Agostinho: criação

És grande, Senhor e infinitamente digno de ser louvado; grande é teu poder, e incomensurável tua sabedoria. E o homem, pequena parte de tua CRIAÇÃO quer louvar-te, e precisamente o homem que, revestido de sua mortalidade, traz em si o testemunho do pecado e a prova de que resistes aos soberbos. Todavia, o homem, partícula de tua CRIAÇÃO, deseja louvar-te. Confissões I, I

Diziam: “Verdade! Verdade!” — e, incessantemente, falavam-me da verdade, que nunca existiu neles; antes, diziam muitas falsidades, não apenas de ti, que és verdade por excelência, mas também dos elementos deste mundo, CRIAÇÃO tua. Sobre isso, mesmo quando os filósofos diziam a verdade, tive de ultrapassá-los nos raciocínios por amor de ti, ó pai sumamente bom, beleza de todas as belezas! Ó verdade, verdade! Quão intimamente suspiravam por ti as fibras da minha alma, quando eles te faziam soar ao meu redor frequentemente e de muitos modos, embora apenas com as palavras e em seus muitos e volumosos livros. Estes eram as bandejas nas quais, estando eu faminto de ti, serviam-me em teu lugar o sol e a lua, formosas obras de tuas mãos, porém, obras tuas, e não a ti, nem sequer das principais. De fato, tuas obras espirituais são superiores a estas corporais, ainda que estas sejam brilhantes e celestes. Mas eu tinha sede e fome não daquelas primeiras, mas de ti mesmo, ó verdade, na qual não há mudança nem obscuridade momentânea! E eles serviam-me nessas bandejas esplendidas ficções, de acordo com as quais teria sido melhor amar a este sol, verdadeiro pelo menos aos olhos, em lugar daquelas falsidades que pelos olhos do corpo enganavam o entendimento. Confissões III, VI

Mas tu, meu amor, em quem desfaleço para me tornar forte, nem és estes corpos que vemos, mesmo no céu; nem os outros que não vemos, porque és o Criador e os ocultaste, e não os consideras como as obras primas de tua CRIAÇÃO. Confissões III, VI

Recebe, Senhor, o sacrifício de minhas Confissões por meio da minha língua, que tu formaste e impeliste a confessar teu nome. Cura todos os meus ossos, e que eles proclamem: Senhor, quem haverá semelhante ai ti? Na verdade, quem se dirige a ti, nada te informa do que ocorre em si, porque não há coração fechado que se possa subtrair a teu olhar, nem dureza de homem que possa repelir tua mão. Ao contrário, a abrandas quando queres, ou para compadecer-te, ou para castigar; não há quem se esconda de teu calor. Mas, que minha alma te louve para que te ame, a confesse tuas misericórdias para que te louve. Toda a CRIAÇÃO não cala teus contínuos louvores, nem os espíritos todos, com sua boca voltada para ti, nem os animais e coisas corporais, pela boca dos que os contemplam. Assim, apoiando-se em tua CRIAÇÃO, nossa alma se levanta de sua franqueza, e chega a ti, seu admirável criador, onde encontrará rejuvenescimento e verdadeira fortaleza. Confissões V, I

Dizem muitas coisas verdadeiras acerca das criaturas; mas, como não procuram piedosamente a Verdade, isto é, o autor da CRIAÇÃO, não o encontram; e, se o encontram reconhecendo-o por Deus, não o honram como a Deus, nem lhe dão graças. Antes, se desvanecem em seus pensamentos, e se dizem sábios, atribuindo a si próprios o que é teu. Confissões V, III

Eu buscava a origem do mal, mas de modo errôneo, e não via o erro que havia em meu modo de buscá-la. Desfilava diante dos olhos de minha alma toda a CRIAÇÃO, tanto o que podemos ver — como a terra, o mar, o ar, as estrelas, as árvores e os animais — como o que não podemos ver — como o firmamento, e todos os anjos e seres espirituais. Estes, porém, como se também fossem corpóreos, colocados em minha imaginação em seus respectivos lugares. Fiz de tua CRIAÇÃO uma espécie de massa imensa, diferenciada em diversos gêneros de corpos; uns, corpos verdadeiros, e espíritos, que eu imaginava como corpos. Confissões VII, V

Assim é que eu concebia a tua CRIAÇÃO finita, cheia de ti, infinito, e dizia: “Eis aqui Deus, e eis aqui as coisas que Deus criou; Deus é bom, imenso e infinitamente mais excelente que suas criaturas; e, como é bom, fez boas todas as coisas; e vede como as abraça e penetra! Onde está pois o mal? De onde e por onde conseguiu penetrar no mundo? Qual é a sua raiz e sua semente? Confissões VII, V

E se tememos em vão, o próprio temor já é certamente um mal que atormenta e espicaça sem motivo nosso coração; e tanto mais grave quanto é certo que não há razão para temer. Portanto, ou o mal que tememos existe, ou o próprio temor é o mal. De onde, pois, procede o mal se Deus, que é bom, fez boas todas as coisas? Bem superior a todos os bens, o Bem supremo, criou sem dúvida bens menores do que ele. De onde pois vem o mal? Acaso a matéria de que se serviu para a CRIAÇÃO era corrompida e, ao dar-lhe forma e organização, deixou nela algo que não converteu em bem? Confissões VII, V

E por que isto? Acaso, sendo onipotente, não podia mudá-la, transformá-la toda, para que não restasse nela semente do mal? Enfim, por que se utilizou dessa matéria para criar? Por que sua onipotência não a aniquilou totalmente? Poderia ela existir contra sua vontade? E, se é eterna, por que deixou-a existir por tanto tempo no infinito do passado, resolvendo tão tarde servirse dela para fazer alguma coisa? Ou, já que quis fazer de súbito alguma coisa, sendo onipotente, não poderia suprimir a matéria, ficando ele só, bem total verdadeiro, sumo e infinito? E, se não era conveniente que, sendo bom, não criasse nem produzisse bem algum, por que não destruiu e aniquilou essa matéria má, criando outra que fosse boa e com a qual plasmar toda a CRIAÇÃO? Confissões VII, V

E eu ouvi como se ouve no coração, sem deixar motivo para dúvidas; antes, mais facilmente duvidaria de minha vida que da existência da verdade, que se manifesta à inteligência pelas coisas da CRIAÇÃO. Confissões VII, X

E para ti, Senhor, não existe absolutamente o mal; e nem para universalidade da tua CRIAÇÃO; porque nada existe fora dela, capaz de romper ou de corromper a ordem que tu lhe impuseste. Todavia, em algumas de suas partes, determinados elementos não se harmonizam com outros, e estes são considerados maus. Mas, como esses mesmos elementos combinam com outros, são da mesma forma bons, e bons em si mesmos. E mesmo esses elementos que não concordam entre si se harmonizam com a parte inferior das criaturas que chamamos terra, com seu céu cheio de nuvens e de ventos, como lhe é conveniente. Confissões VII, XIII

Não têm juízo sadio, nos que se desagradam com alguma parte de tua CRIAÇÃO, como acontecia comigo, quando me desagradavam tantas de tuas obras. Mas, como minha alma não se atrevia a desgostar do meu Deus, não queria considerar como obra tua o que lhe desagradava. Confissões VII, XIV

Entendi por experiência que não é de admirar que o pão seja enjoativo ao paladar enfermo, mesmo tão agradável para o paladar sadio, e que olhos enfermos considerem odiosa a luz, que para os límpidos é tão cara. Se tua justiça desagrada aos maus, muito mais desagradam a víbora e o caruncho, que criaste bons e adaptados à parte inferior da tua CRIAÇÃO, com a qual também os maus se assemelham, tanto mais quanto mais diferem de ti, assim como os justos se assemelham às partes superiores do mundo na medida em que se assemelham a ti. Confissões VII, XVI

Admirava-me de já te amar, e não a um fantasma em teu lugar, mas não era estável no gozo de meu Deus. Era arrebatado a ti por tua beleza, e logo afastado de ti pelo meu peso, que me precipitava sobre a terra a gemer. Meu peso eram os hábitos carnais. Mas tua lembrança me acompanhava. Nem absolutamente duvidava da existência de um ser a quem eu devia me unir, embora não estivesse apto para esta união, porque o corpo, que se corrompe, sobrecarrega a alma, e a morada terrena oprime o espírito carregado de cuidados. Estava certíssimo de que tuas belezas invisíveis se descobrem à inteligência desde a CRIAÇÃO do universo, por meio de tuas obras; bem como teu poder eterno e tua divindade. Confissões VII, XVII

Não tendo humildade, eu não possuía Jesus, o Deus da humildade, e não atinava o que nos poderia ensinar sua fraqueza. Porque teu Verbo, verdade eterna, dominando as criaturas mais sublimes da tua CRIAÇÃO, levanta a si as que se lhe sujeitam e, nas partes inferiores, construiu para si, com o nosso lodo, uma humilde morada. Assim faz para humilhar e arrancar de si mesmos aqueles que deseja sujeitar e atrair, curando-lhes a soberba e alimentando-lhes o amor, para que, confiando em si, não se afastem para mais longe. Pelo contrário, que se humilhem, vendo a seus pés a humildade de um Deus que também se vestiu de nossa túnica de carne, e cansados, se prostrem diante dela para que, ao se levantar, os exalte. Confissões VII, XVIII

Ouvira da boca da própria Verdade que há eunucos que mutilavam a si próprios por amor ao reino dos céus, embora acrescentando que o compreenda quem o puder compreender. São vãos, por certo, todos os homens nos quais não reside a ciência de Deus, e que nas coisas visíveis não puderam achar aquele que é. Mas eu já me livrara dessa vaidade, já a havia ultrapassado, e pelo testemunho de tua CRIAÇÃO, te encontrara a ti, nosso Criador, e a teu Verbo, Deus em ti, e contigo um só Deus, por quem criaste todas as coisas. Confissões VIII, I

Com certeza ainda estão cheios do erro do velho homem os que nos dizem: “Que fazia Deus antes de criar o céu e a terra?” — Se estava ocioso, se nada fazia, porque não continuou a se abster sempre de qualquer ação? Se em Deus apareceu um movimento novo, uma vontade nova de dar o ser ao que ainda não tinha criado, como falar de uma verdadeira eternidade se nela nasce uma vontade que não existia antes? Mas a vontade de Deus não é uma criatura, ela é anterior a toda criatura; nenhuma CRIAÇÃO seria possível se a vontade do Criador não a precedesse. A vontade, portanto, pertence à própria substância de Deus. Logo, se na substância de Deus nasce algo que antes não existia, não se pode mais com verdade chamá-la eterna. E se, desde toda eternidade, Deus quis a existência da criatura, por que a criatura também não é eterna? Confissões XI, X

Mas eu digo que tu, meu Deus, és o Criador de toda criatura; e, se por céu e terra se entende toda criatura, não temo afirmar: “Antes que Deus criasse o céu e a terra, nada fazia. De fato, se tivesse feito alguma coisa, o que poderia ser senão uma criatura? Oxalá eu soubesse tudo o que desejo saber, como sei que nenhuma criatura foi criada antes da CRIAÇÃO. Confissões XI, XII

Se algum espírito leviano, vagando por tempos imaginários anteriores à CRIAÇÃO, se admirar que o Deus Todo-Poderoso, tu, que criaste e conservas todas as coisas, ó autor do céu e da terra, tenha-te mantido inativo até o dia da CRIAÇÃO, por séculos sem conta, que esse desperte e tome consciência do erra que gera sua admiração. Como, pois, poderiam transcorrer os séculos se tu, criador, ainda não os tinha criado? E poderia o tempo fluir se não existisse? E como poderiam os séculos passar, se jamais houvessem existido? Portanto, como és o criador de todos os tempos — se é que houve algum tempo antes da CRIAÇÃO do céu e da terra — como se pode afirmar que ficaste ocioso? Pois também criaste esse mesmo tempo, e este não poderia passar antes que o criasses. Confissões XI, XIII

E repousarei imutável em ti, em tua verdade, na minha forma. não mais tolerarei as perguntas das pessoas que, pela enfermidade que é a pena de seu pecado, tem mais sede de saber do que lhes permite sua capacidade, que dizem: “Que fazia Deus antes de criar o céu e a terra?” — ou ainda: “Como lhe veio a ideia de criar algo, se antes nunca fizera nada” — Concede-lhes, Senhor, que reflitam no que dizem, que compreendam que não se pode falar nunca onde não há tempo. Quando se diz que alguém nunca fez nada, que se quer dizer senão que esse tal nada fez em tempo algum? Que eles compreendam que não pode existir tempo na ausência da CRIAÇÃO, e deixem de semelhantes falácias. Confissões XI, XXX

Que nome darei a esta matéria, como sugerir sua ideia às inteligências mais curtas, senão usando um termo de uso corrente? O que se pode encontrar no mundo que seja mais parecido com essa ausência total de forma, que a terra e o abismo? Colocados no mais baixo grau da CRIAÇÃO, eles não têm a beleza dos corpos que no alto brilham de luz fulgurante. Confissões XII, IV

Portanto, és tu, Senhor que não mudas ao sabor das circunstâncias, mas que és sempre o mesmo, o mesmo e o mesmo, santo e santo e santo, Senhor, Deus Todo-Poderoso, és tu, Senhor, que no princípio, que vem de ti, em tua Sabedoria, nascida de tua substância, fizeste algo do nada. Criaste o céu e a terra, e isso não com tua substância, pois nesse caso, tua CRIAÇÃO seria igual a teu Filho unigênito e, por isso, iguais a ti mesmo. E não seria justo que o que não é da tua substância, fosse igual a ti. Confissões XII, VII

Por isso, o Espírito que instruiu teu servo, quando relata que no princípio criaste o céu e a terra, cala-se sobre o tempo, guarda silêncio sobre os dias. De fato, o céu do céu, que fizeste no começo, é de alguma maneira uma criatura racional que, mesmo sem ser co-eterna contigo, ó Trindade, participava todavia de tua eternidade. A doçura de te contemplar beatamente a mantém imóvel e unida a ti sem movimento, e desde sua CRIAÇÃO escapa às vicissitudes fugazes do tempo. Confissões XII, IX

Mas a terra era invisível e informe, e as trevas reinavam sobre o abismo. Por essas palavras, a Escritura sugere a ideia de algo informe, para ensinar aos poucos aos espíritos que não podem conceber que a falta absoluta de forma não se confunde com o nada. É dessa massa informe que deveria ser criado um segundo céu, uma terra visível, ordenada, a água cristalina, e enfim tudo o que foi feito na CRIAÇÃO, de acordo com a tradição das Escrituras, em dias sucessivos. Confissões XII, XII

Não encontramos o tempo antes dessa CRIAÇÃO, porque a sabedoria foi a primeira de todas as tuas criações. E é claro que não me refiro à Sabedoria da qual és Pai, ó nosso Deus, e que te é perfeitamente igual e co-eterna, por quem todas as coisas foram criadas, e que é o princípio em que criaste o céu e a terra; refiro-me à sabedoria criada, dessa essência intelectual que, pela contemplação da luz, também é luz; a esta, embora criada, também chamamos de sabedoria. E assim como a luz que ilumina difere da luz refletida, a sabedoria criada difere da sabedoria incriada; e a justiça justificante difere da justiça nascida da justificação. Nós fomos também chamados de tua justiça. Porque um de teus servos disse: “Para que, em Cristo, nos tornemos a justiça de Deus”. — Há portanto, uma sabedoria criada antes de todas as coisas, e ela foi criada como espírito racional e inteligente, que habita tua cidade santa, nossa mãe, que está no alto, livre e eterna nos céus — e em que céus, senão aos céus dos céus, que te louvam, esse céu que pertence ao Senhor? — Se não encontramos o tempo antes dessa sabedoria, é porque ela precede à CRIAÇÃO do tempo, tendo sido criada primeiro, mas antes dela há a eternidade de seu Criador, de quem recebeu sua origem, e não do tempo, pois este ainda não existia, mas pela sua condição de criatura criada. Confissões XII, XV

Por isso a matéria comum a todas as coisas invisíveis e visíveis, matéria ainda informe, mas susceptível de forma, e de onde se fariam o céu e a terra — em outras palavras, a CRIAÇÃO invisível e visível — mas uma e outra tendo recebido forma, foi designada por essas expressões de terra invisível e informe, e de trevas reinando sobre o abismo. Com a seguinte distinção: por terra invisível e informe deve-se entender a matéria corpórea antes de ser qualificada pela forma; e por trevas reinando sobre o abismo, a matéria espiritual antes da restrição de sua, digamos, imoderada fluidez, e antes de ser iluminada pela sabedoria. Confissões XII, XVII

Poderia alguém afirmar, se quisesse: Esses termos céu e terra não significam realidades perfeitas e acabadas, lá onde lemos: No princípio Deus criou o céu e a terra — mas um esboço ainda informe, uma matéria passível de receber forma e servir para a CRIAÇÃO; nela já existiam, como que um embrião, sem distinção de formas e de qualidades, essas criaturas, uma espiritual, e outra material que, ordenadas como estão agora, são chamadas de céu e terra. Confissões XII, XVII

A Escritura não menciona a CRIAÇÃO por Deus dessa matéria informe, mas deixa também de falar de muitas outras coisas, como, por exemplo, da CRIAÇÃO dos querubins, dos serafins, dos tronos, das dominações, dos principados, das potestades, todas criaturas que o Apóstolo menciona claramente, e que Deus evidentemente criou. Se as palavras: “Deus criou o céu e a terra” — compreendem todas as coisas, que diremos das águas sobre as quais pairava o Espírito de Deus? Confissões XII, XXII

Se pretendemos que sejam parte do que designa a palavra terra, como conceber por isso uma matéria informe, quando vemos as águas tão belas? E, por outro lado, por que está escrito que dessa matéria informe foi criado o firmamento, chamado de céu, quando não se faz menção da CRIAÇÃO das águas? Pois as águas que vemos correr com harmoniosa beleza e não são nem informes, nem invisíveis! E se elas receberam sua beleza quando Deus disse: “Que se reúnam as águas que estão sob o firmamento! — e se nessa reunião receberam sua formação, que dizer das águas que estão acima do firmamento? Informes, elas não teriam merecido lugar tão honroso, nem é referido com que palavras foram formadas. Confissões XII, XXII

Assim, se o Gênesis é omisso quanto à CRIAÇÃO de certas coisas, CRIAÇÃO essa que está acima de dúvidas para uma fé sadia e uma inteligência segura, e se nenhuma doutrina racional ousa sustentar que essas águas são co-eternas a Deus, pelo fato de as vermos mencionadas no Gênesis sem a menção do momento de sua CRIAÇÃO , por que haveríamos de aceitar, à luz da verdade, que essa matéria informe, que a Escritura chama de terra invisível e desordenada e de abismo tenebroso, foi feita por Deus do nada e por isso não é co-eterna a Deus, embora a narração da Escritura tenha deixado de referir o momento em que foi criada? Confissões XII, XXII

Ouço e medito essas opiniões na medida de meu fraco entendimento, que confesso a Deus, embora ele bem o conheça. Vejo que se podem originar duas espécies de opiniões sobre um testemunho de interprete fidedigno. Uma é reativa à veracidade das coisas, e outra à intenção daquele que as enuncia. Procurar conhecer a verdade sobre a CRIAÇÃO é uma coisa; procurar saber o que Moisés, grande servo de tua lei, quis o que o leitor ou ouvinte entendessem de suas palavras, é outra. Confissões XII, XXIII

Mas poderei dizer com a mesma certeza que Moisés teve essa intenção, e não outra, quando escreveu: “No princípio, criou Deus o céu e a terra”? — Embora esteja persuadido de que isto está claro na tua verdade, não vejo com igual certeza o que Moisés pretendia ao escrever tais palavras. Por essa expressão: “no princípio” pode ter significado: “no começo da CRIAÇÃO”. Por céu e terra, pode ter querido dar-nos a entender, a natureza espiritual e corporal, não já formada e perfeita, mas uma e outra, só esboçada e sem forma. Vejo que ambos os sentidos são igualmente plausíveis. Mas não posso atinar em qual dos dois pensava Moisés quando escrevia essas palavras. Fosse porém qual fosse sua intenção ao exprimir essas palavras, eu não poderia duvidar de que tão grande homem tenha entrevisto a verdade e a tenha formulado adequadamente. Confissões XII, XXIV

Quando leem ou ouvem as palavras de Moisés, veem que tua estável e eterna permanência, ó Deus, domina todos os tempos passados e futuros, e por isso não existe criatura corpórea que não seja obra tua. Veem que tua vontade, confundindo-se com teu ser, criou todas as coisas sem sofrer modificação, sem que nasça nela uma decisão nova, que não existisse antes; que criaste o mundo, não tirando de tua substância uma imagem tua, forma substancial de toda realidade, mas tirando do nada uma matéria informe, diferente de ti mesmo; e esta poderia ser formada à tua imagem pela volta à tua Unidade, segundo a medida previamente estabelecida e concedida a cada ser, de acordo com sua espécie. Veem assim que todas as obras da CRIAÇÃO são excelentes, ou porque permanecem próximas a ti, ou porque, afastadas de ti no tempo e no espaço, fazem ou sofrem as admiráveis variedades do mundo. Reconhecem essas coisas, e por isso se alegram na luz de tua verdade, à medida que o podem com suas forças terrenas. Confissões XII, XXVIII

Outro, ao considerar as mesmas palavras, entende por princípio o começo da CRIAÇÃO, e a expressão: “Deus criou no princípio” significa para ele: “Deus primeiramente fez”. E entre os mesmos que por princípio entendem que Deus criou em sua Sabedoria o céu e a terra, um acredita que céu e terra designam a matéria da qual o céu e a terra foram criados; outro pensa que a expressão se aplica a naturezas já formadas e distintas; outro sustenta que a palavra céu significa natureza formada e espiritual, a terra, a natureza informe e material. Confissões XII, XXVIII

Mas quem interpreta a palavra: “No princípio criou…” como se ela quisesse dizer: “Primeiramente Deus criou…” — apenas pode entender, por céu e terra, se quiser se manter coerente à verdade, a matéria do céu e da terra, isto é, da CRIAÇÃO universal, tanto espiritual como material. Confissões XII, XXIX

Dessas quatro prioridades, a primeira e a última dificilmente se compreendem, enquanto é bem fácil entender as outras duas. É de fato raro e dificultoso conceber a tua eternidade criando, mas conservando-se imutável, as coisas mutáveis e, por isso, antecedendo-as. E precisa ter uma inteligência penetrante para compreender, sem grande esforço, como o som antecede o canto, uma vez que o canto é o som organizado; e uma coisa pode muito bem existir sem forma, mas o que não existe não pode receber forma. Assim, a matéria é anterior ao que dela se forma. e não porque seja sua causa eficiente, pois também é objeto da CRIAÇÃO; nem tampouco porque lhe seja anterior no tempo. De fato, não emitimos em um primeiro instante, sons desarticulados e informes, para depois os ligarmos e formar uma melodia e um canto, como se faz com a madeira e a prata ao fabricarmos uma arca ou um vaso. Confissões XII, XXIX

Sobre as palavras que proferiste no começo da CRIAÇÃO: “Faça-se a luz, e a luz foi feita” — eu entendo que se adaptam com propriedade à criatura espiritual, que já era uma espécie de via apta a receber tua luz. Mas assim como ela não tinha merecido de ti ser essa espécie de vida apta a receber a luz, do mesmo modo, uma vez criada, ela como as demais formas não mereceu de ti essa iluminação. Porque sua informidade não te agradaria se não tivesse tornado luz, e isso não se contentando com existir, mas contemplando a luz que a iluminava, unindo-se intimamente a ela. Assim, ela devia a existência e o viver feliz apenas à tua graça; voltada, por uma escolha feliz, para o que não pode mudar nem para melhor, nem para pior. Voltou-se para ti, que és o único que existes, e só o teu ser é simples, pois o viver e a felicidade são para ti a mesma coisa, porque és tua própria felicidade. Confissões XIII, III

Deste modo já não és mais o único, no segredo de teu discernimento, como eras antes da CRIAÇÃO do firmamento, a distinguir entre a luz e as trevas. Também tuas criaturas espirituais, dispostas e ordenadas nesse mesmo firmamento, depois que tua graça se manifestou através do mundo, brilham sobre a terra, separam o dia da noite e marcam as diferenças dos tempos. De fato, as coisas antigas passaram, e eis que se fizeram novas, nossa salvação está mais próxima do que quando começamos a crer, a noite avançou e se aproximou o dia, coroas o ano com tua benção, envias teus operários à tua messe, semeada pelo trabalho de outros operários, enviando-os também para outra sementeira, cuja messe será colhida no fim dos séculos. Confissões XIII, XVIII

Por isso, o homem que criaste à tua imagem, não recebeu poder sobre os astros do céu, nem sobre o mesmo céu misterioso, nem sobre o dia e a noite que chamaste á existência antes da CRIAÇÃO do céu, nem sobre a massa das águas, que é o mar. Mas recebeu poder sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre todos os animais, sobre toda a terra, e sobre tudo o que se arrasta pela superfície do solo. Confissões XIII, XXIII

Viste, meu Deus, que tudo o que criaste te pareceu excelente. Também nós vemos tua CRIAÇÃO, e ela nos parece excelente. Para cada espécie de obra criada, disseste: “Faça-se” e quando elas se fizeram, viste que eram boas. Sete vezes está escrito — eu as contei — que viste a excelência de tua obra; e na oitava vez contemplaste toda a CRIAÇÃO, e disseste que, no seu conjunto, era não apenas boa, mas muito boa. Tomadas separadamente, tuas obras eram boas; consideradas em seu conjunto, elas eram boas e até excelentes. O mesmo julgamento se pode fazer da beleza dos corpos. Um corpo, formado de membros todos belos, é muito mais bonito que cada um desses membros cuja harmoniosa organização forma o conjunto, embora, considerados à parte, também eles tenham sua beleza própria. Confissões XIII, XXVIII

Por isso, uma coisa é julgar mau o que é bom, como o fazem aqueles de quem falei acima, e outra coisa é o homem ver o que é bom. Todavia, muitos amam tua CRIAÇÃO porque é boa, mas não tem amam nessa CRIAÇÃO; e por isso preferem gozar dela que de ti. Há ainda outro caso, quando alguém vê que uma coisa é boa, mas é Deus que nele vê que essa coisa é boa, e é Deus que é amado em sua CRIAÇÃO. Ele só o pode ser graças ao Espírito que Deus nos deu, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado. Por ele, vemos que tudo o que de algum modo existe é bom, pois recebe seu ser daquele que é, não de um modo qualquer, mas de modo absoluto. Confissões XIII, XXXI

Graças te damos, Senhor! Vemos o céu e a terra, isto é, a parte superior e inferior do mundo material, assim como a CRIAÇÃO espiritual e material. E, como adorno dessas partes que se compõe, o conjunto do Universo, e o conjunto de toda a CRIAÇÃO, vemos a luz que foi criada e separada pelas trevas. Vemos o firmamento do céu, tanto o que está situado entre as águas espirituais superiores e as águas materiais inferiores, como ainda esses espaços de ar, chamados também de céu, onde volitam as aves do céu entre as águas que se evolam em vapores, e nas noites serenas se condensam em orvalho, e as que correm pesadas sobre a terra. Vemos a beleza das águas reunidas nas planícies do mar, e a terra enxuta, ora nua, ora tomando forma visível e ordenada, mãe das plantas e das árvore . vemos os luminares do céu brilhando acima de nós, o sol bastar para o dia, a lua e as estrelas consolando a noite, e todos esses astros marcando e assinalando a cadência do tempo. Vemos o elementos úmido habitado por peixes, monstros, animais alados, porque a densidade do ar que sustenta o voo dos pássaros é aumentada pela evaporação das águas. Vemos a face da terra embelezar-se de animais terrestres, e o homem, criado à tua imagem e semelhança, senhor de todos os animais irracionais, precisamente porque foi feito à tua imagem e se assemelha a ti, em virtude da razão e da inteligência. E como na alma humana há uma parte que domina pela reflexão e outra que se submete na obediência, assim a mulher foi criada fisicamente para o homem; é fora de dúvida que ela possui um espírito e uma inteligência racional, iguais aos do homem, mas seu sexo a coloca sob a dependência do sexo masculino; é desse modo que o desejo, princípio da ação, se submete à razão que concebe a arte do agir retamente. Eis o que vemos, e que cada uma dessas coisas, tomadas por si, são boas, e que todas, em seu conjunto, são muito boas. Confissões XIII, XXXII

Também meditei sobre o significado simbólico da ordem pela qual se fez tua CRIAÇÃO e da ordem pela qual a Escritura relata. Vimos que tuas obras, consideradas cada uma em si, são boas, e em seu conjunto, muito boas. Em teu Verbo, em teu Filho único, vimos o céu e a terra, a cabeça e o corpo da Igreja, predestinadas antes de todos os tempos, quando ainda não havia nem manhã, nem tarde. Depois começaste a executar no tempo o que predestinaste antes do tempo, a fim de revelar teus desígnios ocultos e de dar ordem às nossas desordens — porque pesavam sobre nós nossos pecados, e nos perdíamos longe de ti em voragens de trevas. Teu Espírito misericordioso pairava sobre nós, para nos socorrer no momento oportuno. Justificaste os ímpios; tu os separaste dos pecadores e confirmaste a autoridade de teu Livro entre os superiores, que te eram dóceis, e os inferiores, para que a eles se submetessem. Reuniste em um corpo único, de mesmas aspirações, a sociedade dos infiéis, para que aparecesse o zelo dos fiéis fecundo em obras de misericórdia, e distribuindo aos pobres os bens da terra para adquirir os do céu. Confissões XIII, XXXIV