Agostinho: espírito

Tu viste, Senhor, que numa ocasião, ainda menino, atacou-me repentinamente um dor de estômago que me abrasava, e que me aproximou da morte. Tu viste também, meu Deus, pois já me tinhas sob tua guarda, com que fervor de ESPÍRITO e com que pedi à piedade de minha mãe, e da mãe de todos nós, tua Igreja, o batismo de teu Cristo, meu Deus e Senhor. Perturbou-se minha mãe carnal, pois que me criava com mais amor em seu casto coração em tua para a vida eterna e, solícita, já havia cuidado de que me iniciasse e purificasse com os sacramentos da salvação, confessando-te, ó meu Senhor Jesus, em remissão de meus pecados, quando, de repente, comecei a melhorar. Em vista disso, diferiu-se minha purificação, considerando que seria impossível, se eu vivesse, que não me tornasse a manchar; pois a culpa dos pecados cometidos depois do batismo é muito maior e mais perigosa. Confissões I, XI

Como ardia, meu Deus, como ardia meus desejos de voar para ti das coisas terrenas, sem que eu soubesse o que obravas em mim! Porque em ti está a sabedoria, pela qual aquelas páginas me apaixonavam. Não faltam os que nos iludam servindo-se da filosofia, colocando ou encobrindo seus erros com nome tão grande, tão doce e honesto. Mas quase todos os que assim fizeram em seu tempo e em épocas anteriores, são apontados e refutados nesse livro. Também se encontra ali bem claro aquele salutar aviso de teu ESPÍRITO, dado por meio de teu servo bom e piedoso (Paulo): Vede que ninguém vos engane com vãs filosofias e argúcias sedutoras, de acordo com a tradição dos homens e os ensinamentos deste mundo, e não de acordo com Cristo, porque é nele que habita corporalmente toda a plenitude da divindade. Confissões III, IV

Deste modo vim cair com uns homens que deliravam orgulhosos, demasiado carnais e loquazes; em sua boca havia laços diabólicos e engodo pegajoso feito com as silabas de teu nome, do nosso Senhor, Jesus Cristo, e do nosso Paracleto e Consolador, o ESPÍRITO Santo. Estes nomes nunca saíam de seus lábios, porém, só no som e ruído da boca, pois de resto, seu coração estava vazio de toda verdade. Confissões III, VI

Mas onde estavas então para mim? e quão longe peregrinava eu, longe de ti, privado até as bolotas com que eu alimentava os porcos! Quão melhores eram as fábulas dos gramáticos e poetas que todos aqueles enganos! Porque os versos, a poesia e a fábula de Medeia soando pelo ar são certamente mais úteis que os cinco elementos do mundo em seus mil disfarces, conforme os cinco antros de trevas, que não existem, mas que matam a quem nele acredita. Porém, versos e poesia eu os posso converter em iguaria para meu ESPÍRITO e, quanto ao voo de Medeia, se o recitava bem, não lhe afirmava veracidade e, se me agradava ouvi-lo, não lhe dava crédito. Mas — ai de mim! — eu acreditei naqueles erros dos maniqueístas. Confissões III, VI

Tampouco sabia que Deus é ESPÍRITO, que não tem membros dotados de comprimento ou largura, nem quantidade material alguma, porque a quantidade ou matéria é sempre menor na parte que no todo e, mesmo que fosse infinita, sempre seria menor em uma parte definida por um espaço determinado do que em sua infinidade, não podendo estar toda inteira em todas as partes, como o ESPÍRITO, como Deus. Confissões III, VII

Mas estendeste tua mão do alto, e arrancaste minha alma deste abismo de trevas, enquanto minha mãe, tua fiel serva, chorava-me diante de ti muito mais do que as outras mães costumam chorar sobre o cadáver dos filhos, pois via a morte de minha alma com a e o ESPÍRITO que havia recebido de ti. E tu a escutaste, Senhor, tu a ouviste e não desprezaste suas lágrimas que, brotando copiosas, regavam o solo debaixo de seus olhos por onde fazia sua oração; sim, tu a escutaste, Senhor. Com efeito, donde podia vir aquele sonho, com que a consolaste, ao ponto de me admitir em sua companhia e mesa, fato que havia me negado porque aborrecia e detestava as blasfêmias do meu erro? Confissões III, XI

Por isso, não cessava de consultar os impostores chamados matemáticos, já que estes não usavam em suas adivinhações de quase nenhum sacrifício, nem dirigiam preces a nenhum ESPÍRITO o que, consequentemente, é condenado e repelido com razão pela piedade cristã e verdadeira. Porque o bom é confessar-te, Senhor, e dizer-te: Tem misericórdia de mim, e cura minha alma, porque pecou contra ti, e não abusar da tua indulgência para pecar mais livremente, mas ter sempre presente a sentença do Senhor: Eis-te curado: não peques mais, para que te não suceda algo pior — Estas palavras, cujo efeito salutar os astrólogos querem destruir, dizendo: “O impulso de pecar vem dos céus; foi Vênus, Saturno ou Marte que fizeram isto” — e tudo para que o homem, que é carne, e sangue, e soberba podridão, se sinta sem culpa, e atribua esta ao criador e ordenador do céu e das estrelas. E quem é este, senão tu, nosso Deus, suavidade e fonte de justiça, que dás a cada um de acordo com suas obras, e não desprezas ao coração contrito e humilhado? Confissões IV, III

Por aqueles anos, quando comecei a ensinar em minha cidade natal, conheci um amigo, a quem amei em demasia por ser meu companheiro de estudos, de minha idade, e por estarmos ambos na flor da juventude. Juntos fomos criados quando crianças, juntos íamos à escola, juntos havíamos brincado. Mas nessa época não era amigo tão íntimo como o foi depois, embora também não o fosse tanto quanto o exige a verdadeira amizade, uma vez que esta só existe entre os que unes por meio da caridade, derramada em nossos corações pelo ESPÍRITO Santo que nos foi dado. Confissões IV, IV

Esse homem já errava em ESPÍRITO comigo, e minha alma não podia viver sem ele. Confissões IV, IV

Quem poderá enumerar teus louvores, mesmo limitando-se ao que experimentou em si mesmo? Que fizeste então, meu Deus! E quão impenetrável é o abismo de teus juízos! Lutando meu amigo contra a febre, ficou por muito tempo sem sentidos, banhado no suor da morte; e, como temessem por sua vida, batizaram-no sem que ele o soubesse, com o que não me importei, convencido que estava de que seu ESPÍRITO reteria melhor aquilo que eu lhe havia inculcado do que o sinal que recebera sobre o corpo inconsciente. Confissões IV, IV

Mas para que falar dessas coisas, se agora não é tempo de investigar, mas de me confessar a ti? Eu era miserável, como o é toda alma prisioneira do amor pelas coisas temporais; se sente despedaçar quando as perde, sentindo então sua miséria, que a torna miserável antes mesmo de as perder. Assim é como eu era então e, chorando muito amargamente, descansava na amargura. E como era miserável! Contudo, mais que o amigo caríssimo, eu amava minha vida miserável, porque embora desejasse mudá-la, não queria perdê-la como ao amigo, não sei se gostaria de perdê-la por ele, como se conta de Orestes e Pílades — se não é ficção — que queriam morrer um pelo outro, porque para eles viver separados era pior que a morte. Mas não sei que novo sentimento nascera em mim, muito contrário a este: sentia pesado tédio de viver, e ao mesmo tempo tinha medo de morrer. Creio que quanto mais amava o amigo tanto mais odiava e temia a morte, como inimigo feroz que mo havia arrebatado; pensava que ela acabaria de repente com todos os homens, como o fizera com ele. Este era meu estado de ESPÍRITO, pelo que me lembro. Confissões IV, VI

Dize-lhes isto, minha alma, para que chorem neste vale de lágrimas, e assim os arrebates contigo para Deus, pois, ao dizer estas palavras ardendo em chamas de caridade, é o ESPÍRITO divino que te inspira. Confissões IV, XII

Daqui passei à natureza da alma, mas o falso conceito que tinha das coisas espirituais não me permitia perceber a verdade. A própria força da verdade saltava-me aos olhos, mas logo eu afastava da realidade incorpórea meu ESPÍRITO inquiridor, voltando-me para as figuras, as cores e as grandezas materiais. E como não podia ver nada semelhantes na alma, julgava que tampouco seria possível ver minha alma. Confissões IV, XV

Mas, como eu amava a paz da virtude, e aborrecia a discórdia do vício, notava naquela certa unidade e neste certa desunião; parecia-me que residisse nessa unidade a alma racional, a essência da verdade e do sumo bem. Na desunião, via eu não sei que substância de vida irracional e a natureza do sumo mal, que não era apenas substância, mas também verdadeira vida. Todavia não procedia de ti, meu Deus, de quem procedem todas as coisas. E chamava àquela unidade mônada, como alma sem sexo, e a esta multiplicidade díada, como a ira nos crimes, a concupiscência nas paixões, sem saber o que dizia. Ignorava então, ainda não havia aprendido que o mal não é substância alguma, nem que nosso ESPÍRITO não é o bem soberano e imutável. Confissões IV, XV

Assim como se cometem crimes quando o movimento do ESPÍRITO é vicioso e se atira insolente e turbulento, e se cometem infâmias quando o afeto da alma, fonte dos prazeres carnais, é imoderado, assim os erros e falsas opiniões contaminam a vida se a alma racional está viciada, como estava a minha então. Ignorava que ela deveria ser ilustrada por outra luz para participar da verdade, por não ser da mesma essência da verdade, porque tu, Senhor, alumiarás minha lâmpada; tu, meu Deus, iluminarás minhas trevas, e todos participamos de tua plenitude, porque és a luz verdadeira que ilumina a todo homem que vem a este mundo, e porque em ti não há mudança nem a momentânea obscuridade. Confissões IV, XV

Eu não imaginava mais que formas corpóreas; carne, acusava a carne; ESPÍRITO errante, não conseguia voltar para ti, nem em mim, nem nos corpos; não eram sugeridas por tua verdade, mas imaginadas por minha vaidade, de acordo com os corpos. E dizia aos pequeninos teus fiéis concidadãos, dos quais eu, ignaro, ainda exilado, dizia-lhes eu, tagarela inepto: “Por que a alma, criatura de Deus, se engana?” Mas não queria que dissessem: “E por que Deus se engana?” E defendia antes que tua substância imutável era obrigada a errar, para não confessar que a minha, mutável, se desencaminhara espontaneamente, ou que era castigada pelo erro. Confissões IV, XV

Mas, quem pediu a esse Manés que escrevesse sobre coisas cujo conhecimento não é necessário à piedade? Tu disseste ao homem: Vê que a piedade é a sabedoria. Manés podia muito bem ignorar essa piedade ainda que fosse muito instruído nas ciências profanas. Mas, como não as conhecia, e se atrevia desavergonhadamente a ensiná-las, de nenhum modo conhecia a piedade. Pois certamente é vaidade alardear conhecimentos humanos, mesmo verdadeiros, e é piedade confessar-te a ti. Manés, afastando-se dessa regra, falou tanto sobre essas coisas que foi convencido de sua ignorância pelos que as conhecem bem. Donde se viu-se claramente o crédito que merecia em matérias mais obscuras. Ele não queria ser pouco estimado; empenhou-se em convencer aos demais que tinha em si, pessoalmente, e na plenitude de seu poder, o ESPÍRITO Santo, que consola e enriquece teus fiéis. Surpreendido em erro ao falar do céu, das estrelas, e do curso do sol e da lua, embora tais coisas não pertençam à religião, claramente deixou ver ser sacrílego seu atrevimento ao ensinar coisas que ignorava e também falsas, e isso com tão insano orgulho a ponto de atribuí-las à pretensa divindade de sua pessoa. Confissões V, V

Quanto a Manés, que se atreveu a se fazer de doutor, de mestre, de guia e cabeça daqueles a quem convertera, de tal forma que os que o seguiam acreditassem seguir não um homem qualquer, mas teu ESPÍRITO Santo, quem não julgaria que tão rematada loucura, uma vez demonstrada sua falácia, deveria ser detestada e afastada para bem longe? Confissões V, V

Durante os quase nove anos em que meu ESPÍRITO errante deu ouvidos aos maniqueus, esperei ansiosamente a vinda de Fausto. Os demais adeptos, com os quais me encontrava casualmente, embaraçados com as objeções que eu lhes fazia, remetiam-me a ele que, à sua chegada, com uma simples entrevista resolveria facilmente todas aquelas dificuldades, e ainda outras maiores que me ocorressem, de maneira claríssima. Confissões V, VI

Minha eloquência não é suficiente para descrever o grande amor que me dedicava, e a que ponto seus cuidados para me gerar em ESPÍRITO eram piores que os que suportava quando me concebeu pela carne. Confissões V, IX

Daqui se gerou também minha crença de que o mal tivesse substância, também corpórea, massa negra e disforme, ora espessa — a que chamavam terra — ora tênue e sutil, como o ar, a qual julgava ser um ESPÍRITO maligno que investia sobre a terra. E visto que minha piedade, por pouca que fosse me obrigava a pensar que um Deus bom não podia criar nenhuma natureza má, eu imaginava duas substâncias antagônicas, ambas infinitas, a do mal um pouco menor, a do bem um pouco maior; e deste princípio pestilento originavam-se as demais blasfêmias. Com efeito, quando meu ESPÍRITO se esforçava por voltar à católica, era rechaçado porque minha ideia de católica não era correta. E me parecia ser mais piedoso, ó Deus, a quem louvam em mim tuas misericórdias, julgar-te infinito por todas as partes, com exceção de um aspecto, a substância do mal, onde era forçoso reconhecer teus limites, do que julgar-te limitado por todas as partes pelas formas do corpo humano. Confissões V, X

Também tinha como melhor admitir que não havias criado nenhum mal — o qual aparecia à minha ignorância não só como substância, mas como substância corpórea, por eu não poder conceber o ESPÍRITO senão como corpo sutil difundido pelos espaços — do que crer que a natureza do mal, tal como a imaginava, procedesse de ti. Confissões V, X

Esse homem de Deus recebeu-me paternalmente, e se interessou muito por minha viagem, como bispo. Comecei a amá-lo; a princípio, não como mestre da verdade, que eu desesperava de achar em tua Igreja, mas pela sua amabilidade para comigo. Ouvia-o atentamente quando pregava ao povo, não com ESPÍRITO adequado, mas como se quisesse sondar sua eloquência, para ver se correspondia à sua fama, ou se era maior ou menor que a que se dizia; ficava suspenso das suas palavras, mas indiferente ao conteúdo, coisa que eu até desprezava. Deleitava-me com a suavidade dos sermões, os quais, embora mais eruditos que os de Fausto, eram contudo, menos alegres e envolventes no estilo. Quanto à substância de tais sermões não havia comparação, pois Fausto se perdia por entre as fábulas dos maniqueus, e Ambrosio ensinava claramente a mais sã doutrina da salvação. Mas a salvação anda longe dos pecadores, tal como eu era então. Todavia, insensivelmente e sem o saber, ia-me aproximando dela. Confissões V, XIII

Não cuidava eu de aprender o que dizia, interessado apenas em como o dizia — era este gosto frívolo o único que ainda permanecia em mim, perdidas já as esperanças de que se abrisse para o homem o caminho para ti. Todavia, infiltravam-se em meu ESPÍRITO, juntamente com as palavras que me agradavam, as coisas que desprezava. Já não me era possível discernir umas das outras, e assim, ao abrir meu coração à sua eloquência, nele entrava ao mesmo tempo e aos poucos, a verdade. Confissões V, XIV

Apliquei então todas as forças de meu ESPÍRITO para ver se podia de algum modo, com argumentos decisivos, convencer de falsidade os maniqueus. A verdade é que se eu então tivesse podido conceber uma substância espiritual, imediatamente todas as invenções daqueles se esvaeceriam e seriam arrancadas de minha alma. Mas não podia. Confissões V, XIV

É que seu ESPÍRITO não era dominado pela embriaguez, nem o amor do vinho a incitava ao ódio da verdade, como acontece a muitos homens e mulheres, que ao ouvir o cântico da sobriedade, sentem a mesma repulsa que os ébrios diante de um copo d’água. Mas ela, ao trazer as cestas com as oferendas usuais para serem provadas e repartidas, não bebia mais que um pequeno copo de vinho, temperado segundo seu paladar bastante sóbrio e condizente com sua dignidade. E se eram muitos os sepulcros que devia honrar desse modo, levava sempre o mesmo copo, usando-o para todos, de modo que o vinho não só estava muito aguado, mas até quente. Confissões VI, II

Na oração, eu ainda não implorava o teu socorro, mas meu ESPÍRITO achava-se ocupado em investigar e inquieto por discutir. Considerava ao próprio Ambrósio como homem feliz aos olhos do mundo, vendo-o tão honrado pelas mais altas autoridades. Somente seu celibato me parecia difícil. Mas eu não podia aquilatar, por nunca as ter experimentado, as esperanças que o animavam, nem a luta que tinha de travar contra as tentações de sua alta posição; nem conhecia os consolos na adversidade, nem os saborosos deleites do interior do seu coração quando ruminava teu alimento. Ele, por sua vez, desconhecia minha inquietação e o abismo em que estava para cair, porque não lhe podia perguntar, como desejava, o que queria. Uma multidão de homens de negócios, a quem ele acudia nas dificuldades, impediam-me de o ouvir ou de lhe falar. Confissões VI, III

No bem pouco tempo que lhe deixavam livre, dedicava-se a reparar as forças do corpo com o alimento necessário, ou as do ESPÍRITO, com a leitura. Quando lia, seus olhos percorriam as páginas e seu ESPÍRITO penetrava-lhes o sentido, mas sua voz e sua língua repousavam. Confissões VI, III

Muitas vezes, estando eu presente — pois ninguém estava proibido de entrar, nem era costume anunciar quem se apresentava — vi-o ler em silêncio, e nunca de outra maneira. E ali ficava eu por muito tempo calado — pois, quem se atreveria molestar um homem tão atento? — e por fim me afastava. Conjeturava eu que nos curtos momentos que encontrava para repousar o ESPÍRITO, livre do tumulto dos negócios alheios, não queria que o ocupassem com outra coisa. Lia em silêncio (era comum naqueles tempos ler em voz alta, tanto pela dificuldade dos textos como pela escassez dos livros, muitas vezes lidos em comum), talvez para evitar que algum ouvinte, suspenso e atento à leitura, encontrando alguma passagem obscura, pedisse explicações, ou o obrigasse a dissertar sobre questões difíceis. Gastaria o tempo em tais coisas, e impedido de ler todos os livros que desejava, embora fosse mais provável que lesse em silêncio para poupar a voz, que facilmente lhe enrouquecia. Confissões VI, III

Também me alegrava de que as Antigas Escrituras da lei e os profetas já não me fossem propostas na interpretação anterior, em que me pareciam absurdas, quando eu acusava teus santos de pensamentos que nunca haviam tido. Alegrava-me ouvir a Ambrósio dizer muitas vezes em seus sermões ao povo, recomendando com muito zelo a verdade: a letra mata e o ESPÍRITO vivifica. E, levantando o véu místico, revelava-me o significado espiritual de passagens que, segundo a letra, pareciam ensinar um erro. Nada dizia que me chocasse, embora eu ainda ignorasse se ele dizia a verdade. Confissões VI, IV

É verdade que poderia sarar pela crença, e assim, purificado pela o olhar de meu ESPÍRITO, pudesse dirigir-se de algum modo à tua verdade, sempre imutável e indefectível. Mas, como sói acontecer a quem caiu nas mãos de um médico ruim, e que depois receia as mãos de um bom, assim me sucedia quanto à saúde de minha alma que, não podendo sarar senão pela , recusava-se a sarar por temor de crer, novamente, em falsidades. Minha alma resistia às tuas mãos, ó meu Deus, que preparaste o remédio da , e o derramaste sobre as enfermidades da terra, dando-lhe tanta autoridade e eficácia. Confissões VI, IV

Depois, com suavidade e misericórdia, começaste, Senhor, a cuidar e à preparar aos poucos o meu coração, e foi aceitando tudo o que eu acreditava sem o ter visto, e a cuja realização não presenciara. Tantos fatos da história dos povos, tantas notícias sobre lugares e cidades que não vira, tudo o que aceitava acreditando em amigos, em médicos e em outras pessoas que, se não as acreditássemos, não poderíamos dar um passo na vida. E, sobretudo, que inabalável eu tinha em ser filho de meus pais, coisa que não poderia saber sem prestar no que ouvia. Então me convenceste de que os dignos de censura não são os que acreditam em teus livros, cuja autoridade estabeleceste entre quase todos os povos, mas o que não creem neles. E eu não devia dar ouvidos ao que talvez me dissessem: “Como sabes que esses livros foram dados aos homens pelo ESPÍRITO de Deus, único e verdadeiro?” Ora, era precisamente isto o que eu devia crer, porque nenhuma objeção caluniosa ou agressiva, das que eu havia lido nos escritos contraditórios dos filósofos, nunca conseguiram arrancar-me a certeza de tua existência, embora ignorasse o que eras, e a certeza de que o governo das coisas humanas está em tuas mãos. Confissões VI, V

“Mas quando então, visitar os amigos poderosos, de cujos favores necessito? Quando preparar as lições que os alunos me pagam? Quando reparar as forças do ESPÍRITO, descansando em algo aprazível?” Confissões VI, XI

Contudo, nada revelaste à minha mãe que, a meu pedido e por seu desejo, te suplicava com forte clamor de coração, todos os dias que lhe desse alguma visão sobre meu futuro matrimonio. Via, sim, algumas coisas vãs e fantásticas, que o ESPÍRITO humano engendra quando preocupado. Ela me relatava, sem a confiança que costumava dar às visões que lhe enviavas, mas com desprezo. Dizia que distinguia, por um vago discernimento que não podia explicar com palavras, a diferença que havia entre tuas revelações e os sonhos de sua alma. Confissões VI, XIII

Assim, pois, com o coração pesado, sem consciência clara de mim mesmo, considerava como um perfeito nada tudo o que não tivesse extensão por determinado espaço, ou não se difundisse ou pudesse assumir um desses estados. As formas percorridas por meus olhos eram os moldes das imagens pelas quais andava meu ESPÍRITO; não via que a mesma faculdade com que formava essas imagens não era da mesma natureza que elas, não obstante não pudesse formá-las se ela não fosse por sua vez algo grande. Confissões VII, I

Mas era incapaz de entendê-lo com clareza. E esforçando-me por afastar desse abismo os olhos do meu ESPÍRITO, nele me precipitava de novo, e tentando reiteradamente fugir dele, sempre voltava a recair. Confissões VII, III

Salvas e fortemente arraigadas estas verdades em meu ESPÍRITO, buscava eu ansiosamente a origem do mal. E que tormentos, como que de parto, eram aqueles de meu coração! Que gemidos, meu Deus! E ali estavam teus ouvidos atentos, e eu não o sabia. Quando, em silêncio, me esforçava em pacientes buscas, altos clamores se elevavam até tua misericórdia: eram as silenciosas angústias de minha alma. Confissões VII, VII

Ela não estava sobre meu ESPÍRITO como o azeite sobre a água, como o céu sobre a terra, mas estava acima de mim porque me criou; eu lhe era inferior por ter sido criado por ela. Quem conhece a verdade conhece a luz, e quem a conhece, conhece a eternidade. O amor a conhece! Ó eterna verdade, amor verdadeiro, amada eternidade! Tu és meu Deus. Por ti suspiro dia e noite. Quando te conheci pela primeira vez, ergueste-me para me fazer ver que havia algo para ser visto, mas que eu ainda era incapaz de ver. E deslumbraste a fraqueza de minha vista com o fulgor do teu brilho, e eu estremeci de amor e temor. Pareceu-me estar longe de ti numa região desconhecida, como se ouvira tua voz do alto: “Sou o pão dos fortes; cresce, e comer-me-ás. Não me transformarás em ti, como fazes com o alimento da tua carne, mas tu serás mudado em mim”. Confissões VII, X

Admirava-me de já te amar, e não a um fantasma em teu lugar, mas não era estável no gozo de meu Deus. Era arrebatado a ti por tua beleza, e logo afastado de ti pelo meu peso, que me precipitava sobre a terra a gemer. Meu peso eram os hábitos carnais. Mas tua lembrança me acompanhava. Nem absolutamente duvidava da existência de um ser a quem eu devia me unir, embora não estivesse apto para esta união, porque o corpo, que se corrompe, sobrecarrega a alma, e a morada terrena oprime o ESPÍRITO carregado de cuidados. Estava certíssimo de que tuas belezas invisíveis se descobrem à inteligência desde a criação do universo, por meio de tuas obras; bem como teu poder eterno e tua divindade. Confissões VII, XVII

Buscava saber de onde me vinha minha faculdade de apreciar a beleza dos corpos — quer celestes, quer terrenos — e o que me permitia julgar rápida e cabalmente das coisas mutáveis quando dizia: “Isto deve ser assim, aquilo não deve ser assim”. Procurando a origem de minha faculdade de julgar quando assim julgava, achei a eternidade imutável e verdadeira, acima de meu ESPÍRITO mutável. Confissões VII, XVII

Por isso lancei-me avidamente sobre as veneráveis escrituras inspiradas por teu ESPÍRITO, sobretudo ao do apóstolo Paulo. E esvaeceram em mim aquelas dificuldades nas quais julguei descobrir contradições entre ele e seu texto, em desacordo com os testemunhos da Lei e dos Profetas. Compreendi a unidade daqueles castos escritos, e aprendi a me alegrar com tremor. Confissões VII, XXI

Porque, embora o homem se deleite com a lei de Deus, segundo o homem interior, que fará dessa outra lei que luta em seus membros contra a lei de seu ESPÍRITO, e que o prende sob a lei do pecado, impressa em seus membros? Porque tu és justo, Senhor; nós, porém, pecamos, cometemos iniquidades; procedemos como ímpios, e tua mão se fez pesada sobre nós, e é com justiça que fomos entregues ao pecador antigo, ao príncipe da morte, porque ele persuadiu nossa vontade a se conformar à sua, que não quis persistir com tua verdade. Confissões VII, XXI

Nada disso dizem os livros platônicos. Nem têm naquelas páginas esse sentimento de piedade, as lágrimas da confissão, esse teu sacrifício, a alma abatida, esse coração contrito e humilhado, nem a salvação de teu povo, nem a cidade prometida, nem o penhor do ESPÍRITO Santo, nem o cálice de nossa redenção. Confissões VII, XXI

Entendi, por experiência própria, o que havia lido: a carne tem desejos contra o ESPÍRITO, e o ESPÍRITO contra a carne. Eu vivia ao mesmo tempo a ambos, embora mais o que aprovava em mim do que o que em mim desaprovava. Com efeito, nesta última parte de mim eu era passivo e constrangido, mais do que ativo e livre. Confissões VIII, V

Em vão me deleitava em tua lei, segundo o homem interior, porque em meus membros outra lei combatia a lei de meu ESPÍRITO, mantendo-me cativo sob a lei do pecado que estavas em meus membros. Com efeito, a lei do pecado é a violência do hábito, pelo qual a alma é arrastada e presa, mesmo contra sua vontade, merecidamente porém, pois se deixa arrastar por vontade própria. Pobre de mim! Quem poderia libertar-me deste corpo de morte senão tua graça, por Cristo, nosso Senhor? Confissões VIII, V

Não foi, pois, o interesse que moveu a Nebrídio — que poderia auferir bem mais vantagens se ensinasse as letras — mas, como grande amigo que era, não quis recusar nosso pedido em obsequio à amizade. Agia, porém, com muita prudência, evitando fazer-se conhecido dos poderosos deste mundo, para evitar as inquietações do ESPÍRITO que ele queria manter o mais possível livre e desocupado para investigar, ler ou ouvir algo sobre a sabedoria. Confissões VIII, VI

Caminhando a esmo, estes últimos deram com uma cabana, habitada por alguns servos teus, pobres de ESPÍRITO, a quem pertence o reino dos céus. Lá encontraram um exemplar manuscrito da Vida de Santo Antão. Um deles começou a lê-lo, e, admirado e arrebatado cogitou, enquanto lia, em abraçar aquele gênero de vida, abandonando o serviço do mundo, para servir unicamente a ti. Confissões VIII, VI

Estes dois eram os chamados agentes de negócios do imperador. De repente, tomado de amor santo e casto pudor, irado consigo mesmo, olha para o companheiro, e lhe diz: “Dize-me, te peço, onde pretendemos chegar com todos estes nossos trabalhos? Que buscamos? Qual a finalidade do nosso labor? Podemos aspirar mais no palácio do que ser amigos do imperador? E mesmo nisto, quanta incerteza, quantos perigos! E quantos perigos teremos de passar para chegar a um perigo ainda maior? E quando chegaremos a isso? Mas, se eu quiser ser amigo de Deus, posso sê-lo agora mesmo”. Disse essas palavras, e exaltado pela gestação da nova vida voltou os olhos para o livro; ao ler, transformava-se interiormente, o que só tu sabias, e seu ESPÍRITO se despia do mundo, como logo se evidenciou. Confissões VIII, VI

Então, em meio àquela luta interior que eu travava violentamente contra mim mesmo no recesso do meu coração, perturbado no rosto e no ESPÍRITO, volto-me para Alípio exclamando: “Que tanto nos aflige? O que significa isto que ouviste? Levantam-se os ignorantes e arrebatam o céu, e nós, com todo nosso saber insensato, nos revolvemos na carne e no sangue! Acaso temos vergonha de segui-los porque se nos adiantaram, e não temos vergonha de não os seguir?” Confissões VIII, VIII

Foi mais ou menos o que eu lhe disse, e dele me afastei sob forte emoção. Alípio me olhava atônito em silêncio. Eu não falava como de costume, e muito mais que as palavras, minha fronte, minhas fazes, meus olhos, minha cor e o tom de minha voz denunciavam meu estado de ESPÍRITO. Confissões VIII, VIII

A alma dá ordens ao corpo, e este obedece imediatamente; a alma dá ordens a si mesma, e resiste. Ordena a alma à mão que se mova, e é tal sua presteza, que mal se pode distinguir a ordem da execução; não obstante, a alma é ESPÍRITO e a mão é corpo. A alma dá a si mesma a ordem de querer, uma não se distingue da outra, e contudo, ela não obedece. De onde este prodígio? E qual sua causa? Confissões VIII, XI

Desapareçam de tua presença, ó meu Deus, como os vãos faladores e sedutores do ESPÍRITO, aqueles que, ao observarem a dupla deliberação da vontade, concluem que temos duas almas de naturezas opostas, uma boa, outra má. Confissões VIII, X

Essa luta se desenrolava no fundo do meu ESPÍRITO, de mim contra mim mesmo. Alípio, sem sair de perto de mim, aguardava em silêncio o desfecho de minha insólita agitação. Confissões VIII, XI

Tinhas alvejado nosso coração com as setas do teu amor, e levávamos tuas palavras cravadas em nossas entranhas; os exemplos de teus servos, que das trevas trouxeram para a luz, e da morte para a vida, ardiam no fundo de nosso ESPÍRITO em uma espécie de fogueira, que inflamava e consumia nosso torpor, para que não mais nos inclinássemos para as baixezas. Confissões IX, II

Estremeci de medo, ao mesmo tempo me abrasei de alegre esperança em tua misericórdia, ó Pai! E todos estes sentimentos saíam pelos meus olhos e pela voz quando, dirigindo-se para nós, teu ESPÍRITO de bondade nos dizia: Filhos dos homens, até quando sereis duros de coração? Por que amais a vaidade e buscais a mentira? Confissões IX, IV

Também eu tinha amado a vaidade e buscado a mentira. Mas tu, Senhor, já havias glorificado teu eleito, ressuscitando-o de entre os mortos e colocando-o à tua direita, de onde haveria de nos enviar, segundo a promessa, o Paracleto, o ESPÍRITO da Verdade. O Senhor estava glorificado, ressuscitando de entre os mortos, e subindo aos céus. Antes o ESPÍRITO ainda não tinha sido dado, porque Jesus ainda não tinha sido glorificado. Confissões IX, IV

Nesse meio estava minha mãe, tua serva, uma das primeiras no zelo dessas inquietações e vigílias, não vivendo senão de orações. Nós, apensar de ainda frios, sem o calor de teu ESPÍRITO, nos sentíamos comovidos pela perturbação e consternação da cidade. Confissões IX, VII

E subimos ainda mais em ESPÍRITO, meditando, celebrando e admirando tuas obras, e chegamos até o íntimo de nossas almas. E fomos além delas, para alcançar a região da abundância inesgotável, onde apascentas eternamente a Israel com o alimento da verdade, lá onde a vida é a própria Sabedoria, por quem foram criadas todas as coisas, as que já existem e as vindouras, sem que ela própria se crie a si mesma, pois existe agora como antes existiu e como sempre existirá. Antes, nela não há nem passado, nem futuro: ela apenas é, porque é eterna; mas ter sido ou haver de ser não é próprio do ser eterno. Confissões IX, X

E enquanto assim falávamos dessa Sabedoria e por ela suspirávamos, chegamos a tocá-la momentaneamente com supremo ímpeto de nosso coração; e, suspirando, deixando ali atadas as primícias de nosso ESPÍRITO, e voltamos ao ruído vazio de nossos lábios, onde nasce e morre a palavra humana, em nada semelhante a teu Verbo, Senhor nosso, que subsiste em si sem envelhecer, renovando todas as coisas! E dizíamos: Suponhamos que se calasse o tumulto da carne, as imagens da terra, da água, do ar e até dos céus; e que a própria alma se calasse, e se elevasse sobre si mesma não pensando mais em si; se calassem os sonhos e revelações imaginarias e, por fim, se calasse por completo toda língua, todo sinal, e tudo o que é fugaz — uma vez que todas as coisas dizem a quem sabe ouvi-las: Não fizemos a nós mesmas; fez-nos o que permanece eternamente — se, dito isto, todas se calassem, atentas a seu Criador; e se só ele falasse, não por suas obras, mas por si mesmo, de modo que ouvíssemos sua palavra, não por uma língua material, nem pela voz de um anjo, nem pelo ruído do realidade, e supondo que essa visão se prolongasse, que todas as outras visões cessassem, e unicamente esta arrebatasse a alma de seu contemplador, e a absorvesse e abismasse em íntimas delícias, de modo que a vida eterna seja semelhante a este momento de intuição que nos fez suspirar, não seria isto a realização do entrar em gozo de teu Senhor? Mas quando se dará isto? Por acaso quando todos ressuscitarmos? Mas então não seremos todos transformados? Confissões IX, X

Agora, com a ferida do meu coração já sanada, na qual se podia censurar um afeto muito carnal, derramo diante de ti, meu Deus, por tua serva, outra espécie de lágrimas, bem diferentes, aquelas que brotam do ESPÍRITO comovido à vista dos perigos que corre toda alma que morre em Adão. É verdade que minha mãe, vivificada em Cristo, antes mesmo de ser livre dos laços da carne, viveu de tal modo, que teu nome era louvado em sua e em seus costumes. Contudo, não me atrevo a dizer que desde que a regeneraste no batismo não saiu de sua boca nenhuma palavra contrária à tua lei. Porque a Verdade, que é teu Filho, disse: “Quem chamar a seu irmão de louco será réu do fogo da geena”. Ai da vida dos homens, por mais louvável que seja, se tu a julgares sem a tua misericórdia! Mas porque não examinas nossos pecados com rigor, confiadamente esperamos tomar lugar a teu lado. Quem enumera diante de ti seus próprios méritos, que mais expõe senão teus dons? Oh! Se os homens se reconhecessem como homens! Se quem se glorifica se glorificasse no Senhor! Por isso, Deus de meu coração, minha vida e minha gloria, esquecendo por um momento as boas ações de minha mãe, pelas quais te dou graças com alegria, peço-te agora perdão por seus pecados. Ouve-me pelos méritos daquele que é o médico de nossas feridas, que foi suspenso do madeiro da cruz e que, sentado agora à tua direita, intercede por nós junto a ti. Eu sei que ela sempre agiu com misericórdia, e que perdoou de coração todas as faltas contra ela cometidas; perdoa-lhe também suas dívidas, se algumas contraiu em tantos anos que se seguiram ao batismo. Perdoa-lhe, Senhor, perdoa-lhe, te suplico, e não entres em juízo com ela. Confissões IX, XIII

Que tenho eu que ver com os homens, para que me ouçam as confissões, como se eles pudessem curar as minhas enfermidades? São curiosos para conhecer a vida alheia, mas indolentes para corrigir a própria! Por que desejam ouvir de mim quem sou, quando não se importam em saber de ti o que são? E como podem saber, ao me ouvirem falar de mim mesmo, se lhes digo a verdade, uma vez que homem algum sabe o que se passa no outro, senão o ESPÍRITO do homem, que nele, habita? Mas, se ouvissem a ti falar deles, não poderiam dizer: “O Senhor mente”. E o que é ouvir-te falar de si, senão conhecerem-se a si mesmos? E quem, conhecendo a si mesmo, pode dizer “é falso”, sem mentir? Confissões X, III

És tu, Senhor, quem me julga, porque ninguém conhece o que se passa no homem, a não ser o seu ESPÍRITO que nele está, todavia há no homem coisas que até o ESPÍRITO que nele habita ignora. Mas tu, Senhor, que o criaste, conheces todas as coisas. E eu, embora diante de ti me despreze e me considere como terra e cinza, sei algo de ti que ignoro de mim mesmo. É certo que agora vemos por espelho, em enigmas, e não face a face. Por isso, enquanto peregrino longe de ti, estou mais presente a mim do que a ti. Sei que em nada podes ser prejudicado, mas ignoro a que tentações posso resistir e a quais não posso. Todavia há esperança, pois és fiel, e não permites que sejamos tentados além de nossas forças; com a tentação, dás também meios para suportar, para que possamos resistir. Confissões X, V

Quando ali penetro, convoco todas as lembranças que quero. Algumas se apresentam de imediato, outras só após uma busca mais demorada, como se devessem ser extraídas de receptáculos mais recônditos. Outras irrompem em turbilhão e, quando se procura outra coisa, se interpõem como a dizer: “Não seremos nós que procuras?” Eu as afasto com a mão do ESPÍRITO da frente da memória, até que se esclareça o que quero, surgindo do esconderijo para a vista. Confissões X, VIII

Grande é realmente o poder da memória, prodigiosamente grande, meu Deus! É um santuário amplo e infinito. Quem o pôde sondar até suas profundezas? É um poder próprio de meu ESPÍRITO, que pertence à minha natureza; mas eu não sou capaz de compreender inteiramente o que sou. Será o ESPÍRITO demasiado estreito para se conter a si mesmo? Onde, então, está o que ele não pode conter de si? Estaria fora dele, e não nele? Como então não o contém? Confissões X, VIII

Ouço dizer que há três gêneros de questões a saber: se uma coisa existe, qual a sua natureza e qual sua qualidade — retenho a imagem dos sons de que se compõem estas palavras, e sei que estes atravessaram o ar como ruído, e já não existem. Mas as realidades significadas por tais palavras, eu jamais atingi com nenhum sentido do corpo, nem as vi em nenhuma parte fora de meu ESPÍRITO; o que gravei na minha memória não são suas imagens, mas as próprias realidades. Que me digam, se o puderem, por onde entraram em mim! percorro em vão todas as portas do meu corpo, e não descubro por onde poderiam ter entrado. Com efeito: os olhos dizem: “Se são coloridas, fomos nós que as transmitimos.” — Os ouvidos dizem: “Se eram sonoras, foram por nós comunicadas”. — As narinas dizem: “Se tinham cheiro, passaram por aqui”. — E o gosto diz: “Se não têm sabor, nada me perguntem”. — O tato declara: “Se não são corpóreas, eu não as toquei, e portanto não poderia revelá-las” Confissões X, X

De onde, então, e por onde entraram em minha memória? Ignoro-o. Aprendi-as não dando crédito ao testemunho alheio, mas as reconheci em mim e aprovei-as como verdadeiras; confias a meu ESPÍRITO como em depósito, de onde poderei tirá-las quando quiser. Estavam pois ali, antes mesmo que eu as aprendesse, mas não na memória. E onde estavam então? E porque, ao serem mencionadas, eu as reconheci e disse: “É assim mesmo, é verdade” — senão porque já estavam em minha memória? Mas tão escondidas e sepultadas em tão secretos recessos, que se alguém não as arrancasse dali com suas perguntas, talvez eu nem pudesse concebê-las. Confissões X, X

Por isso descobrimos que adquirir tais noções — cujas imagens não atingimos por meio dos sentidos mas que percebemos em nós, sem o auxílio de imagens, tais como são em si mesmas, nada mais é do que coligir com o pensamento os elementos esparsos na memória e, pela reflexão, obrigá-los a estarem sempre disponíveis à memória, onde antes se ocultavam em desordem e abandono, de modo que se apresentem sem dificuldade ao chamado do nosso ESPÍRITO. E quantas noções deste tipo não encerra minha memória, já descobertas e, como disse, postas como que à mão; eis o que chamamos de “aprender” e “saber”. Se porém deixo de as recordar por uns tempos, de tal modo submergem e se dispersam em seus profundos esconderijos, que é preciso reuni-las uma segunda vez, como se fossem novas (cogente) — pois não têm outra habitação — e juntá-las de novo para que possam ser objeto do saber; isto é: preciso tirá-las de sua condição de dispersão e juntá-las novamente. Daí a palavra cogitare, porque cogo e cogito são como ago e agito, e facio, facito. Contudo, a inteligência reivindicou essa palavra (cogito) para si, de modo que essa operação de coligir, de reunir no ESPÍRITO, e não em outra parte, é propriamente o que se chama pensar (cogitare). Confissões X, XI

Vi linhas traçadas por artistas, finas como um fio de aranha. Mas as linhas materiais não são a imagem das que vi com meus olhos carnais. Para reconhecê-las não há necessidade alguma de se pensar em um corpo qualquer, pois, é no ESPÍRITO que as reconhecemos. Confissões X, XII

Porém, aqui o ESPÍRITO é a própria memória. Quando confiamos uma tarefa a alguém, dizemos: “Não o guardei no ESPÍRITO”, “fugiu-me do ESPÍRITO”. É, portanto, a memória que chamamos de ESPÍRITO. Sendo assim, por que ao evocar com alegria uma tristeza passada, meu ESPÍRITO sente alegria e minha memória, tristeza? Se meu ESPÍRITO se alegra com a alegria que tem em si, por que a memória não se entristece com a tristeza, que também tem em si? Seria a memória estranha ao ESPÍRITO? Quem ousará afirmá-lo? Sem dúvida a memória é como o estômago da alma, e a alegria e a tristeza são como alimentos, doce ou amargo; quando tais emoções são confiadas à memória, depois de passarem, digamos, por esse estômago, podem ali serem guardadas, mas já perderam o sabor. Seria ridículo comparar emoções e alimento como semelhantes. Contudo, elas não são totalmente diferentes. Confissões X, XIV

Mas, Senhor, esgota-me esta busca e é, portanto, sobre mim mesmo que me canso; tornei-me para mim mesmo uma terra de dificuldades e árduos labores. Por que não exploro agora as regiões do firmamento, nem meço as distâncias dos astros, nem busco as leis do equilíbrio da terra. Sou eu que me lembro, eu, o meu ESPÍRITO. Não é de admirar que esteja longe de mim tudo o que não sou eu. Todavia, que há mais perto de mim do que eu mesmo? No entanto, é-me impossível compreender a natureza de minha memória, sem a qual eu nem poderia pronunciar meu próprio nome. Confissões X, XVI

Que direi então, desde que tenho a certeza que lembro do esquecimento? Diria talvez que não está em minha memória o que recordo? Ou talvez direi que o esquecimento está em minha memória, para que não o esqueça? Ambas hipóteses são grandes absurdos. Vejamos uma terceira hipótese: poderei eu afirmar que minha memória retém a imagem do esquecimento, e não o esquecimento em si, quando dele me lembro? Com que fundamento, pois, poderei dizê-lo, se para que se grave na memória a imagem de um objeto, é necessário que este esteja presente antes, de onde emana a imagem a ser gravada? É assim que lembro de Cartago, e assim de todos os outros lugares por que passei; assim me lembro do rosto dos homens que vi e das coisas que meus sentidos me deram a conhecer; assim me lembro ainda da dor física, coisas cujas imagens a memória fixou quando estavam presentes, para que eu as pudesse contemplar e repassar em ESPÍRITO, quando eu as evocasse na sua ausência. Confissões X, XVI

Grande é o poder da memória! E ela tem algo de terrível, meu Deus, em sua complexidade infinita e profunda. E isto é o ESPÍRITO, e isto sou eu mesmo. Que sou, pois meu Deus? Qual a minha natureza? Vida vária e multiforme, de amplidão imensa. Eis-me em minha memória, em seus campos, antros, inumeráveis cavernas, tudo isso infinitamente cheio de toda espécie de coisas, também inumeráveis. Umas gravadas em imagens, como os corpos; outras, estão sob a forma de não sei que noções e sinais, como os afetos da alma, que a memória conserva quando a alma já não os sente, embora tudo o que está na memória esteja também no ESPÍRITO. Percorro em todas as direções este mundo interior, vou de um lado para outro, e nele me aprofundo o mais possível, sem encontrar-lhe os limites, tão grande é a vida que reside no homem mortal! Que hei de fazer, pois, meu Deus, minha verdadeira vida? Ultrapassarei também esta faculdade que se chama memória? Ultrapassa-la-ei para chegar a ti, doce luz? Que dizes? Confissões X, XVII

Subindo em ESPÍRITO a ti, que estás acima de mim, ultrapassarei também esta minha força, que se chama memória, pois quero atingir-te onde és acessível, e unir-me a ti por onde possa fazê-lo. Confissões X, XVII

E quando a própria memória perde uma lembrança, como acontece quando nos esquecemos de algo e procuramos recordá-la, o que se passa? Onde, afinal, a procuramos senão na própria memória? E se esta, por acaso, nos oferece uma coisa por outra, a repelimos até que apareça o que buscamos. E assim que aparece dizemos: “É isto”. E assim não diríamos se não a reconhecêssemos, e não a reconheceríamos se dela não houvesse registro. É certo, portanto, que já a havíamos esquecido. Ou será que ela não se apagara totalmente de nossa memória, por meio da parte que nos ficou impressa procuramos a outra? A memória, nesse caso, teria ciência de não poder, como de ordinário, fornecer a lembrança em seu conjunto e, mutilada, reclamaria e parte faltante. É o que sucede quando vemos uma pessoa conhecida, ou nela pensamos sem poder recordar seu nome. Se outro nome nos apresenta ao ESPÍRITO, não o associamos à tal pessoa; por isso o afastamos, até que se apresenta um que concorde com nossa representação habitual da pessoa. Confissões X, XIX

Poderemos então concluir que nem todos desejam ser felizes, pois há aqueles que não querem buscar em ti sua alegria, tu que és a única felicidade? Ou talvez todos a queiram, mas, como a carne combate contra o ESPÍRITO, e o ESPÍRITO contra a carne, e com isso se contentam. Confissões X, XXIII

Quando me recordei de ti, ultrapassei aquela região da memória que também os animais possuem, pois não te encontrei entre as imagens dos objetos corpóreos. E cheguei àquela parte onde depositei os afetos de minha alma, mas também aí não te encontrei. Cheguei à morada que meu próprio ESPÍRITO possui na memória — porque também o ESPÍRITO lembra de si mesmo — mas nem ali estavas. Isso porque não és imagem corpórea, nem afeto de ser vivo, como a alegria, a tristeza, o desejo, o temor, a lembrança, o esquecimento e outros semelhantes, e nem és meu próprio ESPÍRITO, porque és o Senhor e Deus do ESPÍRITO, e tudo isso é mutável, enquanto permaneces imutável e subsistes acima de todas as coisas, e te dignaste habitar em minha memória desde que te conheço. Confissões X, XXV

Espero que aperfeiçoes em mim tuas misericórdias, até que atinja a plenitude da paz de que gozarão em ti meu ESPÍRITO e meu corpo, quando a morte for absorvida pela vitória. Confissões X, XXX

Quanto à sedução dos perfumes, não me preocupo demais. Quando ausentes, não os procuro; quando presentes, não os recuso, mas estou sempre disposto a deles me abster. Pelo menos assim me parece, embora talvez me engane. Trevas deploráveis me envolvem, que me escondem minhas faculdades reais; por isso, quando meu ESPÍRITO indaga à respeito de suas forças, bem sabe que não pode confiar em si mesmo, por seu íntimo permanecer muitas vezes insondável, até que a experiência lho manifeste. Ninguém pois se deve ter seguro nesta vida, que é tentação perpétua. Pois. Como podemos nos tornar melhores, não aconteça de nos tornar piores. Nossa única esperança, nossa única confiança, nossa firme promessa é tua misericórdia. Confissões X, XXXII

Mas o prazer dos sentidos, que não deveria seduzir o ESPÍRITO, muitas vezes me engana. Confissões X, XXXIII

Também nós oramos e, não obstante, a Verdade nos diz: O Pai sabe do que haveis mister, antes mesmo de lho pedires. — Por isso manifestamos nosso amor por ti, confessando-te nossas misérias e tuas misericórdias para conosco, para que termines a nossa libertação que começaste, e para que deixemos de ser infelizes em nós para sermos felizes em ti. Pois nos chamaste para que fôssemos pobres de ESPÍRITO, mansos, penitentes, famintos e sedentos de justiça, misericordiosos, puros de coração e pacíficos. Confissões XI, I

Vê, meu Deus, de onde nasce meu desejo. Os ímpios contaram-me suas alegrias, mas esses prazeres não são como os proporcionados por tua lei. É ela que inspira meu desejo. Olha, ó Pai, olha, e vê, e aprova. Queira tua misericórdia que eu encontre graça diante de ti, e que os arcanos secretos de tuas palavras se abram a meu ESPÍRITO que bate às suas portas! Isso eu te suplico por nosso Senhor, Jesus Cristo, teu filho, aquele que está sentado à tua direita, o Filho do homem, a quem estabeleceste como mediador entre nós e ti. Por ele nos procuraste quanto não te procurávamos, e nos procuraste para que te buscássemos! Em nome de teu Verbo, por quem criaste todas as coisas, e a mim entre outras; de teu Filho unigênito, por quem chamaste à adoção o povo dos crentes, no qual também estou. Confissões XI, II

De que modo criaste o céu e a terra, e de que instrumento te serviste para levar a cabo tão grandiosa obra? Pois não procedeste como artesão, que forma um corpo de outro, conforme a concepção de seu ESPÍRITO, que tem o poder de exteriorizar a forma que vê em si mesmo com o olhar do ESPÍRITO. De onde lhe vem esse poder do ESPÍRITO, senão de ti, que o criaste? E essa forma, ele a impõe a uma matéria que preexistia, apta para ser transformada, como a terra, a pedra, a madeira, o outro e tantas outras substâncias. Confissões XI, V

Mas de onde proviriam essas coisas se não as tivesse criado? Criaste o corpo do artista, a alma que governa seus membros, a matéria que ele plasma, a inspiração que concebe e vê interiormente o que executará exteriormente. Deste-lhe os órgãos dos sentidos, intérpretes pelos quais materializa as intenções de sua alma; informam o ESPÍRITO do que fizeram, para que este consulte a verdade, o juiz interior, para saber se a obra é boa. Tudo isso te louva como criador de todas as coisas. Confissões XI, V

Os que assim falam não te compreendem ainda, ó Sabedoria de Deus, luz das inteligências; não compreendem ainda como é criado o que é criado por ti e em ti. Esforçam-se por saborear as coisas eternas, mas seu ESPÍRITO voa ainda sobre as realidades passadas e futuras. Quem poderá deter esse pensamento, quem o fixará por um momento, para que tenha um rápido vislumbre do esplendor da eternidade imutável, e a compare com os tempos impermanentes, para perceber que qualquer comparação é impossível? Então veria que a sucessão dos tempos não é feita senão de uma sequência infindável de instantes, que não podem ser simultâneos; que, pelo contrário, na eternidade, nada é sucessivo, tudo é presente, enquanto o tempo não pode ser de todo presente. Veria que todo o passado é repelido pelo futuro, que todo futuro segue o passado, que tanto o passado como o futuro tiram seu ser e seu curso daquele que é sempre presente. Quem poderá deter a inteligência do homem para que pare e veja como a eternidade imóvel, que não é futura nem passada, determina o futuro e o passado? Acaso poderá realizar isso minha mão? Ou esta minha língua, com a palavra, poderia realizar tal obra? Confissões XI, XI

Se algum ESPÍRITO leviano, vagando por tempos imaginários anteriores à criação, se admirar que o Deus Todo-Poderoso, tu, que criaste e conservas todas as coisas, ó autor do céu e da terra, tenha-te mantido inativo até o dia da criação, por séculos sem conta, que esse desperte e tome consciência do erra que gera sua admiração. Como, pois, poderiam transcorrer os séculos se tu, criador, ainda não os tinha criado? E poderia o tempo fluir se não existisse? E como poderiam os séculos passar, se jamais houvessem existido? Portanto, como és o criador de todos os tempos — se é que houve algum tempo antes da criação do céu e da terra — como se pode afirmar que ficaste ocioso? Pois também criaste esse mesmo tempo, e este não poderia passar antes que o criasses. Confissões XI, XIII

Pai, apenas pergunto, não estou afirmando; meu Deus, ajuda-me, dirige-me. Quem ousaria afirmar que não existe três tempos, como aprendemos na infância e como ensinamos às crianças, o passado, o presente e o futuro? será que só o presente existe, porque os demais, o passado e o futuro, não existem? Ou será que eles também existem, e então o presente provém de algum lugar oculto, quando de futuro se torna presente, e também se retira para outro esconderijo, quando de presente se torna passado? E os que predisseram o futuro, onde o viram, se ele ainda não existe? É impossível ver-se o que não existe. E os que narram o passado diriam mentiras se não vissem os acontecimentos com o ESPÍRITO. Ora, se esse passado não tivesse existência alguma, seria absolutamente impossível vê-lo. Por conseguinte, o futuro e o passado também existem. Confissões XI, XVII

Portanto, no lugar e no modo que estiverem, só podem existir como presentes. Quando relatamos acontecimentos verídicos do passado, o que vêm à nossa memória não são os fatos em si, que já deixaram de existir, mas as palavras que exprimem as imagens dos fatos, que, através de nossos sentidos, gravaram em nosso ESPÍRITO suas pegadas. Minha infância, por exemplo, que não existe mais, pertence a um passado que também desapareceu; mas quando eu a evoco e passo a relatá-la, vejo suas imagens no presente, imagens que ainda estão na minha memória. E a predição do futuro, meu Deus, seguiria um processo análogo? Os fatos que ainda não existem, serão representados antecipadamente em nosso ESPÍRITO como imagens já existentes? Eu o ignoro. O que sei é que habitualmente premeditamos nossas ações futuras, e que essa premeditação pertence ao presente, enquanto esta começará a existir, pois então não será mais futura, mas presente. Confissões XI, XVIII

Seja qual for a natureza desse misterioso pressentimento do futuro, o certo é que apenas se pode ver aquilo que existe. Ora, o que já existe não é futuro, mas presente. Quando se diz que se vê o futuro, o que se vê não são os fatos futuros em si, que ainda não existem porque são futuros, mas suas causas ou talvez sinais prognósticos, causas e sinais que já existem. Estes não são pois futuros, mas presentes para os que as veem, e é graças aos vaticínios que o futuro é concebido pelo ESPÍRITO e profetizado. Esses conceitos já existem, e os que predizem o futuro veem-nos presentes em si mesmos. Confissões XI, XVIII

Gostaria de apelar para um exemplo tomado entre os muitos possíveis. Vejo a aurora, e prognostico o nascimento do sol. O que vejo é presente, o que anuncio é futuro. Não o sol, que já existe, mas seu surgimento, que ainda não ocorreu. Contudo, se eu não tivesse uma imagem mental desse surgimento, como agora quando falo dele, ser-me-ia impossível a previsão. Mas essa aurora que vejo não é o nascimento do sol, embora o preceda; nem o é tampouco a imagem que trago em meu ESPÍRITO. As duas coisas estão presentes, eu as vejo, e assim posso predizer o que vai acontecer. O futuro, portanto, ainda não existe; se ainda não existe, não existe no agora; e se não existe não pode ser visto de modo algum, mas pode ser prognosticado pelos sinais presentes, que já existem e podem ser vistos. Confissões XI, XVIII

É em ti, meu ESPÍRITO, que meço o tempo. Não me objetes nada, pois é assim. Não te perturbes com as ondas desordenadas de tuas emoções. É em ti, digo, que meço o tempo. A impressão que em ti gravam as coisas em sua passagem, perduram ainda depois que os fatos passam. O que eu meço é esta impressão presente, e não as vibrações que a produziram e se foram. É ela que meço quando meço o tempo. Portanto, ou essa impressão é o tempo, ou eu não meço o tempo. Confissões XI, XXVII

Mas o futuro, que ainda não existe, como pode diminuir ou consumir-se? E o passado, que já não existe, como pode aumentar, a não se por existirem no ESPÍRITO, autor dessas três transformações: a espera, a atenção e a lembrança? O objeto de sua espera passa pela atenção e se transforma em lembrança. Confissões XI, XXVIII

De fato, quem ousará negar que o futuro ainda não existe? Todavia, a espera do futuro já está no ESPÍRITO. E quem poderá negar que o passado não mais existe? Contudo, a lembrança do passado ainda está no ESPÍRITO. Enfim, haverá alguém que negue que o presente carece de duração, porque é um instante que passa? No entanto, perdura a atenção, diante da qual o seu objeto presente continuamente se retira. O futuro, portanto, não é longo, porque não existe. Um futuro longo seria apenas uma longa espera do futuro. nem pode ser longo o passado, que também não existe. Um passado longo é uma longa lembrança do passado. Confissões XI, XXVIII

Digamos que eu queira cantar uma canção que conheço: antes de iniciar, minha expectativa se estende pela melodia como um todo. Quando começo, tudo o que vira passado é armazenada na memória. A atividade de meu ESPÍRITO se divide em memória, onde guardo o que já disse, e em expectativa em relação ao que vou dizer. Contudo, a atenção está presente, e por seu intermédio o futuro se torna passado. Quanto mais se aproxima o fim da canção, tanto menos se torna a expectativa e tanto maior a memória, até que aquela se esgota e a ação cumprida passa inteiramente para a memória. Confissões XI, XXVIII

Senhor, meu Deus, que abismos profundos os de teus segredos, e quão longe deles me levaram as consequências de meus pecados! Cura meus olhos, para que eu me alegre com tua luz! Se houvesse de fato um ESPÍRITO de ciência e de presciência tão grandes para conhecer o passado e o futuro, como conheço qualquer canto popular, esse ESPÍRITO nos encheria de extraordinária admiração e espanto. Nada, com efeito, lhe seria oculto no passado e nos séculos vindouros, exatamente como, ao entoar essa melodia, sei tudo o que cantei desde o começo, e tudo o que falta cantar até o fim. Mas longe de mim a ideia de identificar um tal conhecimento àquele que tens de todas as coisas futuras e passadas, ó Criador do Universo, Criador dos espíritos e dos corpos. Tua ciência é incomparavelmente mais admirável e mais misteriosa. Confissões XI, XXXI

Porque aquele que canta ou escuta uma melodia conhecida, dividido entre a expectativa das notas por vir e a lembrança das notas passadas, passa por impressões diferentes. Mas contigo não se dá nada semelhante, tu que és imutável e eterno, Criador verdadeiramente eterno dos espíritos. Como no princípio, conheceste o céu e a terra, sem que teu ESPÍRITO mudasse seu saber, assim criaste o céu e a terra, sem que tua ação passasse por etapas distintas. Que aquele que compreende isto te louve, assim como o que não compreende. Oh! Como és sublime! E os de coração humildes são tua morada! Levantas os que caíram, e os que graças a ti continuam eretos, não caem nunca. Confissões XI, XXXI

Não ensinaste, Senhor, à alma que a ti se confessa? Não me ensinaste, Senhor, que antes de receber de ti forma e figura esta matéria informe, não existia nada, nem cor, nem figura, nem corpo, nem ESPÍRITO? Não era um nada absoluto, mas massa informe, sem figura alguma. Confissões XII, III

Senhor, se pela boca e pela pena devo confessar-te o que me ensinaste sobre essa matéria, eu direi que outrora ouvi falar, sem nada compreender, a respeito desse nome por pessoas que também não entendiam. Tentei imaginá-la sob as formas mais diversas, e não o consegui. Meu ESPÍRITO revolvia confusamente formas feias e horríveis, mas enfim sempre formas. Confissões XII, VI

É a própria mutabilidade das coisas que é susceptível de assumir todas as formas em que se transfiguram as coisas mutáveis. E o que é essa mutabilidade? É ESPÍRITO? Será talvez corpo? Confissões XII, VI

Seria uma espécie de ESPÍRITO ou de corpo? Se pudéssemos dizer: um nada que é algo, ou o que é e não é, eu a chamaria assim. No entanto, era necessário que ela existisse de alguma maneira, para tomar essas formas visíveis e complexas. Confissões XII, VI

Por isso, o ESPÍRITO que instruiu teu servo, quando relata que no princípio criaste o céu e a terra, cala-se sobre o tempo, guarda silêncio sobre os dias. De fato, o céu do céu, que fizeste no começo, é de alguma maneira uma criatura racional que, mesmo sem ser co-eterna contigo, ó Trindade, participava todavia de tua eternidade. A doçura de te contemplar beatamente a mantém imóvel e unida a ti sem movimento, e desde sua criação escapa às vicissitudes fugazes do tempo. Confissões XII, IX

Também disseste, Senhor, com voz forte ao ouvido de minha alma, que essa criatura, que tem em ti seu único deleite, não te é co-eterna; que goza de ti em união casta e duradoura, sem nunca trair em parte alguma sua natureza mutável; que, se conserva sempre em tua presença e unida a ti com todo seu amor, não tem de esperar futuro, nem que recordar passado, imutável pois com o tempo e o vir a ser. Feliz criatura, se existe, por participar de tua felicidade, feliz de ser perenemente habitada e iluminada por ti! Nada encontro que melhor se possa chamar de céu de céu que pertence ao Senhor, que a esta habitação de tua divindade, que contempla tuas delícias sem que nada a afaste para outras partes. Puro ESPÍRITO, intimamente ligado por um elo de paz com esses santos, espíritos, cidadãos de tua cidade, situada no céu e acima do nosso céu. Confissões XII, XI

Vejo, de fato, não sei que matéria informe nas transformações das coisas últimas e ínfimas. Mas quem dirá, a não ser o insensato, cujo ESPÍRITO vagueia entre quimeras, à mercê de seus fantasmas, quem, salvo este, ousaria afirmar que, se toda forma fosse destruída, abolida, restando apenas a matéria informe, graças à qual as coisas se transformam e passam de uma forma para outra, ela poderia produzir as vicissitudes do tempo? Não, tal hipótese é absolutamente impossível, pois sem variedade de movimentos não há tempo; e não há variedade onde não há forma. Confissões XII, XI

Mas há outros que não censuram mas, pelo contrário, exaltam o livro de Gênesis, e que dizem: “Não é isto que quis dizer por essas palavras o ESPÍRITO de Deus, que as inspirou a teu servo Moisés. Não, o que ele quis dizer não é o que dizes, mas o que nós dizemos” — Eis, ó Deus de todos nós, o que eu lhes respondo: sê nosso árbitro. Confissões XII, XIV

Não encontramos o tempo antes dessa criação, porque a sabedoria foi a primeira de todas as tuas criações. E é claro que não me refiro à Sabedoria da qual és Pai, ó nosso Deus, e que te é perfeitamente igual e co-eterna, por quem todas as coisas foram criadas, e que é o princípio em que criaste o céu e a terra; refiro-me à sabedoria criada, dessa essência intelectual que, pela contemplação da luz, também é luz; a esta, embora criada, também chamamos de sabedoria. E assim como a luz que ilumina difere da luz refletida, a sabedoria criada difere da sabedoria incriada; e a justiça justificante difere da justiça nascida da justificação. Nós fomos também chamados de tua justiça. Porque um de teus servos disse: “Para que, em Cristo, nos tornemos a justiça de Deus”. — Há portanto, uma sabedoria criada antes de todas as coisas, e ela foi criada como ESPÍRITO racional e inteligente, que habita tua cidade santa, nossa mãe, que está no alto, livre e eterna nos céus — e em que céus, senão aos céus dos céus, que te louvam, esse céu que pertence ao Senhor? — Se não encontramos o tempo antes dessa sabedoria, é porque ela precede à criação do tempo, tendo sido criada primeiro, mas antes dela há a eternidade de seu Criador, de quem recebeu sua origem, e não do tempo, pois este ainda não existia, mas pela sua condição de criatura criada. Confissões XII, XV

Que me respondeis a isto, meus contraditores, vós que, também considerais Moisés um servo piedoso de Deus, e seus livros como oráculos do ESPÍRITO Santo? Não será esta a casa de Deus que, sem lhe ser co-eterna, é contudo, á sua maneira, eterna nos céus? Em vão buscais aí as vicissitudes do tempo, pois não as encontrareis, uma vez que ela transcende toda extensão, toda volubilidade do tempo, e sua felicidade é estar intimamente unida a Deus para sempre. Confissões XII, XV

Quero discutir diante de ti apenas com os que reconhecem por verdadeiras as afirmações que tua verdade revelou à minha inteligência. Os que o negam, que ladrem quanto quiserem, até ficar roucos. Tentarei persuadi-los a que se acalmem, e deem acesso em seus corações à tua palavra. Se não o quiserem e me repelirem, peço-te, meu Deus, que não te cales, não te afastes de mim. fala com verdade em meu coração, porque só tu podes falar assim. E eu os deixarei fora, soprando o e levantando terra contra os próprios olhos. Retirar-me-ei em mim mesmo, levantando a ti cânticos de amor, soluçando altos gemidos durante meu exílio, lembrando-me de Jerusalém, voltando para ela meu coração — Jerusalém, minha pátria e minha mãe — e para ti, que reinas sobre ela, seu pai, sua luz, seu tutor, seu esposo, suas castas e grandes delícias, sua firme alegria, enfim, todos seus bens inefáveis, porque és o único, soberano e verdadeiro Bem. Não me apartarei de ti até que reúnas todas as partes dispersas e deformadas do meu ser na paz dessa mãe muito amada, onde estão as primícias de meu ESPÍRITO, e de onde me vêm todas as certezas, e nela me reformes e confirmes por toda a eternidade, ó meu Deus, minha misericórdia. Confissões XII, XVI

Eles dizem: “Sem dúvida, isso é verdade, mas não era isso que Moisés queria exprimir quando, inspirado pelo ESPÍRITO Santo, escreveu: “No princípio criou Deus e céu e a terra” — Pela palavra céu, ele não quis significar essa criatura espiritual ou intelectual, que contempla eternamente a face de Deus; e pela palavra terra, uma matéria informe. — Que quis dizer então? — O que nós afirmamos — respondem — isso é o que Moisés quis dizer, e o que expressou naquelas palavras. — E que é que afirmais? — Pelas palavras céu e terra quis significar, em primeiro lugar, globalmente e de forma concisa, todo o mundo visível, para em seguida pormenorizar, enumerando os dias, ponto por ponto, esse conjunto que aprouve ao ESPÍRITO Santo designar com uma expressão global. O povo rude e carnal ao qual falava era constituído de homens tais que julgou conveniente dar-lhes a conhecer apenas as obras visíveis de Deus”. Confissões XII, XVII

Todas essas verdades, das quais não duvidam os que de ti receberam a graça de ver com os olhos da alma, e que creem firmemente que teu servo Moisés falou em ESPÍRITO de verdade, há quem dê esta interpretação: “No princípio Deus criou o céu e a terra” — isto é, Deus criou, em seu Verbo, que lhe é co-eterno, o mundo racional e sensível, ou espiritual e corporal. Outro diz: “No princípio Deus criou o céu e a terra” — isto é, Deus criou em seu Verbo, que lhe é co-eterno, toda a massa do mundo corpóreo, com tudo o que contém de realidades, manifestamente conhecidas. Confissões XII, XX

A Escritura não menciona a criação por Deus dessa matéria informe, mas deixa também de falar de muitas outras coisas, como, por exemplo, da criação dos querubins, dos serafins, dos tronos, das dominações, dos principados, das potestades, todas criaturas que o Apóstolo menciona claramente, e que Deus evidentemente criou. Se as palavras: “Deus criou o céu e a terra” — compreendem todas as coisas, que diremos das águas sobre as quais pairava o ESPÍRITO de Deus? Confissões XII, XXII

Se o próprio Moisés nos aparecesse e nos explicasse seu pensamento — nem assim veríamos esse pensamento, mas apenas acreditaríamos nele. Cuidemos pois, de não nos levantarmos orgulhosamente um contra o outro a respeito das Escrituras. Amemos ao Senhor, nosso Deus, de todo o nosso coração, de toda nossa alma, de todo nosso ESPÍRITO, e ao próximo como a nós mesmos. É segundo esses dois preceitos da caridade que Moisés pensou aquilo que escreveu em seus livros. Não acreditarmos nisso seria considerar o Senhor mentiroso, atribuindo a seu servo sentimentos distintos daqueles que ele próprio lhe ensinou. Diante de tantos pensamentos igualmente verdadeiros que podem ser deduzidos dessas palavras, vê que estultice é afirmar temerariamente que Moisés teve este pensamento e não aquele, ofendendo com nossas disputas perniciosas a caridade, por amor da qual ele escreveu as palavras que procuramos interpretar! Confissões XII, XXV

Sei, contudo, que essas opiniões são verdadeiras, a não mera interpretações materialistas, sobre as quais já disse tudo o que pensava. São como meninos esperançosos aqueles que não temem as palavras do teu Livro, tão profundas em sua humildade, tão eloquentes em sua concisão. Mas nós todos que, eu o declaro, distinguimos e dizemos a verdade sobre tais palavras, amemo-nos uns aos outros; e amemos igualmente a ti, nosso Deus, fonte da Verdade, pois temos sede, não de fantasias, mas da própria Verdade. Honremos a teu servo, que nos legou tua Escritura, cheio de teu ESPÍRITO, e estejamos certos que, ao escrever as palavras que lhe revelaste, ele teve em mira as revelações mais salientes da verdade e seus frutos proveitosos. Confissões XII, XXX

Assim, quando alguém me diz: “O pensamento de Moisés é o meu” — e outro diz: “Não, ele pensou como eu” — parece-me mais consoante ao ESPÍRITO religioso dizer: “Por que não admitir ambos os pontos de vista, se ambos são verdadeiros?” — E se alguém descobrir um terceiro, um quarto sentido, e outros mais, desde que sejam verdadeiros, por que não acreditar que Moisés viu todos eles, ele por cujo intermédio o Deus único adaptou as Escrituras à inteligência da multidão, que deveria descobrir-lhe significados diversos e verdadeiros? Confissões XII, XXXI

Enfim, Senhor, tu que és Deus, e não carne e sangue, se um homem não pôde ver tudo por completo, poderia teu ESPÍRITO bom, que me deve conduzir à terra da retidão, desconhecer algo do que tencionavas revelar por essas palavras a seus leitores vindouros, apesar de teu mensageiro não entender senão um dos numerosos sentidos verdadeiros? Se assim é, o sentido que ele pensou era o mais elevado de todos. Mas revela a nós, Senhor, esse sentido ou algum outro que for de teu agrado e real; e quer nos mostres o mesmo sentido que ao homem de Deus, quer seja outro, inspirado pelas mesmas palavras, alimenta nosso ESPÍRITO, guarda-nos da ilusão do erro. Confissões XII, XXXII

E o que a matéria corporal merecera de ti para existir, mesmo invisível e caótica? Nem mesmo essa existência teria, se não as tivesses criado. Não existindo ainda, não podia ter merecimento algum para existir. E a criatura espiritual, ainda no estado embrionário, que títulos teria, mesmo para ser essa coisa vagante e tenebrosa, semelhante ao abismo, diferente de ti, se por teu Verbo não fosse conduzida ao mesmo Verbo que a criou e se, iluminada por ele, também não se transformasse em luz, não igual, mas análoga à tua imagem? Para um corpo, não é a mesma coisa existir e ser belo, pois de outro modo não poderia viver e viver sabiamente não são a mesma coisa, porque, se fosse, todo ESPÍRITO seria imutável em sua sabedoria. Confissões XIII, II

Com efeito, teu ESPÍRITO bom pairava sobre as águas, e não era por elas levado como se nelas descansasse. Se diz que teu ESPÍRITO nelas repousava; mas era ele que as fazia em si. Confissões XIII, IV

eu entendia o Filho, em quem ele as criou. E, como eu acreditava na Trindade de meu Deus, eu a procurava em tuas santas palavras. E vi em tuas Escrituras que teu ESPÍRITO pairava sobre as águas. Eis tua Trindade, meu Deus, Pai, Filho, ESPÍRITO Santo, Criador de toda criatura! Confissões XIII, V

Mas, ó luz da verdade, aproximo de ti meu coração para que ele não me ensine falsidades; dissipa-lhe as trevas e dize-me, eu to suplico por nossa mãe, a caridade, dize-me, por que só depois de ter nomeado o céu, a terra invisível e informe e as trevas sobre o abismo, por que só então é que as Escrituras falam de teu ESPÍRITO? Será porque convinha apresentá-lo assim pairando sobre alguma coisa? E seria isso possível se não mencionasse primeiro sobre o que pairava? De fato, não era sobre o Pai nem sobre o Filho que ele pairava, e seria impróprio falar assim se não pairasse sobre alguma coisa. Confissões XIII, VI

Agora, quem o puder com a inteligência, siga a teu Apostolo, quando ele diz que tua caridade se difundiu em nossos corações pelo ESPÍRITO Santo que nos foi dado, quando nos instrui sobre as coisas espirituais e nos indica o caminho excelso da caridade, e dobra o joelho diante de ti por nossa causa, para que conheçamos a ciência altíssima da caridade de Cristo. E é porque era super eminente desde o princípio que pairava sobre as águas. Confissões XIII, VII

A quem e como falarei do peso da concupiscência, que nos arrasta para um abismo profundo, e da caridade que nos eleva, com a ajuda de teu ESPÍRITO, que pairava sobre as águas? Confissões XIII, VII

A quem falar, como falar? Nós submergimos e emergimos, mas não em abismos materiais. A metáfora é a um tempo correta e muito inexata. São nossas paixões, nossos amores, a impureza de nosso ESPÍRITO que nos arrasta para baixo sob o peso das preocupações. E é tua santidade que nos eleva pelo amor de tua paz, para que levantemos nossos corações para junto de ti, onde teu ESPÍRITO paira sobre as águas, e alcancemos o sublime repouso, quando nossa alma tiver atravessado essas águas que são sem substância. Confissões XIII, VII

O anjo caiu, a alma do homem caiu, revelando assim as profundas trevas em que teria caído o abismo que continha todas as criaturas espirituais, se não tivesses dito desde o começo: “Faça-se a luz!” — se a luz não se tivesse feito, se todas as inteligências de tua cidade celeste não se tivessem unido na obediência a ti, se não tivessem repousado em teu ESPÍRITO que paira, imutável, sobre os seres transitórios. De outro modo, até o céu do céu não seria mais que abismo de trevas, enquanto que agora é luz no Senhor. Confissões XIII, VIII

Mas o Pai e o Filho, não pairavam também sobre as águas? Se os imaginamos como um corpo pairando no espaço, isso não se pode aplicar nem mesmo ao ESPÍRITO Santo. Se porém entendermos por isso a excelência imutável da divindade acima de tudo o que é transitório, então o Pai, o Filho e o ESPÍRITO Santo pairavam igualmente sobre as águas. E por que só se menciona o ESPÍRITO Santo? Por que se menciona apenas a seu respeito um lugar onde estava, ele que, no entanto, não ocupa espaço? Também apenas dele se disse que era um dom de Deus, e é em teu dom que repousamos; é nele que gozamos de ti. Nosso repouso é nosso lugar. É para lá que o amor nos arrebata, e teu ESPÍRITO levanta nossa humildade para longe das portas da morte. A paz, para nós, reside na tua boa vontade. Os corpos tendem, por seu peso, para o lugar que lhes é próprio; mas um peso não tende só para baixo; tende para o lugar que lhe é próprio. O fogo sobe, a pedra cai. Cada um é movido por seu peso, e tende para seu justo lugar. O óleo, lançado à água, flutua; a água, lançada ao óleo, afunda. Ambos são impelidos por seu peso a procurarem o lugar que lhes é próprio. As coisas que não estão em seu lugar se agitam; mas quando o encontram, repousam. Confissões XIII, IX

Feliz a criatura que não conheceu outro estado! Seria porém diferente do que é se, apenas criada, teu ESPÍRITO, que paira sobre todas as coisas mutáveis, não a tivesse erguido com este apelo: “Faça- te a luz” — e a luz se fez. Em nós, o tempo em que éramos trevas distingue-se do tempo em que nos tornamos luz. Mas dessa criatura só se diz o que teria sido se não fosse iluminada. A Escritura fala dela como se tivesse sido flutuante e tenebrosa, para nos realçar a causa que a transformou, isto é, que a conduziu para a luz inextinguível, para que também fosse luz. Quem o puder, compreenda, quem não o puder, que te peça a graça de o compreender. Por que importunam, como seu fosse a luz que ilumina a todo homem que vem a este mundo? Confissões XIII, X

Ó minha , vai adiante em tua confissão. Dize a teu Senhor: “Santo, santo, santo! É o Senhor, meu Deus! — Em teu nome fomos batizados, Pai. Filho e ESPÍRITO Santo; em teu nome batizamos, Pai, Filho e ESPÍRITO Santo. Também entre nós Deus criou, pelo seu Cristo, um céu e uma terra, isto é, os espirituais e os carnais de sua Igreja. E nossa terra, antes de receber a forma da doutrina, era invisível e informe, e estávamos imersos nas trevas da ignorância, porque castigaste o homem por causa de sua iniquidade, e teus justos juízos são como abismos profundos. Confissões XIII, XII

Mas porque teu ESPÍRITO pairava sobre as águas, tua misericórdia não abandonou nossa miséria, e disseste: “Faça-se a luz”. Fazei penitencia, porque está próximo o reino de Deus. Fazei penitencia, faça-se a luz! E porque tínhamos a alma conturbada, nos lembramos de ti, Senhor, às margens do Jordão, sobre essa montanha grande como tu, que te tornaste pequeno por nós. Confissões XIII, XII

Contudo, somos luz apenas pela , e não por uma visão clara. É na esperança que fomos salvos, e a esperança que vê não é mais esperança. O abismo clama pelo abismo, mas é já pela voz de tuas cataratas. Não pude falar-vos como a homens espirituais, mas como a carnais. Quem assim fala, não julga ainda ter atingido sua meta e, esquecendo-se do que ficou para trás, avança para o que está vivo, como o cervo tem sede de água das fontes, e diz: “Quando chegarei?” — Ele deseja o abrigo de sua morada, que está no céu e chama o abismo inferior dizendo: “Não vos conformeis com este mundo, mas reformai-vos renovando vosso ESPÍRITO, e não queirais ser crianças na mente, mas sede pequeninos quanto à malícia, para que sejais perfeitos no ESPÍRITO…” Confissões XIII, XIII

E ainda: “Ó gálatas insensatos, quem vos fascinou?” — Mas não é mais sua voz que fala assim, e sim a tua voz, porque mandaste teu ESPÍRITO do alto do céu por intermédio de Jesus, que subiu ao céu e abriu as cataratas de seus dons, para que a torrente de alegria alegrasse tua cidade. É por essa cidade que suspira o amigo do esposo, ele que já possui as primícias do ESPÍRITO, mas que ainda geme, porque está à espera da adoção e do resgate do seu corpo. É por ela que suspira, porque ele é membro da Esposa de Cristo; por ela se abrasa em zelo, porque é o amigo do esposo. Zela por ela, não por si mesmo, pois é pela voz de tuas cataratas, e não com sua própria voz, que ele chama pelo outro abismo, objeto de seu zelo e de seus temores. Assim como a serpente enganou Eva com sua astúcia, ele receia que as inteligências débeis se corrompam e se afastem da pureza que está em teu Esposo, teu Filho único. Quão resplandecente será essa luz, quando o virmos tal como ele é, e quando tiverem passado essas lágrimas que se tornaram o pão de meus dias e de minhas noites, enquanto a cada dia me perguntam: Onde está o teu Deus? Confissões XIII, XIII

Minha , que acendeste à noite para conduzir meus passos, lhe diz: “Por que está triste, ó minha alma, e por que me perturbas? Espera no Senhor. Seu Verbo é uma lâmpada para teus passos. Espera, persevera, até que a noite passe, a noite, mãe dos iníquos, até que passe a ira do Senhor, ira da qual outrora fomos filhos quando éramos trevas”. — Dessas trevas ainda arrastamos os restos neste corpo morto pelo pecado, até que alvoreça o dia e se dissipem as sombras. Espera no Senhor. Desde a manhã estarei diante deles, e o contemplarei, e o louvarei eternamente. Desde a manhã estarei diante dele e verei a salvação de minha face, meu Deus, que vivificará nossos corpos mortais pelo seu ESPÍRITO que habita em nós, misericordiosamente levado por sobre as águas tenebrosas de nossas almas. Confissões XIII, XIV

Por desígnio eterno, lanças sobre a terra os bens do céu no tempo oportuno; a um, teu ESPÍRITO dá a palavra de sabedoria, luminar maior para os que encontram seu deleite na luz de uma verdade clara como o raiar do dia; a outro dás, pelo mesmo ESPÍRITO, a palavra de ciência, luminar menor; a outro a ; a outro o poder de curar; a outro o dom dos milagres; a outro a graça da profecia; a este o discernimento dos espíritos, àquele o dom das línguas. E todos esses dons são como estrelas, são obra de um só e mesmo ESPÍRITO, que reparte a cada um os seus dons como lhe agrada, e que faz aparecer tais astros para o bem comum. Confissões XIII, XVIII

Todas tuas obras são belas, mas és indizivelmente mais belo tu, que criaste tudo o que existe. Se Adão não se tivesse separado de ti, em sua queda, de seu seio não teria saído o oceano amargo do gênero humano, com sua profunda curiosidade, seu orgulho cheio de tempestades, suas ondas instáveis. E os dispensadores de tuas palavras não teriam a necessidade de representar, no meio de tantas águas, por meio de sinais físicos e sensíveis, teus atos e palavras místicas. Foi nesse sentido que entendi esses répteis e essas aves. Mas até os homens iniciados nesses sinais e deles imbuídos, não avançariam no conhecimento desses mistérios, aos quais estão sujeitos, se sua alma não se elevasse á vida do ESPÍRITO, e, após a palavra inicial, não aspirasse à perfeição. Confissões XIII, XX

Assim, Senhor, nosso Deus e nosso Criador, quando nossos afetos mundanos, que nos causam a morte porque nos faziam viver mal, se afastarem do amor do mundo, quando nossa alma, vivendo bem, se tornar alma viva, e quando se cumprir a palavra que proferiste pela boca de teu Apostolo: “Não vos conformeis com o mundo em que vivemos” — então seguir-se-á aquilo que acrescentaste imediatamente ao dizer: “Mas reformai-vos na novidade de vossa mente”. — E já não será “segundo vossa espécie” — como se fosse imitar nossos predecessores ou viver seguindo os exemplos de alguém melhor que nós. Não disseste: “Que o homem seja feito de acordo com sua espécie” — mas “façamos o homem à nossa imagem e semelhança” — para que pudéssemos reconhecer tua vontade. Para tanto, o divulgador de teu pensamento, que gerou filhos pelo Evangelho, não querendo que continuassem como crianças os que alimentara com leite e agasalhara em teu seio como uma ama, dizia: “Reformai-vos renovando vosso coração, para discernir a vontade de Deus, que é bom, agradável e perfeito”. — Também não dizes: “Faça-se o homem” — mas “à nossa imagem e semelhança”. Aquele que é renovado no ESPÍRITO, que compreende e conhece tua verdade, não mais carece que um outro lhe ensine a imitar sua espécie. Graças às tuas lições, ele reconhece por si qual é tua vontade, o que é bom, agradável e perfeito. Tu lhe ensinas, pois agora é capaz deste ensinamento, a ver a Trindade da Unidade e a Unidade da Trindade. Eis por que, depois de falar no plural: “Façamos o homem” se diz no singular: “E Deus criou o homem”. Depois deste plural: “À nossa imagem” — este singular: “À imagem de Deus”. Assim o homem “se renova pelo conhecimento de Deus, à imagem de seu criador” — e “tornando-se espiritual, julga todas as coisas”, que certamente hão de ser julgadas, “mas ele não é julgado por ninguém”. Confissões XIII, XXII

Ele julga tudo, significa que tem autoridade sobre os peixes do mar, sobre os pássaros do céu, sobre os animais domésticos e selvagens, sobre toda a terra e sobre todos os répteis que nela se arrastam. Exerce esse poder pela inteligência, pela qual percebe as coisas que são do ESPÍRITO de Deus. Mas, elevado a tão grande honra, o homem não entendeu sua dignidade, igualou-se aos jumentos insensatos, tornando-se semelhante a eles. Confissões XIII, XXIII

Por isso, na tua Igreja, Senhor, pela graça que lhe concedeste — pois somos obra tua, e criados para obras boas, tanto os que governam como os que obedecem segundo o ESPÍRITO tem o dom de julgar. Porque assim fizeste a criatura humana homem e mulher, em tua graça espiritual, onde não há distinção conforme o sexo, nem judeu nem grego, nem escravo nem homem livre. Os espirituais, portanto, tanto os que presidem como os que obedecem, julgam espiritualmente. Eles não julgam conhecimentos espirituais que brilham no firmamento, pois não lhes cabe fazer juízos sobre tão sublime autoridade. Nem julgam tua Escritura, mesmo em suas passagens obscuras: nós lhe submetemos nossa inteligência, e temos certeza de que até aquilo que está oculto à nossa compreensão é justo e verdadeiro. O homem, pois, embora já espiritual e renovado pelo conhecimento, conforme a imagem de seu criador, deve ser cumpridor da lei, e não seu juiz. Nem pode ajuizar sobre o que distingue espirituais e carnais. Somente teus olhos, meu Senhor, os distinguem, mesmo que nenhuma obra sua os tenha revelado a nós, para que os reconheçamos por seus frutos. Mas tu, Senhor, já os conheces e os classificaste, e os chamaste no segredo de teu pensamento, antes de ter criado o firmamento. Confissões XIII, XXIII

Não calarei as reflexões que me sugere a leitura dessas palavras. O que penso é verdadeiro, e nada vejo que impeça de explicar assim os textos figurados de teus livros. Sei que sinais corporais podem exprimir de vários modos uma ideia que o ESPÍRITO concebe em um só sentido; uma ideia expressa de um só modo. Como exemplo, cito a simples ideia do amor de Deus e do próximo. Quantos símbolos, quantas línguas, e em cada uma inúmeras locuções lhe dão uma expressão concreta! É assim que crescem e se multiplicam os peixes das águas. Confissões XIII, XXIV

Nutrem-se com esses alimentos os que neles se alegram; não encontram neles alegria os homens cujo deus é seu ventre. E até entre os que ofertam esses frutos, o fruto não é o que eles dão, mas o ESPÍRITO com que o oferecem. Por isso, naquele que servia a seu Deus e não a seu ventre percebo claramente a fonte de sua alegria; e participo fortemente de seu regozijo. Paulo recebera os presentes que os filipenses lhes tinham mandado por intermédio de Epafrodito. Vejo bem a razão de sua alegria. E é dela que se nutria, porque ele diz com verdade: “Alegrei-me muito no Senhor, vendo enfim reflorescer para mim vossa estima, da qual já andáveis desgostados”. Confissões XIII, XXVI

Mas ela fala no tempo, enquanto este não atinge o meu verbo, que permanece em mim, eterno como eu. Assim, o que vês por meu ESPÍRITO, sou eu quem o vê; o que dizes por meu ESPÍRITO, sou eu quem o diz. Mas o que vês no tempo, eu não vejo no tempo; e o que dizes no tempo, eu não digo no tempo.” Confissões XIII, XXIX

Ouvi, Senhor, meu Deus, tua voz, e recolhi em meu coração uma gota de doçura de tua verdade. Compreendi que há uns aos quais tuas obras desagradam. Eles sustentam que muitas delas fizeste constrangido pela necessidade, como a estrutura dos céus, a ordem dos astros; afirmam que não as criaste por ti mesmo, mas que elas já existiam alhures, criadas por outra fonte; que te limitaste a reuni-las, a ordená-las, a entrelaçá-las; que com elas construíste as muralhas do mundo, depois de vencido teus inimigos, para que essa construção os mantivesse cativos, e não mais pudessem se revoltar contra ti; que não criaste nem organizaste outros seres, como os corpos carnais, os animais pequenos e tudo o que se prende à terra por meio de raízes; que foi um ESPÍRITO hostil, uma outra natureza, não criada por ti, e que se opõe a ti nas regiões inferiores do mundo, que as gerou e organizou. Esses insensatos falam assim porque não veem tuas obras através de teu ESPÍRITO, nem te reconhecem neles. Confissões XIII, XXX

O oposto sucede aos que veem tuas obras através de teu ESPÍRITO, pois és tu é quem as vê neles. Portanto, quando veem que elas são boas, tu também vês essa bondade; em tudo o que lhes agrada por tua causa, tu és que nos agradas, e o que nos agrada através de teu ESPÍRITO é em nós que te agrada. Com efeito, quem dentre os homens sabe das coisas do homem, senão o ESPÍRITO do homem que nele habita? Do mesmo modo o que pertence a Deus ninguém o sabe, a não ser o ESPÍRITO de Deus. “Quanto a nós, diz ainda Paulo, não recebemos e ESPÍRITO deste mundo, mas o ESPÍRITO de Deus, para que conheçamos os dons que nos vêm de Deus”. Confissões XIII, XXXI

E isto me fez perguntar: Posto que certamente ninguém sabe das coisas de Deus, com exceção do ESPÍRITO de Deus, como então nós conhecemos os dons que nos vêm de Deus? Eis a resposta que recebi: As coisas que sabemos por seu ESPÍRITO, ninguém as sabe a não ser o ESPÍRITO de Deus. É pois justo que foi dito aos que falavam, inspirados pelo ESPÍRITO de Deus: “Não sois vós os que falais” — e aos que obtém seu saber do ESPÍRITO de Deus: “Não sois vós os que sabeis”. — E com igual razão se diz aos que veem através do ESPÍRITO de Deus: “Não sois vós os que veem”. Assim, em tudo o que vemos de bom pelo ESPÍRITO de Deus, não somos nós que vemos, mas Deus. Confissões XIII, XXXI

Por isso, uma coisa é julgar mau o que é bom, como o fazem aqueles de quem falei acima, e outra coisa é o homem ver o que é bom. Todavia, muitos amam tua criação porque é boa, mas não tem amam nessa criação; e por isso preferem gozar dela que de ti. Há ainda outro caso, quando alguém vê que uma coisa é boa, mas é Deus que nele vê que essa coisa é boa, e é Deus que é amado em sua criação. Ele só o pode ser graças ao ESPÍRITO que Deus nos deu, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo ESPÍRITO Santo que nos foi dado. Por ele, vemos que tudo o que de algum modo existe é bom, pois recebe seu ser daquele que é, não de um modo qualquer, mas de modo absoluto. Confissões XIII, XXXI

Graças te damos, Senhor! Vemos o céu e a terra, isto é, a parte superior e inferior do mundo material, assim como a criação espiritual e material. E, como adorno dessas partes que se compõe, o conjunto do Universo, e o conjunto de toda a criação, vemos a luz que foi criada e separada pelas trevas. Vemos o firmamento do céu, tanto o que está situado entre as águas espirituais superiores e as águas materiais inferiores, como ainda esses espaços de ar, chamados também de céu, onde volitam as aves do céu entre as águas que se evolam em vapores, e nas noites serenas se condensam em orvalho, e as que correm pesadas sobre a terra. Vemos a beleza das águas reunidas nas planícies do mar, e a terra enxuta, ora nua, ora tomando forma visível e ordenada, mãe das plantas e das árvore . vemos os luminares do céu brilhando acima de nós, o sol bastar para o dia, a lua e as estrelas consolando a noite, e todos esses astros marcando e assinalando a cadência do tempo. Vemos o elementos úmido habitado por peixes, monstros, animais alados, porque a densidade do ar que sustenta o voo dos pássaros é aumentada pela evaporação das águas. Vemos a face da terra embelezar-se de animais terrestres, e o homem, criado à tua imagem e semelhança, senhor de todos os animais irracionais, precisamente porque foi feito à tua imagem e se assemelha a ti, em virtude da razão e da inteligência. E como na alma humana há uma parte que domina pela reflexão e outra que se submete na obediência, assim a mulher foi criada fisicamente para o homem; é fora de dúvida que ela possui um ESPÍRITO e uma inteligência racional, iguais aos do homem, mas seu sexo a coloca sob a dependência do sexo masculino; é desse modo que o desejo, princípio da ação, se submete à razão que concebe a arte do agir retamente. Eis o que vemos, e que cada uma dessas coisas, tomadas por si, são boas, e que todas, em seu conjunto, são muito boas. Confissões XIII, XXXII

Também meditei sobre o significado simbólico da ordem pela qual se fez tua criação e da ordem pela qual a Escritura relata. Vimos que tuas obras, consideradas cada uma em si, são boas, e em seu conjunto, muito boas. Em teu Verbo, em teu Filho único, vimos o céu e a terra, a cabeça e o corpo da Igreja, predestinadas antes de todos os tempos, quando ainda não havia nem manhã, nem tarde. Depois começaste a executar no tempo o que predestinaste antes do tempo, a fim de revelar teus desígnios ocultos e de dar ordem às nossas desordens — porque pesavam sobre nós nossos pecados, e nos perdíamos longe de ti em voragens de trevas. Teu ESPÍRITO misericordioso pairava sobre nós, para nos socorrer no momento oportuno. Justificaste os ímpios; tu os separaste dos pecadores e confirmaste a autoridade de teu Livro entre os superiores, que te eram dóceis, e os inferiores, para que a eles se submetessem. Reuniste em um corpo único, de mesmas aspirações, a sociedade dos infiéis, para que aparecesse o zelo dos fiéis fecundo em obras de misericórdia, e distribuindo aos pobres os bens da terra para adquirir os do céu. Confissões XIII, XXXIV

Acendeste então os luzeiros no firmamento: teus santos, que possuem a palavra de vida e brilham pela sublime autoridade dos seus dons espirituais. Depois, para difundir a entre as nações idólatras, fizeste com a matéria visível dos sacramentos os milagres bem perceptíveis, e determinaste as vozes das palavras sagradas, conformes ao firmamento de teu Livro, pelas quais seriam abençoados teus fiéis. Formaste depois a alma viva dos fiéis, pela disciplina das paixões bem ordenadas e pelo vigor da continência. Por fim renovaste a alma, que não estava sujeita senão a ti, e que não tinha mais necessidade de nenhuma autoridade humana para imitar, à tua imagem e semelhança; submeteste, como a mulher ao homem, a atividade racional ao poder da inteligência. Quiseste que a teus ministros que são necessários ao progresso dos fiéis nesta vida, que esses mesmos fiéis propiciassem o necessário para suas necessidades temporais; obras valiosas de caridade, cujos frutos colherão no futuro. vemos todas essas coisas, e todas são muito boas, porque tu as contemplas em nós, tu que nos deste o ESPÍRITO, para que por ele pudéssemos vê-las e amar-te nelas. Confissões XIII, XXXIV

Vemos, portanto, as tuas criaturas porque elas existem. Mas elas existem porque tu as vês. Olhando à nossa volta, vemos que elas existem; em nosso íntimo, vemos que são boas. Mas tu já as viste feitas quando e onde viste que deviam ser feitas. Agora somos inclinados a praticar o bem, depois que nosso coração concebeu essa ideia em teu ESPÍRITO. Outrora estávamos inclinados ao mal, desertando de ti. Tu, porém, ó Deus, único bem, nunca cessaste de nos fazer o bem. Por tua graça, algumas de nossas obras são boas, mas não são eternas. Esperamos, depois de realizá-las, repousar em tua grande santificação. Mas tu, que não precisas de nenhum outro bem, estás sempre em repouso, porque és teu próprio repouso. Confissões XIII, XXXVIII