poderia explicá-lo? Quem, temerariamente, ousaria enunciá-lo de algum modo? Confissões XIII, XI

Ó minha , vai adiante em tua confissão. Dize a teu Senhor: “Santo, santo, santo! É o Senhor, meu Deus! — Em teu nome fomos batizados, Pai. Filho e Espírito Santo; em teu nome batizamos, Pai, Filho e Espírito Santo. Também entre nós Deus criou, pelo seu Cristo, um céu e uma terra, isto é, os espirituais e os carnais de sua Igreja. E nossa terra, antes de receber a forma da doutrina, era invisível e informe, e estávamos imersos nas trevas da ignorância, porque castigaste o HOMEM por causa de sua iniquidade, e teus justos juízos são como abismos profundos. Confissões XIII, XII

Quanto ao HOMEM carnal, semelhante a um menino em Cristo, que só se alimenta de leite, que não se julgue abandonado em sua noite, que saiba contentar-se com a luz da lua e das estrelas, até que possa tomar alimento sólido e olhar para o sol. Eis o que nos ensinas em tua sabedoria, nosso Deus, em teu livro, que é teu firmamento, para que distingamos todas as coisas em contemplação admirável, embora ainda estejamos sob a lei dos sinais, dos tempos, dos dias e dos anos. Confissões XIII, XVIII

Aquele rico perguntava ao bom Mestre o que deveria fazer para ganhar a vida eterna. E o bom Mestre, que é bom porque é Deus, e não um HOMEM como o rico o considerava, lhe declarou: “O que deseja conseguir a vida deve observar os mandamentos, afastar de si a amargura da malícia e da iniquidade, não matar, não cometer adultério, não roubar, não prestar falso testemunho, a fim de que se mostre a terra seca, geradora do respeito do pai e da mãe e do amor do próximo. Confissões XIII, XIX

Mas tua palavra, meu Deus, é a fonte da vida eterna, e não passa. Ela mesma nos proíbe que nos afastemos de ti por essas palavras: “Não vos conformeis com o mundo em que vivemos, para que a terra, fertilizada pela fonte da vida, produza uma alma viva, uma alma que busque em tua palavra, transmitida por teus evangelistas, se fortificar, imitando os imitadores de teu Cristo”. — Eis o sentido da expressão “segundo sua espécie”, porque o HOMEM imita a quem ama. “Sede como eu” — diz o Apostolo, – porque sou como vós. — Assim haverá na alma viva apenas feras sem maldade, agindo com doçura. Pois nos deste este mandamento: “Fazei vossas obras com mansidão, e sereis amados por todos” — Também os animais domésticos serão bons: se comerem, não sofrerão fastio e, se não comerem, não terão fome. As serpentes, tornando-se boas, serão incapazes de causar danos, mas continuarão astutas e cautelosas; não investigarão a natureza temporal, senão na medida necessária para compreender e contemplar a eternidade através das coisas criadas. Esses animais, as paixões, obedecem à razão, quando refreados em seus caminhos mortais, vivem e se tornam bons. Confissões XIII, XXI

Assim, Senhor, nosso Deus e nosso Criador, quando nossos afetos mundanos, que nos causam a morte porque nos faziam viver mal, se afastarem do amor do mundo, quando nossa alma, vivendo bem, se tornar alma viva, e quando se cumprir a palavra que proferiste pela boca de teu Apostolo: “Não vos conformeis com o mundo em que vivemos” — então seguir-se-á aquilo que acrescentaste imediatamente ao dizer: “Mas reformai-vos na novidade de vossa mente”. — E já não será “segundo vossa espécie” — como se fosse imitar nossos predecessores ou viver seguindo os exemplos de alguém melhor que nós. Não disseste: “Que o HOMEM seja feito de acordo com sua espécie” — mas “façamos o HOMEM à nossa imagem e semelhança” — para que pudéssemos reconhecer tua vontade. Para tanto, o divulgador de teu pensamento, que gerou filhos pelo Evangelho, não querendo que continuassem como crianças os que alimentara com leite e agasalhara em teu seio como uma ama, dizia: “Reformai-vos renovando vosso coração, para discernir a vontade de Deus, que é bom, agradável e perfeito”. — Também não dizes: “Faça-se o HOMEM” — mas “à nossa imagem e semelhança”. Aquele que é renovado no espírito, que compreende e conhece tua verdade, não mais carece que um outro lhe ensine a imitar sua espécie. Graças às tuas lições, ele reconhece por si qual é tua vontade, o que é bom, agradável e perfeito. Tu lhe ensinas, pois agora é capaz deste ensinamento, a ver a Trindade da Unidade e a Unidade da Trindade. Eis por que, depois de falar no plural: “Façamos o HOMEM” se diz no singular: “E Deus criou o HOMEM”. Depois deste plural: “À nossa imagem” — este singular: “À imagem de Deus”. Assim o HOMEM “se renova pelo conhecimento de Deus, à imagem de seu criador” — e “tornando-se espiritual, julga todas as coisas”, que certamente hão de ser julgadas, “mas ele não é julgado por ninguém”. Confissões XIII, XXII

Ele julga tudo, significa que tem autoridade sobre os peixes do mar, sobre os pássaros do céu, sobre os animais domésticos e selvagens, sobre toda a terra e sobre todos os répteis que nela se arrastam. Exerce esse poder pela inteligência, pela qual percebe as coisas que são do Espírito de Deus. Mas, elevado a tão grande honra, o HOMEM não entendeu sua dignidade, igualou-se aos jumentos insensatos, tornando-se semelhante a eles. Confissões XIII, XXIII

Por isso, na tua Igreja, Senhor, pela graça que lhe concedeste — pois somos obra tua, e criados para obras boas, tanto os que governam como os que obedecem segundo o Espírito tem o dom de julgar. Porque assim fizeste a criatura humana HOMEM e mulher, em tua graça espiritual, onde não há distinção conforme o sexo, nem judeu nem grego, nem escravo nem HOMEM livre. Os espirituais, portanto, tanto os que presidem como os que obedecem, julgam espiritualmente. Eles não julgam conhecimentos espirituais que brilham no firmamento, pois não lhes cabe fazer juízos sobre tão sublime autoridade. Nem julgam tua Escritura, mesmo em suas passagens obscuras: nós lhe submetemos nossa inteligência, e temos certeza de que até aquilo que está oculto à nossa compreensão é justo e verdadeiro. O HOMEM, pois, embora já espiritual e renovado pelo conhecimento, conforme a imagem de seu criador, deve ser cumpridor da lei, e não seu juiz. Nem pode ajuizar sobre o que distingue espirituais e carnais. Somente teus olhos, meu Senhor, os distinguem, mesmo que nenhuma obra sua os tenha revelado a nós, para que os reconheçamos por seus frutos. Mas tu, Senhor, já os conheces e os classificaste, e os chamaste no segredo de teu pensamento, antes de ter criado o firmamento. Confissões XIII, XXIII

Tampouco julga, o HOMEM espiritual, os povos inquietos deste mundo. De fato, por que julgaria ele os que estão fora, ignorando quem alcançará a doçura da tua graça, e quem permanecerá na eterna amargura da impiedade? Confissões XIII, XXIII

Por isso, o HOMEM que criaste à tua imagem, não recebeu poder sobre os astros do céu, nem sobre o mesmo céu misterioso, nem sobre o dia e a noite que chamaste á existência antes da criação do céu, nem sobre a massa das águas, que é o mar. Mas recebeu poder sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre todos os animais, sobre toda a terra, e sobre tudo o que se arrasta pela superfície do solo. Confissões XIII, XXIII

O HOMEM espiritual julga também aprovando o que acha correto e reprovando o que é vicioso nas obras e nos costumes dos fiéis. Julga das suas esmolas, comparáveis aos frutos da terra; ele julga a alma viva pelas paixões domadas pela castidade, os jejuns, e pelos pensamentos piedosos, na medida em que essas coisas se manifestam aos sentidos do corpo. Em resumo, é juiz de tudo o que pode se corrigir. Confissões XIII, XXIII

Por que não abençoaste também a luz, que chamaste dia, nem a terra, nem o mar? Eu diria, meu Deus, que nos criaste à tua imagem, diria que quiseste conceder especialmente ao HOMEM esta benção, se não houvesses abençoado igualmente os peixes e os cetáceos, para que cresçam, se multipliquem, encham as águas do mar, e os pássaros para que se multipliquem sobre a terra. Confissões XIII, XXIV

Quero ainda dizer, Senhor meu Deus, o que me inspiram as palavras que seguem da tua Escritura. E o farei sem medo, porque direi a verdade; pois não vem de ti, por acaso, a inspiração do que queres que eu diga? Não creio que eu possa dizer a verdade se tu não me inspirares, pois tu és a própria verdade, e todo HOMEM é mentiroso. Por isto, quem mente fala do que é seu. Logo, para falar a verdade, só falarei o que me inspiras. Confissões XIII, XXV

Qual então o motivo de tua alegria, ó grande Paulo? De onde vem tal júbilo, de que te alimentas, ó HOMEM renovado para o conhecimento de Deus, conforme a imagem de teu Criador, alma viva que possui tal domínio de si, língua alada que exprime os mistérios? É certamente a tais almas que se deve este alimento. O que foi para ti esse alimento substancioso? A alegria. Confissões XIII, XXVI

— Dom é receber o profeta, receber o justo, dar um copo de água fresca a um discípulo; fruto é fazer isso em consideração de sua qualidade de profeta, de justo, de discípulo. É com este fruto que Elias era alimentado pela viúva: ela sabia que alimentava um HOMEM de Deus, e é por isso que o fazia. Os alimentos, porém, que lhe eram levados pelo corvo, não passavam de dom, e não era o Elias interior, mas o Elias exterior que recebia esse alimento, o que poderia morrer se lhe faltasse esse alimento. Confissões XIII, XXVI

A isto me respondes, porque és meu Deus, falando com voz forte no ouvido interior de teu servo, rompendo minha surdez, me exclamas: “Ó HOMEM, o que minha Escritura diz, isto digo eu. Confissões XIII, XXIX

O oposto sucede aos que veem tuas obras através de teu Espírito, pois és tu é quem as vê neles. Portanto, quando veem que elas são boas, tu também vês essa bondade; em tudo o que lhes agrada por tua causa, tu és que nos agradas, e o que nos agrada através de teu Espírito é em nós que te agrada. Com efeito, quem dentre os homens sabe das coisas do HOMEM, senão o espírito do HOMEM que nele habita? Do mesmo modo o que pertence a Deus ninguém o sabe, a não ser o Espírito de Deus. “Quanto a nós, diz ainda Paulo, não recebemos e espírito deste mundo, mas o Espírito de Deus, para que conheçamos os dons que nos vêm de Deus”. Confissões XIII, XXXI

Por isso, uma coisa é julgar mau o que é bom, como o fazem aqueles de quem falei acima, e outra coisa é o HOMEM ver o que é bom. Todavia, muitos amam tua criação porque é boa, mas não tem amam nessa criação; e por isso preferem gozar dela que de ti. Há ainda outro caso, quando alguém vê que uma coisa é boa, mas é Deus que nele vê que essa coisa é boa, e é Deus que é amado em sua criação. Ele só o pode ser graças ao Espírito que Deus nos deu, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado. Por ele, vemos que tudo o que de algum modo existe é bom, pois recebe seu ser daquele que é, não de um modo qualquer, mas de modo absoluto. Confissões XIII, XXXI

Graças te damos, Senhor! Vemos o céu e a terra, isto é, a parte superior e inferior do mundo material, assim como a criação espiritual e material. E, como adorno dessas partes que se compõe, o conjunto do Universo, e o conjunto de toda a criação, vemos a luz que foi criada e separada pelas trevas. Vemos o firmamento do céu, tanto o que está situado entre as águas espirituais superiores e as águas materiais inferiores, como ainda esses espaços de ar, chamados também de céu, onde volitam as aves do céu entre as águas que se evolam em vapores, e nas noites serenas se condensam em orvalho, e as que correm pesadas sobre a terra. Vemos a beleza das águas reunidas nas planícies do mar, e a terra enxuta, ora nua, ora tomando forma visível e ordenada, mãe das plantas e das árvore . vemos os luminares do céu brilhando acima de nós, o sol bastar para o dia, a lua e as estrelas consolando a noite, e todos esses astros marcando e assinalando a cadência do tempo. Vemos o elementos úmido habitado por peixes, monstros, animais alados, porque a densidade do ar que sustenta o voo dos pássaros é aumentada pela evaporação das águas. Vemos a face da terra embelezar-se de animais terrestres, e o HOMEM, criado à tua imagem e semelhança, senhor de todos os animais irracionais, precisamente porque foi feito à tua imagem e se assemelha a ti, em virtude da razão e da inteligência. E como na alma humana há uma parte que domina pela reflexão e outra que se submete na obediência, assim a mulher foi criada fisicamente para o HOMEM; é fora de dúvida que ela possui um espírito e uma inteligência racional, iguais aos do HOMEM, mas seu sexo a coloca sob a dependência do sexo masculino; é desse modo que o desejo, princípio da ação, se submete à razão que concebe a arte do agir retamente. Eis o que vemos, e que cada uma dessas coisas, tomadas por si, são boas, e que todas, em seu conjunto, são muito boas. Confissões XIII, XXXII

Acendeste então os luzeiros no firmamento: teus santos, que possuem a palavra de vida e brilham pela sublime autoridade dos seus dons espirituais. Depois, para difundir a entre as nações idólatras, fizeste com a matéria visível dos sacramentos os milagres bem perceptíveis, e determinaste as vozes das palavras sagradas, conformes ao firmamento de teu Livro, pelas quais seriam abençoados teus fiéis. Formaste depois a alma viva dos fiéis, pela disciplina das paixões bem ordenadas e pelo vigor da continência. Por fim renovaste a alma, que não estava sujeita senão a ti, e que não tinha mais necessidade de nenhuma autoridade humana para imitar, à tua imagem e semelhança; submeteste, como a mulher ao HOMEM, a atividade racional ao poder da inteligência. Quiseste que a teus ministros que são necessários ao progresso dos fiéis nesta vida, que esses mesmos fiéis propiciassem o necessário para suas necessidades temporais; obras valiosas de caridade, cujos frutos colherão no futuro. vemos todas essas coisas, e todas são muito boas, porque tu as contemplas em nós, tu que nos deste o Espírito, para que por ele pudéssemos vê-las e amar-te nelas. Confissões XIII, XXXIV

Que HOMEM poderá dar ao HOMEM a compreensão desta verdade? Que anjo a outro anjo? Confissões XIII, XXXVIII

Que anjo ao HOMEM? É a ti que devemos pedir, e em ti é que a devemos buscar, é à tua porta que devemos bater. E somente assim receberemos, somente assim encontraremos, somente assim se nos abrirá tua porta. Confissões XIII, XXXVIII