Agostinho: céu

E como invocarei meu Deus, meu Deus e meu Senhor, se ao invocá-lo o faria certamente dentro de mim? E que lugar há em mim para receber o meu Deus, por onde Deus desça a mim, o Deus que fez o CÉU e a terra? Senhor, haverá em mim algum espaço que te possa conter? Acaso te contêm o CÉU e a terra, que tu criaste, e dentro dos quais também criaste a mim? Será, talvez, pelo fato de nada do que existe sem Ti, que todas as coisas te contêm? E, assim, se existo, que motivo pode haver para Te pedir que venhas a mim, já que não existiria se em mim não habitásseis? Confissões I, II

Eu nada seria, meu Deus, nada seria em absoluto se não estivesses em mim; talvez seria melhor dizer que eu não existiria de modo algum se não estivesse em ti, de quem, por quem e em quem existem todas as coisas? Assim é, Senhor, assim é. Como, pois, posso chamar-te se já estou em ti, ou de onde hás de vir a mim, ou a que parte do CÉU ou da terra me hei de recolher, para que ali venha a mim o meu Deus, ele que disse: Eu encho o CÉU e a terra? Confissões I, II

Porventura o CÉU e a terra te contêm, porque os enches? Ou será melhor dizer que os enches, mas que ainda resta alguma parte de ti, já que eles não te podem conter? E onde estenderás isso que sobra de ti, depois de cheios o CÉU e a terra? Mas será necessário que sejas contido em algum lugar, tu que conténs todas as coisas, visto que as que enches as ocupas contendo-as? Porque não são os vasos cheios de ti que te tornam estável, já que, quando se quebrarem, tu não te derramarás; e quando te derramas sobre nós, isso não o fazes porque cais, mas porque nos levantas, nem porque te dispersas, mas porque nos recolhes. Confissões I, III

– Nada menos que aquele que faz retumbar a abóbada do CÉU com enorme eu, homenzinho, não haveria de fazer o mesmo? Confissões I, XVI

Mas tu, meu amor, em quem desfaleço para me tornar forte, nem és estes corpos que vemos, mesmo no CÉU; nem os outros que não vemos, porque és o Criador e os ocultaste, e não os consideras como as obras primas de tua criação. Confissões III, VI

Depois de assim falar, minha mãe não se aquietava, instando com maiores rogos e mais copiosas lágrimas a que me visitasse, para discutir comigo sobre o tal assunto. O bispo, já com certo enfado de sua insistência, lhe disse: “Vai-te em paz, mulher, e continua a viver assim, que não é possível que pereça o filho de tantas lágrimas” — palavras que ela recebeu como vindas do CÉU, segundo me recordava muitas vezes em seus colóquios comigo. Confissões III, XII

Por isso, não cessava de consultar os impostores chamados matemáticos, já que estes não usavam em suas adivinhações de quase nenhum sacrifício, nem dirigiam preces a nenhum espírito o que, consequentemente, é condenado e repelido com razão pela piedade cristã e verdadeira. Porque o bom é confessar-te, Senhor, e dizer-te: Tem misericórdia de mim, e cura minha alma, porque pecou contra ti, e não abusar da tua indulgência para pecar mais livremente, mas ter sempre presente a sentença do Senhor: Eis-te curado: não peques mais, para que te não suceda algo pior — Estas palavras, cujo efeito salutar os astrólogos querem destruir, dizendo: “O impulso de pecar vem dos céus; foi Vênus, Saturno ou Marte que fizeram isto” — e tudo para que o homem, que é carne, e sangue, e soberba podridão, se sinta sem culpa, e atribua esta ao criador e ordenador do CÉU e das estrelas. E quem é este, senão tu, nosso Deus, suavidade e fonte de justiça, que dás a cada um de acordo com suas obras, e não desprezas ao coração contrito e humilhado? Confissões IV, III

Bem-aventurado o que te ama, Senhor, e ama ao amigo em ti, e ao inimigo por amor a ti; só não perde o amigo quem tem a todos por amigos naquele que nunca se perde. E quem é este, senão nosso Deus, o Deus que fez o CÉU e a terra, e os enche, porque, enchendo-os, os criou? Confissões IV, IX

Filhos dos homens, até quando sereis duros de coração? Será possível que, depois de ter a vida descido até vós, não queirais subir e viver? Mas para onde subis, quando vos ergueis e abris vossa boca no CÉU? Descei para subir, para subir até Deus, já que caístes levantando-vos contra Deus. Confissões IV, XII

Antecedera-o a fama de homem erudito em toda espécie de ciência, e particularmente instruído nas artes liberais. E como eu tinha lido muitas teorias dos filosofo, e as guardava na memória, quis comparar algumas destas com as grandes fábulas do maniqueísmo. Pareciam-me mais prováveis as doutrinas daqueles que chegaram a conhecer a ordem do mundo, embora não tivessem encontrado a seu Criador. Porque tu és grande, Senhor, e pondes os olhos nas coisas humildes, e as elevadas as conheces de longe, e não te aproximas senão dos contritos de coração. Nem és encontrado pelos soberbos, ainda que sua curiosa perícia seja capaz de contar as estrelas do CÉU e as areias do mar; seja capaz de medir as regiões do CÉU e de investigar o curso dos astros. Confissões V, III

Admiram-se disto os ignorantes, e pasmam. Os sábios gloriam-se disso, e se desvanecem, e com ímpia soberba afastam-se e se eclipsam de tua luz. E, prevendo com exatidão o eclipse vindouro do sol, não veem o seu, que já está presente. Não procuram religiosamente saber de onde lhes vem o talento com que investigam essas coisas e, achando que tu as criaste, não se entregam a ti, para que conserves o que lhes deste, nem se te oferecem em sacrifício, como se tivessem feito a si mesmos; nem dão morte às suas soberbas, que alçam voo como aves do CÉU; nem às suas insaciáveis curiosidades que, como peixes do mar, passeiam pelas secretas sendas do abismo; nem às suas luxúrias, que os igualam aos animais do campo, a fim de que tu, ó Deus, fogo devorador, destruas estas suas preocupações de morte, e os torne a criar para uma vida imortal. Confissões V, III

Mas, quem pediu a esse Manés que escrevesse sobre coisas cujo conhecimento não é necessário à piedade? Tu disseste ao homem: Vê que a piedade é a sabedoria. Manés podia muito bem ignorar essa piedade ainda que fosse muito instruído nas ciências profanas. Mas, como não as conhecia, e se atrevia desavergonhadamente a ensiná-las, de nenhum modo conhecia a piedade. Pois certamente é vaidade alardear conhecimentos humanos, mesmo verdadeiros, e é piedade confessar-te a ti. Manés, afastando-se dessa regra, falou tanto sobre essas coisas que foi convencido de sua ignorância pelos que as conhecem bem. Donde se viu-se claramente o crédito que merecia em matérias mais obscuras. Ele não queria ser pouco estimado; empenhou-se em convencer aos demais que tinha em si, pessoalmente, e na plenitude de seu poder, o Espírito Santo, que consola e enriquece teus fiéis. Surpreendido em erro ao falar do CÉU, das estrelas, e do curso do sol e da lua, embora tais coisas não pertençam à religião, claramente deixou ver ser sacrílego seu atrevimento ao ensinar coisas que ignorava e também falsas, e isso com tão insano orgulho a ponto de atribuí-las à pretensa divindade de sua pessoa. Confissões V, V

Por isso, logo que reconheci sua ignorância naquelas ciências em que o julgava grande conhecedor, comecei a desesperar de que me pudesse esclarecer e resolver as dificuldades que me preocupavam. É bem verdade que ele podia ignorar tais coisas e possuir a verdadeira piedade, contanto que não fosse maniqueísta. Seus livros estão cheios de fábulas intermináveis acerca do CÉU e dos astros, do sol e da lua, que eu já não esperava, mas que pudesse explicar tão argutamente como eu o desejava, comparando-as com os cálculos matemáticos que eu lera em outras partes, para ver se deveria preferir o que diziam os livros de Manés, ou se, pelo menos, estes apresentavam demonstrações de igual valor. Confissões V, VII

Ó minha esperança desde a minha juventude! Onde estavas, ou a que lugar te havias retirado? Acaso não foste tu quem me criou, diferenciando-me dos animais, fazendo-me mais sábio que as aves do CÉU? Mas eu caminhava por trevas e resvaladouros, e te buscava fora de mim, e não encontrava o Deus de meu coração; caí nas profundezas do mar. Eu perdera a confiança e desesperava de encontrar a verdade. Confissões VI, I

E também a ti, vida de minha vida, imaginava-te como um Ser imenso, penetrando por todas as partes, através dos espaços infinitos, toda a massa do mundo, alastrando-se sem limites na imensidão, de sorte que a terra, o CÉU e todas as coisas te continham, e tudo isso tinha em ti seu limite, sem que te limitasses em parte alguma. E assim como a massa do ar — deste ar que está sobre a terra — não impede a passagem da luz do sol, não o impede de a atravessar, de a penetrar sem romper ou cortar, antes enchendo-a totalmente, assim eu pensava que não somente a substância do CÉU, do ar e do mar, mas também a da terra se deixava atravessar e penetrar por ti em todas as suas partes, grandes e pequenas, que receberiam tua presença, que, com secreta inspiração, governa interior e exteriormente tudo o que criaste. Confissões VII, I

Igualmente achei nesses livros, dito de diversos e múltiplos modos, que o Filho, consubstancial ao Pai, não considerou usurpação ser igual a Deus, porque o é por natureza. Não dizem porém que se aniquilou a si mesmo, tomando a forma de escravo, que se fez semelhante aos homens, sendo julgado homem por seu exterior; e que se humilhou, fazendo-se obediente até a morte, e morte de cruz, pelo que Deus o ressuscitou entre os mortos, e lhe deu um nome acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobrem todos os joelhos no CÉU, na terra e no inferno, e toda língua confesse que o Senhor Jesus está na glória de Deus Pai. Confissões VII, IX

Ela não estava sobre meu espírito como o azeite sobre a água, como o CÉU sobre a terra, mas estava acima de mim porque me criou; eu lhe era inferior por ter sido criado por ela. Quem conhece a verdade conhece a luz, e quem a conhece, conhece a eternidade. O amor a conhece! Ó eterna verdade, amor verdadeiro, amada eternidade! Tu és meu Deus. Por ti suspiro dia e noite. Quando te conheci pela primeira vez, ergueste-me para me fazer ver que havia algo para ser visto, mas que eu ainda era incapaz de ver. E deslumbraste a fraqueza de minha vista com o fulgor do teu brilho, e eu estremeci de amor e temor. Pareceu-me estar longe de ti numa região desconhecida, como se ouvira tua voz do alto: “Sou o pão dos fortes; cresce, e comer-me-ás. Não me transformarás em ti, como fazes com o alimento da tua carne, mas tu serás mudado em mim”. Confissões VII, X

E para ti, Senhor, não existe absolutamente o mal; e nem para universalidade da tua criação; porque nada existe fora dela, capaz de romper ou de corromper a ordem que tu lhe impuseste. Todavia, em algumas de suas partes, determinados elementos não se harmonizam com outros, e estes são considerados maus. Mas, como esses mesmos elementos combinam com outros, são da mesma forma bons, e bons em si mesmos. E mesmo esses elementos que não concordam entre si se harmonizam com a parte inferior das criaturas que chamamos terra, com seu CÉU cheio de nuvens e de ventos, como lhe é conveniente. Confissões VII, XIII

Uma coisa é ver de um monte agreste a pátria da paz, e não encontrar o caminho que conduz a ela, e fatigar-se debalde por lugares inacessíveis, entre ataques e emboscadas dos desertores fugitivos, com seu chefe, o leão e o dragão, e outra coisa é conhecer o caminho que conduz até lá, defendido pelos cuidados do imperador celeste, e onde não roubam os desertores da milícia do CÉU, pois eles o evitam como um suplício. Confissões VII, XXI

Rompeste com grilhões, e te oferecerei um sacrifício de louvor. Contarei como os rompeste, e todos os que te adoram exclamarão quando me ouvirem: “Bendito seja o Senhor no CÉU e na terra! Grande e admirável é seu nome! Tuas palavras, Senhor, tinham-me gravado profundamente em meu coração, e me via cercado apenas por ti de todos os lados. Tinha certeza de tua vida eterna, embora apenas a visse em enigma e como em espelho. Já fora dissolvida toda dúvida quanto à tua substância incorruptível, ao saber que toda substância procedia dela. E o que desejava não era tanto estar mais certo de ti, mas mais firme em ti. Confissões VIII, I

A tempestade cai sobre os navegantes com ameaça de naufrágio. Todos empalidecem diante da morte iminente. O CÉU e o mar se acalmam, é grande sua alegria, e nasce do muito que temeram. Confissões VIII, III

Então Ponticiano e seu companheiro, que passeavam em outro local do jardim, procurando-os, deram também com a mesma cabana, e os avisaram para que voltassem, pois já entardecia. Mas eles, relataram-lhes sua determinação e propósito, e o modo como nascera e se fixara neles tal desejo, pediram-lhes que, se não quisessem juntar-se a eles, que não os molestassem. Mas estes, sem se converterem, lamentaram a si mesmos, no dizer de Ponticiano, e felicitando-os piedosamente, recomendaram-se às suas orações; depois, arrastando o coração pela terra, voltaram ao palácio, enquanto que os convertidos, fixando seu coração no CÉU, ficaram na cabana. Confissões VIII, VI

Então, em meio àquela luta interior que eu travava violentamente contra mim mesmo no recesso do meu coração, perturbado no rosto e no espírito, volto-me para Alípio exclamando: “Que tanto nos aflige? O que significa isto que ouviste? Levantam-se os ignorantes e arrebatam o CÉU, e nós, com todo nosso saber insensato, nos revolvemos na carne e no sangue! Acaso temos vergonha de segui-los porque se nos adiantaram, e não temos vergonha de não os seguir?” Confissões VIII, VIII

Retirei-me, pois, para o jardim, e Alípio seguiu-me passo a passo; mas, apesar de sua presença, eu não estava menos só. E como haveria ele de me deixar naquele estado? Sentamo-nos o mais longe possível da casa. Eu tremia pela violenta indignação, me enraivecia por não poder seguir teu agrado e aliança, ó meu Deus, aliança pela qual clamavam todos os meus ossos, que te elevavam louvores até o CÉU. E para ir a ti não há necessidade de navios nem de carros, nem mesmo de dar aqueles poucos passos que separavam a casa do jardim onde estávamos. Confissões VIII, VIII

Tinha ouvido dizer que Antão, assistindo por acaso a uma leitura do Evangelho, tomara para si esta advertência: “Vai, vende tudo o que tens, dá-lo aos pobres, e terás um tesouro no CÉU; depois vem e segue-me” — e que esse oráculo decidira imediatamente sua conversão. Confissões VIII, XII

Mas, tu, Senhor, governador do CÉU e da terra, que desvias para teus desígnios as águas da torrente e regulas o curso turbulento dos séculos, curaste a loucura de uma alma com a insânia de outra. Por isso ninguém, ao considerar o caso, atribua a seu poder pessoal o mérito de ter corrigido com suas palavras a alguém cuja emenda deseja conseguir. Confissões IX, VIII

Nossa conversa chegou à conclusão que nenhum prazer dos sentidos carnais, por maior que seja, e por mais brilhante e maior que seja a luz material que o cerca, não parece digno de ser comparado à felicidade daquela vida em ti. Elevando nosso sentimento para mais alto, mais ardentemente em direção ao próprio Ser, percorremos uma a uma todas as coisas corporais, até o próprio CÉU, de onde o sol, a luz e as estrelas iluminam a terra. Confissões IX, X

O que sei, Senhor, sem sombra de dúvida, é que te amo. Feriste meu coração com tua palavra, e te amei. O CÉU, a terra e tudo quanto neles existe, de todas as partes me dizem que te ame; nem cessam de repeti-lo a todos os homens, para que não tenham desculpas. Terás compaixão mais profunda de quem já te compadeceste; e usarás de misericórdia com quem já foste misericordioso. De outro modo, o CÉU e a terra cantariam teus louvores a surdos. Confissões X, VI

Mas, que amo eu, quando te amo? Não amo a beleza do corpo, nem o esplendor fugaz, nem a claridade da luz, tão cara a estes meus olhos, nem as doces melodias das mais diversas canções, nem a fragrância de flores, de unguentos e de aromas, nem o maná, nem o mel, nem os membros tão afeitos aos amplexos da carne. Nada disto amo quando amo o meu Deus. E, contudo, amo uma luz, uma voz, um perfume, um alimento, um abraço de meu homem interior, onde brilha para minha alma uma luz sem limites, onde ressoam melodias que o tempo não arrebata, onde exalam perfumes que o vento não dissipa, onde se provam iguarias que o apetite não diminui, onde se sentem abraços que a saciedade não desfaz. Eis o que amo quando amo o meu Deus! Então, o que é Deus? Perguntei à terra, e ela me disse: “Eu não sou Deus”. E tudo o que nela existe me respondeu o mesmo. Perguntei ao mar, aos abismos e aos répteis viventes, e eles me responderam: “Não somos teu Deus; busca-o acima de nós”. Perguntei aos ventos que sopram; e todo o ar, com seus habitantes, me disse: “Anaxímenes está enganado eu não sou Deus”. Perguntei ao CÉU, ao sol, à luz e às estrelas. “Tampouco somos o Deus a quem procuras” Confissões X, VI

Para me servirem, tenho um corpo e uma alma: aquele exterior, esta interior. Por qual deles deverei perguntar pelo meu Deus, a quem já havia procurado com o corpo desde a terra até o CÉU, até onde pude enviar os raios de meu olhar como mensageiros? Melhor, sem dúvida, é a parte interior de mim mesmo. É a ela que dirigem suas respostas todos os mensageiros de meu corpo, como a um presidente ou juiz, respostas do CÉU, da terra, e de tudo o que existe, e que proclamam: “Não somos Deus” — e ainda — “Ele nos criou”. O homem interior conhece essas coisas por meio do homem exterior; mas o homem interior, que é a alma, também conhece essas coisas por meio dos sentidos do corpo. Confissões X, VI

Mas o amor às coisas criadas os escraviza, e assim os torna incapazes de julgá-las. Ora, elas só respondem aos que podem julgar-lhes as respostas. Elas não mudam sua linguagem, isto é, sua beleza, quando um só as vê, e outro as interroga; elas não lhes aparecem diferentes mas, para uns ficam mudas, enquanto falam a outros. Ou melhor: eles falam a todos, mas apenas se entendem os que comparam sua expressão exterior com a verdade interior. De fato a verdade me diz: “Teu Deus não é nem o CÉU, nem a terra, nem corpo algum. A natureza das coisas o diz para quem sabe ver; a matéria é menor em seus elementos que em seu todo. Por isso, minha alma, digo-te que és superior ao corpo, pois vivificas sua matéria, dando-lhe vida, como nenhum corpo pode dar a outro corpo. Mas teu Deus é também para ti a vida de tua vida. Confissões X, VI

Tudo isto realizo interiormente, no imenso palácio da memória. Ali eu tenho às minhas ordens o CÉU, a terra, o mar, com tudo o que neles pude perceber, com exceção do que já me esqueci. Ali encontro a mim mesmo, recordo de mim e de minhas ações, de seu tempo e lugar, e dos sentimentos que me dominavam ao praticá-las. Ali encontro a mim mesmo, recordo de mim e de minhas ações, de seu tempo e lugar, e dos sentimentos que me dominavam ao praticá-las. Ali estão todas as lembranças do que aprendi, quer pelo testemunho alheio, quer pela experiência. Confissões X, VIII

Também os animais e as aves têm memória, porque de outro modo não voltariam a seus ninhos e tocas, nem fariam outras coisas habituais, e nem mesmo poderiam adquiri hábitos sem a memória. Passarei, pois, além da memória para chegar àquele que me separou dos animais e me fez mais sábio que as aves do CÉU. Passarei além da memória, mas onde te hei de achar, ó Deus verdadeiramente bom, suavidade segura? Onde te hei de encontrar? Se te encontro sem minha memória, estou esquecido de ti, e se não me lembro de ti, como te poderei encontrar? Confissões X, XVII

Mas por ora esta necessidade me é grata, e luto contra essa delícia, para que não me domine; é uma guerra cotidiana que sustento com jejum, reduzindo meu corpo à escravidão. Mas minhas dores são eliminadas pelo prazer, porque a fome e a sede são sofrimentos: queimam e matam como a febre se os alimentos não lhe põem remédio. Mas como esse remédio está sempre à nossa disposição, graças à liberdade de teus dons que põe à disposição de nossa fraqueza a terra, a água e o CÉU, nossas misérias recebem por nós o nome de delícias. Confissões X, XXXI

Resta ainda falar do prazer destes olhos carnais. Oxalá que os ouvidos fraternos e piedosos de teu templo ouvissem a minha confissão! Encerrando assim as tentações da concupiscência que ainda me perseguem, apesar de meus gemidos e dos desejos de ser revestido de meu tabernáculo, que é o CÉU. Confissões X, XXXIV

Teu é o dia e tua é a noite; a um aceno do teu querer, os minutos voam. Concede-me o tempo para meditar nos mistérios de tua lei, e não a feche para os que lhe batem à porta; não foi em vão que quiseste fossem escritas tantas páginas de obscuros segredos. Porventura, estes bosques não terão seus cervos, que ali se abrigam, se alimentam, que aí passeiam, descansam e ruminam? Ó Senhor, aperfeiçoa-me e revela-me o sentido desses mistérios. Tua palavra é minha alegria, tua voz está acima de todos os prazeres. Concede-me o que amo, porque ando enamorado, e amar é um dom que me concedeste. Não abandone teus dons, nem deixe de regar tua erva sedenta. Te exaltarei por tudo o que descobrir em teus livros; que eu ouça a voz de teus louvores. Faz que eu me inebrie de ti, e que eu contemple as maravilhas de tua lei, desde o começo dos tempos, quando fizeste o CÉU, a terra, até que partilharemos do reino do perpétuo de tua cidade santa. Confissões XI, II

Concede-me, Senhor, que eu ouça e compreenda como no princípio criaste o CÉU e a terra. Moisés assim o escreveu. Escreveu e partiu deste mundo, para onde lhe falaste, para junto de ti, e já não está presente para nós. Se estivesse aqui, detê-lo-ia, e dele indagaria, em teu nome, o sentido de tais palavras, e absorveria com atenção as palavras que brotassem de sua boca. Se me falasse em hebraico, em vão sua voz bateria em meus ouvidos, e nenhuma ideia chegaria à minha mente; mas se me falasse em latim, eu compreenderia suas palavras. Confissões XI, III

Existem pois o CÉU e a terra, e clamam que foram criados, mediante de suas transformações e mudanças. Mas o que não foi criado em sua forma definitiva, e todavia existe, nada pode conter que antes já não existisse em sua forma potencial, e nisso consiste a mudança e a variação. Proclamam também, os seres, que não foram criados por si mesmos: “Existimos porque fomos criados. Não existíamos antes, de modo que pudéssemos criar a nós mesmos.” — E essa voz é a voz da própria evidência. És tu, Senhor, quem os criaste. E porque és belo, eles são belos; porque és bom, eles são bons; porque existes, eles existem. Mas tuas obras não são belas, não são boas, não existem de modo perfeito como tu, seu Criador. Comparados contigo, os seres nem são bons, nem belos, nem existem. Isso sabemos, e por isso te rendemos graças; mas nosso saber, comparado com tua ciência, é ignorância. Confissões XI, IV

De que modo criaste o CÉU e a terra, e de que instrumento te serviste para levar a cabo tão grandiosa obra? Pois não procedeste como artesão, que forma um corpo de outro, conforme a concepção de seu espírito, que tem o poder de exteriorizar a forma que vê em si mesmo com o olhar do espírito. De onde lhe vem esse poder do espírito, senão de ti, que o criaste? E essa forma, ele a impõe a uma matéria que preexistia, apta para ser transformada, como a terra, a pedra, a madeira, o outro e tantas outras substâncias. Confissões XI, V

Mas como os fizeste? Como criaste, meu Deus, o CÉU e a terra? Por certo não criaste o CÉU e a terra no CÉU e na terra. Nem tampouco os criaste no ar, nem sob as águas que pertencem ao CÉU e à terra. Não criaste o universo no universo, porque não havia espaço onde pudesse existir. Não tinhas à mão a matéria com que modelar o CÉU e a terra. E de onde viria essa matéria que não tinhas ainda feito para dela fazer alguma coisa? Que criatura pode existir que não exija tua existência? Contudo, falaste e o mundo foi feito. Tua palavra o criou. Confissões XI, V

Se foi portanto com estas palavras sonoras e passageiras que ordenaste: Que se façam o CÉU e a terra! — se foi assim que os criaste, conclui-se que já havia, antes do CÉU e da terra, uma criatura temporal, cujos movimentos puderam fazer vibrar essa voz no tempo. Ora, não havia corpo algum antes do CÉU e da terra; ou se algum existia, tu certamente já o tinhas criado não por meio de uma voz passageira, justamente para que pudesse soar essa voz passageira para dizer: “Façam-se o CÉU e a terra!” E fosse o que fosse o ser de onde saísse tal voz, não teria existido se não o tivesses criado. Mas para criar esse corpo, necessário à emissão destas palavras, de que palavra e serviste? Confissões XI, VI

É nesse princípio, ó Deus, que criaste o CÉU e a terra; em teu Verbo, em teu Filho, em tua virtude, em tua sabedoria, em tua verdade, falando e agindo de modo admirável. Quem o poderá compreender ou explicar? Que luz é essa que por vezes me ilumina, e que fere meu coração sem o lesar? Atemorizo-me e inflamo-me: tremo porque, de certo modo, sou tão diferente dela; e inflamo-me, porque também sou semelhante a ela. A Sabedoria é a mesma sabedoria que brilha em mim de quando em quando: ela rasga as nuvens de minha alma, que novamente me encobrem quando dela me afasto, pelas trevas e pelo peso de minhas memórias. Na indigência, meu vigor enfraqueceu de tal modo, que nem posso mais suportar o meu bem, até que tu, Senhor que te mostraste compassivo com todas minhas iniquidades, cures também todas as minhas fraquezas. Redimirás minha vida da corrupção; hás de me coroar na piedade e na misericórdia, e saciarás com teus bens meus desejos, porque minha juventude será renovada com a da águia. Confissões XI, IX

Ouça, pois, Tua voz em seu interior, quem puder, e eu quero clamar, cheio de em teu oráculo: “Como são magníficas as tuas obras, Senhor, que tudo criaste em tua Sabedoria! Ela é o princípio e nesse princípio criaste o CÉU e a terra”. Confissões XI, IX

Com certeza ainda estão cheios do erro do velho homem os que nos dizem: “Que fazia Deus antes de criar o CÉU e a terra?” — Se estava ocioso, se nada fazia, porque não continuou a se abster sempre de qualquer ação? Se em Deus apareceu um movimento novo, uma vontade nova de dar o ser ao que ainda não tinha criado, como falar de uma verdadeira eternidade se nela nasce uma vontade que não existia antes? Mas a vontade de Deus não é uma criatura, ela é anterior a toda criatura; nenhuma criação seria possível se a vontade do Criador não a precedesse. A vontade, portanto, pertence à própria substância de Deus. Logo, se na substância de Deus nasce algo que antes não existia, não se pode mais com verdade chamá-la eterna. E se, desde toda eternidade, Deus quis a existência da criatura, por que a criatura também não é eterna? Confissões XI, X

Eis minha resposta à questão: “Que fazia Deus antes de criar o CÉU e a terra?” — não responderei jocosamente como alguém para contornar a dificuldade do problema: “Preparava o inferno para os que perscrutam esses mistérios profundos”. — Uma coisa é compreender e outra é brincar. Não, essa não será minha resposta. Prefiro dizer: “Não sei” — pois de fato não sei, que ridicularizar quem faz pergunta tão profunda, ou louvar quem responde com sofismas. Confissões XI, XII

Mas eu digo que tu, meu Deus, és o Criador de toda criatura; e, se por CÉU e terra se entende toda criatura, não temo afirmar: “Antes que Deus criasse o CÉU e a terra, nada fazia. De fato, se tivesse feito alguma coisa, o que poderia ser senão uma criatura? Oxalá eu soubesse tudo o que desejo saber, como sei que nenhuma criatura foi criada antes da criação. Confissões XI, XII

Se algum espírito leviano, vagando por tempos imaginários anteriores à criação, se admirar que o Deus Todo-Poderoso, tu, que criaste e conservas todas as coisas, ó autor do CÉU e da terra, tenha-te mantido inativo até o dia da criação, por séculos sem conta, que esse desperte e tome consciência do erra que gera sua admiração. Como, pois, poderiam transcorrer os séculos se tu, criador, ainda não os tinha criado? E poderia o tempo fluir se não existisse? E como poderiam os séculos passar, se jamais houvessem existido? Portanto, como és o criador de todos os tempos — se é que houve algum tempo antes da criação do CÉU e da terra — como se pode afirmar que ficaste ocioso? Pois também criaste esse mesmo tempo, e este não poderia passar antes que o criasses. Confissões XI, XIII

Se porém, antes do CÉU e da terra não havia tempo algum, porque perguntam o que fazias então? Não poderia haver então se não existia o tempo. Confissões XI, XIII

E repousarei imutável em ti, em tua verdade, na minha forma. não mais tolerarei as perguntas das pessoas que, pela enfermidade que é a pena de seu pecado, tem mais sede de saber do que lhes permite sua capacidade, que dizem: “Que fazia Deus antes de criar o CÉU e a terra?” — ou ainda: “Como lhe veio a ideia de criar algo, se antes nunca fizera nada” — Concede-lhes, Senhor, que reflitam no que dizem, que compreendam que não se pode falar nunca onde não há tempo. Quando se diz que alguém nunca fez nada, que se quer dizer senão que esse tal nada fez em tempo algum? Que eles compreendam que não pode existir tempo na ausência da criação, e deixem de semelhantes falácias. Confissões XI, XXX

Porque aquele que canta ou escuta uma melodia conhecida, dividido entre a expectativa das notas por vir e a lembrança das notas passadas, passa por impressões diferentes. Mas contigo não se dá nada semelhante, tu que és imutável e eterno, Criador verdadeiramente eterno dos espíritos. Como no princípio, conheceste o CÉU e a terra, sem que teu espírito mudasse seu saber, assim criaste o CÉU e a terra, sem que tua ação passasse por etapas distintas. Que aquele que compreende isto te louve, assim como o que não compreende. Oh! Como és sublime! E os de coração humildes são tua morada! Levantas os que caíram, e os que graças a ti continuam eretos, não caem nunca. Confissões XI, XXXI

Que a humildade de minha língua confesse à tua grandeza que criaste o CÉU e a terra; este CÉU que vejo, esta terra que piso, e de onde tiraste a terra que trago em mim. sim, criaste tudo isto. Confissões XII, II

Mas, Senhor, onde está o CÉU de que nos falou a voz do salmista: “O CÉU do CÉU pertence ao Senhor, mas ele deu a terra aos filhos dos homens?” — Onde está esse CÉU que não vemos, e diante do qual tudo o que vemos é apenas terra? Confissões XII, II

De fato, todo este mundo material, cuja base é a terra, embora não seja inteiramente belo em toda parte, recebeu até em seus últimos elementos, uma aparência atraente. Mas, comparado com esse CÉU do CÉU, o CÉU de nossa terra também não passa de terra. Por isso, não é absurdo chamar de terra esses dois grandes corpos visíveis, se os compararmos a esse CÉU misterioso que pertence ao Senhor, e não aos filhos dos homens. Confissões XII, II

Portanto, és tu, Senhor que não mudas ao sabor das circunstâncias, mas que és sempre o mesmo, o mesmo e o mesmo, santo e santo e santo, Senhor, Deus Todo-Poderoso, és tu, Senhor, que no princípio, que vem de ti, em tua Sabedoria, nascida de tua substância, fizeste algo do nada. Criaste o CÉU e a terra, e isso não com tua substância, pois nesse caso, tua criação seria igual a teu Filho unigênito e, por isso, iguais a ti mesmo. E não seria justo que o que não é da tua substância, fosse igual a ti. Confissões XII, VII

Mas fora de ti nada existia com que pudesses fazer o CÉU e a terra, ó Trindade una, Unidade trina. Por isso criaste do nada o CÉU e a terra; duas realidades, uma imensa e outra pequena. Porque és Todo-Poderoso e bom, e só podes criar coisas boas: o grande CÉU e a pequena terra. Confissões XII, VII

Fora de ti nada havia, e desse nada fizeste o CÉU e a terra, tuas duas obras: uma próxima de ti, a outra próxima do nada. Uma que tem acima de si apenas a ti mesmo, e outra que nada tem inferior a ela. Confissões XII, VII

Mas o CÉU do CÉU pertence a ti, Senhor; a terra, que deste aos filhos dos homens para que a vissem e tocassem, não era tal como agora e vemos e tocamos. Era invisível e informe: um abismo sobre o qual não havia luz. As trevas se estendiam sobre o abismo — isto é: mais profundas que o abismo. Esse abismo das águas, agora visíveis, tem até em suas profundezas uma luminosidade, perceptível aos peixes e aos animais que se arrastam no fundo. Mas tudo isso era quase o nada, sendo ainda completamente informe; porém já era um ser apto a receber uma forma. Confissões XII, VIII

Senhor, criaste o mundo de uma matéria sem forma; do nada fizeste este quase nada de onde tiraste as grandes coisas que admiramos, nós, os filhos dos homens. Porque este CÉU corpóreo é de fato admirável, este firmamento que separa uma água de outra, que criaste no segundo dia, depois da luz, dizendo: “Faça-se — e assim se fez”. Chamaste a este firmamento de CÉU: o CÉU desta terra e deste mar que criaste no terceiro dia, dando forma visível à matéria informe, criado por ti antes de todos os dias. Confissões XII, VIII

Já havias criado outro CÉU antes de haver dia; mas era o CÉU do CÉU, porque no princípio criaste o CÉU e a terra. Quanto a esta mesma terra, nada mais era que matéria informe, sendo invisível, caótica e as trevas reinando sobre o abismo. É desta terra invisível, caótica, desta massa informe, deste quase nada, que formaste todas as coisas de que é formado e não formado este mundo mutável, domínio da transformação, que torna possíveis a percepção e a medida do tempo. Porque o tempo é feito da mudança das coisas, de variações e transformações das formas, cuja matéria é esta terra invisível, de que falei acima. Confissões XII, VIII

Por isso, o Espírito que instruiu teu servo, quando relata que no princípio criaste o CÉU e a terra, cala-se sobre o tempo, guarda silêncio sobre os dias. De fato, o CÉU do CÉU, que fizeste no começo, é de alguma maneira uma criatura racional que, mesmo sem ser co-eterna contigo, ó Trindade, participava todavia de tua eternidade. A doçura de te contemplar beatamente a mantém imóvel e unida a ti sem movimento, e desde sua criação escapa às vicissitudes fugazes do tempo. Confissões XII, IX

Também disseste, Senhor, com voz forte ao ouvido de minha alma, que essa criatura, que tem em ti seu único deleite, não te é co-eterna; que goza de ti em união casta e duradoura, sem nunca trair em parte alguma sua natureza mutável; que, se conserva sempre em tua presença e unida a ti com todo seu amor, não tem de esperar futuro, nem que recordar passado, imutável pois com o tempo e o vir a ser. Feliz criatura, se existe, por participar de tua felicidade, feliz de ser perenemente habitada e iluminada por ti! Nada encontro que melhor se possa chamar de CÉU de CÉU que pertence ao Senhor, que a esta habitação de tua divindade, que contempla tuas delícias sem que nada a afaste para outras partes. Puro espírito, intimamente ligado por um elo de paz com esses santos, espíritos, cidadãos de tua cidade, situada no CÉU e acima do nosso CÉU. Confissões XII, XI

Bem consideradas estas coisas, por graça tua, meu Deus, e como me incitasse a bater, e como me abres quando bato, encontro duas criações tuas não afetadas pelo tempo, embora nenhuma delas te seja co-eterna. Uma, que criaste tão perfeita que jamais deixa de te contemplar, que não sofre nenhuma mudança, embora de natureza mutável, e goza de tua eternidade e de tua imutabilidade. Outra, informe, a ponto de lhe ser impossível passar de uma forma para outra, quer no movimento, quer no repouso, e, portanto, incapaz de estar sujeito ao tempo. Mas tu não a deixaste informe pois, antes de qualquer dia, fizeste no principio o CÉU e a terra, as duas obras de que falava. Confissões XII, XII

Mas a terra era invisível e informe, e as trevas reinavam sobre o abismo. Por essas palavras, a Escritura sugere a ideia de algo informe, para ensinar aos poucos aos espíritos que não podem conceber que a falta absoluta de forma não se confunde com o nada. É dessa massa informe que deveria ser criado um segundo CÉU, uma terra visível, ordenada, a água cristalina, e enfim tudo o que foi feito na criação, de acordo com a tradição das Escrituras, em dias sucessivos. Confissões XII, XII

“No princípio criou Deus o CÉU e a terra. A terra era invisível e informe, e as trevas se estendiam sobre o abismo.” Ouço estas palavras, meu Deus, e não encontrando menção do dia em que criaste essas coisas, concluo dessa omissão que se trata do CÉU do CÉU, do CÉU intelectual, onde a inteligência conhece simultaneamente e não por partes; não por enigma, ou como um espelho, mas por inteiro, em plena luz, face a face; conhece não ora isto, ora aquilo, mas, como disse, simultaneamente, sem a sequência temporal. Concluo também que se trata da terra invisível, informe, estranha às vicissitudes do tempo, que ora causam isto, ora aquilo, pois onde não há forma não pode haver isto ou aquilo. Confissões XII, XIII

Dessas realidades, uma de forma acabada desde o início, a outra absolutamente informe, o CÉU, isto é: o CÉU do CÉU, e a terra, isto é: terra invisível e informe, é bem a propósito delas que tua Escritura diz, sem mencionar o dia: “No princípio criou Deus o CÉU e a terra”. E acrescenta imediatamente de que terra se trata. E, indicando que no segundo dia foi criado o firmamento, que foi chamado de CÉU, dá a entender também de que CÉU falara antes, sem precisar o dia. Confissões XII, XIII

Que respondeis, então, meus contraditores? Será isso falso? — Não, dizem eles. — Mas então? Será que erro afirmar que toda criatura que tem forma, que toda matéria susceptível de têla recebe seu ser somente daquele que é Bondade soberana, porque ele é Ente supremo? — Também não o negamos. — Então, que negais? Negais talvez que haja uma criatura sublime, unida por um casto amor ao Deus verdadeiro e eterno, sem lhe ser co-eterna, que dele não se separa nem se desvia para as várias vicissitudes do tempo, mas, pelo contrário, repousa apenas em sua contemplação? Com efeito, te ama tanto quanto pedes, ó Deus, e mostras a ela tua face e a sacias, e ela jamais se afasta de ti, nem rumo a sim mesma. Ela é a morada de Deus, não terrena, e nem formada de substância do CÉU material, habitáculo espiritual que participa de tua eternidade, imaculada por toda a eternidade. Tu a fundaste pelos séculos dos séculos; estabeleceste uma ordem, que não passará jamais. Contudo, essa lei não é co-eterna, porque teve princípio, foi criada. Confissões XII, XV

Não encontramos o tempo antes dessa criação, porque a sabedoria foi a primeira de todas as tuas criações. E é claro que não me refiro à Sabedoria da qual és Pai, ó nosso Deus, e que te é perfeitamente igual e co-eterna, por quem todas as coisas foram criadas, e que é o princípio em que criaste o CÉU e a terra; refiro-me à sabedoria criada, dessa essência intelectual que, pela contemplação da luz, também é luz; a esta, embora criada, também chamamos de sabedoria. E assim como a luz que ilumina difere da luz refletida, a sabedoria criada difere da sabedoria incriada; e a justiça justificante difere da justiça nascida da justificação. Nós fomos também chamados de tua justiça. Porque um de teus servos disse: “Para que, em Cristo, nos tornemos a justiça de Deus”. — Há portanto, uma sabedoria criada antes de todas as coisas, e ela foi criada como espírito racional e inteligente, que habita tua cidade santa, nossa mãe, que está no alto, livre e eterna nos céus — e em que céus, senão aos céus dos céus, que te louvam, esse CÉU que pertence ao Senhor? — Se não encontramos o tempo antes dessa sabedoria, é porque ela precede à criação do tempo, tendo sido criada primeiro, mas antes dela há a eternidade de seu Criador, de quem recebeu sua origem, e não do tempo, pois este ainda não existia, mas pela sua condição de criatura criada. Confissões XII, XV

Eles dizem: “Sem dúvida, isso é verdade, mas não era isso que Moisés queria exprimir quando, inspirado pelo Espírito Santo, escreveu: “No princípio criou Deus e CÉU e a terra” — Pela palavra CÉU, ele não quis significar essa criatura espiritual ou intelectual, que contempla eternamente a face de Deus; e pela palavra terra, uma matéria informe. — Que quis dizer então? — O que nós afirmamos — respondem — isso é o que Moisés quis dizer, e o que expressou naquelas palavras. — E que é que afirmais? — Pelas palavras CÉU e terra quis significar, em primeiro lugar, globalmente e de forma concisa, todo o mundo visível, para em seguida pormenorizar, enumerando os dias, ponto por ponto, esse conjunto que aprouve ao Espírito Santo designar com uma expressão global. O povo rude e carnal ao qual falava era constituído de homens tais que julgou conveniente dar-lhes a conhecer apenas as obras visíveis de Deus”. Confissões XII, XVII

Algum outro dirá, talvez, que a realidade invisível e visível não foi chamada impropriamente de CÉU e terra, e portanto, que o universo criado por Deus na sabedoria, isto é, no princípio, está compreendido sob esses dois termos. Porém as coisas não foram feitas da substância de Deus, mas do nada, e não se confundem com Deus, e nelas existe o princípio da mutabilidade, quer permaneçam como morada eterna de Deus, quer mudando-se como a alma e o corpo do homem. Confissões XII, XVII

Por isso a matéria comum a todas as coisas invisíveis e visíveis, matéria ainda informe, mas susceptível de forma, e de onde se fariam o CÉU e a terra — em outras palavras, a criação invisível e visível — mas uma e outra tendo recebido forma, foi designada por essas expressões de terra invisível e informe, e de trevas reinando sobre o abismo. Com a seguinte distinção: por terra invisível e informe deve-se entender a matéria corpórea antes de ser qualificada pela forma; e por trevas reinando sobre o abismo, a matéria espiritual antes da restrição de sua, digamos, imoderada fluidez, e antes de ser iluminada pela sabedoria. Confissões XII, XVII

Poderia alguém afirmar, se quisesse: Esses termos CÉU e terra não significam realidades perfeitas e acabadas, lá onde lemos: No princípio Deus criou o CÉU e a terra — mas um esboço ainda informe, uma matéria passível de receber forma e servir para a criação; nela já existiam, como que um embrião, sem distinção de formas e de qualidades, essas criaturas, uma espiritual, e outra material que, ordenadas como estão agora, são chamadas de CÉU e terra. Confissões XII, XVII

A verdade, Senhor é que criaste o CÉU e a terra. A verdade é que o princípio é tua Sabedoria, em que criaste todas as coisas. É também verdade que este mundo visível se compõe de duas grandes partes, o CÉU e a terra, síntese de todas as realidades criadas. É ainda verdade que tudo o que é mutável sugere a nosso pensamento a ideia de algo informe, susceptível de tomar forma, de mudar e de se transformar. Confissões XII, XIX

A verdade é que um ser tão intimamente unido a uma forma mutável que, embora sujeito em si a mudanças, nunca se transforma, não está sujeito ao tempo. A verdade é que a massa sem forma, que é quase o nada, não pode conhecer as vicissitudes do tempo. A verdade é que a matéria que constitui uma coisa, se assim podemos falar, toma o nome dessa coisa, e portanto, podemos chamar de CÉU e de terra a essa massa informe com a qual foram feitos o CÉU e a terra. Confissões XII, XIX

Todas essas verdades, das quais não duvidam os que de ti receberam a graça de ver com os olhos da alma, e que creem firmemente que teu servo Moisés falou em espírito de verdade, há quem dê esta interpretação: “No princípio Deus criou o CÉU e a terra” — isto é, Deus criou, em seu Verbo, que lhe é co-eterno, o mundo racional e sensível, ou espiritual e corporal. Outro diz: “No princípio Deus criou o CÉU e a terra” — isto é, Deus criou em seu Verbo, que lhe é co-eterno, toda a massa do mundo corpóreo, com tudo o que contém de realidades, manifestamente conhecidas. Confissões XII, XX

Um terceiro diz: “No princípio Deus criou o CÉU e a terra” — isto é, Deus criou em seu Verbo, que lhe é co-eterno, a matéria informe das criaturas espirituais e corporais. Outro afirma: “No princípio Deus criou o CÉU e a terra” — isto é, Deus criou a matéria informe das criaturas corporais, onde estavam ainda confundidos o CÉU e a terra, que agora distinguimos na massa do universo, com suas formas bem distintas e determinadas. Confissões XII, XX

Um último diz: “No princípio Deus criou o CÉU e a terra” — isto é, desde que começou a agir, Deus criou a matéria informe, onde estavam contidos confusamente em potencial o CÉU e a terra, que depois receberam forma própria, e que agora nos aparecem com tudo o que neles existe. Confissões XII, XX

Outro diz: “A terra era invisível e caótica, e as trevas se estendiam sobre o abismo” — isto é, esse conjunto que chamamos de terra e CÉU era a matéria ainda informe e tenebrosa, da qual seriam tirados o CÉU e a terra corpóreos, com tudo o que nossos sentidos físicos neles percebem. Confissões XII, XXI

Outro diz: “A terra era invisível e caótica, e as trevas se estendiam sobre o abismo” — isto é, esse conjunto que chamamos de CÉU e de terra era a matéria ainda informe e tenebrosa, donde seriam feitos o CÉU inteligível, noutros termos, o CÉU do CÉU, e a terra, isto é, toda natureza corpórea, nela incluindo o CÉU material, ou seja, a matéria de toda criatura visível e invisível. Confissões XII, XXI

Outro diz: “A terra era invisível e caótica, e as trevas se estendiam sobre o abismo” — isto é, não quis a Escritura chamar à massa informe de CÉU e de terra, porque ela já existia; é dessa massa que ela chamou de terra invisível, caótica, abismo de trevas, é dela, que Deus criou o CÉU e a terra, isto é, a criatura espiritual e a corporal. Confissões XII, XXI

E outro ainda: “A terra era invisível e caótica, e as trevas se estendiam sobre o abismo” — isto é, já existia uma matéria informe, da qual a Escritura diz que Deus criou o CÉU e a terra, toda a massa corporal do mundo, dividido em duas grandes partes, uma superior, outra inferior, com todas as criaturas nelas existentes e que nos são familiares. Confissões XII, XXI

Mas a essas últimas opiniões alguém poderia opor a seguinte objeção: “Se não quereis dar o nome de CÉU e terra à matéria informe, havia então alguma coisa não criada por Deus, e de que ele se serviria para criar o CÉU e a terra. De fato, a Escritura, não diz que Deus criou essa matéria, a menos que consideremos que seja ela o que chama CÉU e terra quando diz: “No princípio Deus criou o CÉU e a terra” — No que se segue: “A terra era invisível e informe” — ainda que a Escritura quisesse designar assim a matéria informe, nós apenas poderíamos entender com isso a matéria criada por Deus, conforme está escrito: “Criou o CÉU e a terra” — Aos que sustentam as duas últimas opiniões que acabamos de expor, ou de uma das duas, respondem assim: “Não negamos que esta matéria informe seja obra de Deus, de quem procede tudo o que é bom. De fato afirmamos ser um bem superior o que é criado e plenamente formado, mas também dizemos que aquilo que é passível de ser criado e receber forma, embora seja um bem inferior, é ainda um bem. Confissões XII, XXII

A Escritura não menciona a criação por Deus dessa matéria informe, mas deixa também de falar de muitas outras coisas, como, por exemplo, da criação dos querubins, dos serafins, dos tronos, das dominações, dos principados, das potestades, todas criaturas que o Apóstolo menciona claramente, e que Deus evidentemente criou. Se as palavras: “Deus criou o CÉU e a terra” — compreendem todas as coisas, que diremos das águas sobre as quais pairava o Espírito de Deus? Confissões XII, XXII

Se pretendemos que sejam parte do que designa a palavra terra, como conceber por isso uma matéria informe, quando vemos as águas tão belas? E, por outro lado, por que está escrito que dessa matéria informe foi criado o firmamento, chamado de CÉU, quando não se faz menção da criação das águas? Pois as águas que vemos correr com harmoniosa beleza e não são nem informes, nem invisíveis! E se elas receberam sua beleza quando Deus disse: “Que se reúnam as águas que estão sob o firmamento! — e se nessa reunião receberam sua formação, que dizer das águas que estão acima do firmamento? Informes, elas não teriam merecido lugar tão honroso, nem é referido com que palavras foram formadas. Confissões XII, XXII

Mas poderei dizer com a mesma certeza que Moisés teve essa intenção, e não outra, quando escreveu: “No princípio, criou Deus o CÉU e a terra”? — Embora esteja persuadido de que isto está claro na tua verdade, não vejo com igual certeza o que Moisés pretendia ao escrever tais palavras. Por essa expressão: “no princípio” pode ter significado: “no começo da criação”. Por CÉU e terra, pode ter querido dar-nos a entender, a natureza espiritual e corporal, não já formada e perfeita, mas uma e outra, só esboçada e sem forma. Vejo que ambos os sentidos são igualmente plausíveis. Mas não posso atinar em qual dos dois pensava Moisés quando escrevia essas palavras. Fosse porém qual fosse sua intenção ao exprimir essas palavras, eu não poderia duvidar de que tão grande homem tenha entrevisto a verdade e a tenha formulado adequadamente. Confissões XII, XXIV

Alguns, lendo ou escutando aquelas palavras, imaginam a Deus como homem ou como massa material dotada de imenso poder que, por decisão nova e repentina, criara fora de si mesma e como que à distância, o CÉU e a terra, esses dois grandes corpos, um superior, outro inferior, onde estão contidas todas as coisas. E ao ouvirem dizer:”Deus disse: faça-se isto! E isto foi feito! — imaginam que se trata de palavras comuns, que começam e terminam, que soam no tempo e passam. Julgam que, logo após pronunciadas, começa existir o que ordenaram que existisse. Todas as suas demais concepções ressentem-se do mesmo hábito de pensar de modo carnal. Confissões XII, XXVII

Outro, ao considerar as mesmas palavras, entende por princípio o começo da criação, e a expressão: “Deus criou no princípio” significa para ele: “Deus primeiramente fez”. E entre os mesmos que por princípio entendem que Deus criou em sua Sabedoria o CÉU e a terra, um acredita que CÉU e terra designam a matéria da qual o CÉU e a terra foram criados; outro pensa que a expressão se aplica a naturezas já formadas e distintas; outro sustenta que a palavra CÉU significa natureza formada e espiritual, a terra, a natureza informe e material. Confissões XII, XXVIII

Aqueles porém que entendem por CÉU e terra a matéria ainda informe, com a qual viriam a ser formados o CÉU e a terra, não têm unanimidade: um concebe essa matéria como origem comum das criaturas sensíveis e espirituais, outro apenas como fonte de massa sensível e corpórea, contendo em seu vasto seio todas as realidades visíveis, oferecidas a nossos sentidos. Confissões XII, XXVIII

Tampouco são unânimes os que creem que nesse texto CÉU e terra se referem às criaturas já formadas e dispostas; um acredita que se trata do mundo invisível e visível; outro, apenas do mundo visível, onde se contempla o CÉU luminoso e a terra tenebrosa, com tudo o que eles contêm. Confissões XII, XXVIII

Mas quem interpreta a palavra: “No princípio criou…” como se ela quisesse dizer: “Primeiramente Deus criou…” — apenas pode entender, por CÉU e terra, se quiser se manter coerente à verdade, a matéria do CÉU e da terra, isto é, da criação universal, tanto espiritual como material. Confissões XII, XXIX

Compreende-se por esse exemplo, que a matéria das coisas foi criada antes, e chamada de CÉU e terra, porque dela foram formados o CÉU e a terá. Não foi criada antes em sentido cronológico, porque o tempo só tem início com a forma das coisas; ora, a matéria era informe, e se tornou perceptível juntamente com o tempo. Todavia, nada se pode mencionar dessa matéria a não ser alguma prioridade temporal, embora ocupe a última posição na escala de valores, pois o que tem forma é evidentemente superior ao que é informe. Ou que foi precedida pela eternidade do Criador, que a fez para que fossem feitas do nada todas as coisas. Confissões XII, XXIX

É pela plenitude de tua bondade que as criaturas subsistem, para que um bem, para ti de todo inútil, ou de nenhum modo igualável a ti, embora saído de ti, continuasse a existir, pois tu o criaste. Com efeito, que poderiam merecer de ti o CÉU e a terra, que criaste no princípio? E digam, as naturezas espirituais e corpórea, que méritos tinham a teus olhos, que as criaste em tua Sabedoria? Que méritos, para receber de ti o ser, que mostram inacabado e informe, quando tendem à desordem e se afastam de tua semelhança? O que é de natureza espiritual, mesmo informe, é ainda superior a um corpo que recebeu forma; um corpo sem forma é superior ao puro nada; ora, todas essas coisas continuariam informes em teu Verbo, se essa mesma palavra não as recolhesse à tua Unidade, comunicando-lhes a forma e a excelência graças apenas a ti, soberano Bem. Mas que merecimentos antecipados apresentaram a teus olhos, para existir mesmo informes essas criaturas que, sem que as criasses nem teriam existido? Confissões XIII, II

Mas eis que me aparece o enigma da Trindade que és, meu Deus. Porque tu, Pai, criaste o CÉU e a terra no princípio de nossa Sabedoria, que é tua Sabedoria, nascida de ti, igual e co-eterna, a ti, isto é, em teu Filho. Confissões XIII, V

Já falei longamente do CÉU do CÉU, da terra invisível e informe e do abismo das trevas, onde a natureza espiritual errante e fluida permaneceria tal se não se voltasse para Aquele de quem toda vida procede, para que, por meio de sua luz, se tornasse viva e bela, o CÉU do CÉU, criado mais tarde entre a água superior e a água inferior. Confissões XIII, V

Mas, ó luz da verdade, aproximo de ti meu coração para que ele não me ensine falsidades; dissipa-lhe as trevas e dize-me, eu to suplico por nossa mãe, a caridade, dize-me, por que só depois de ter nomeado o CÉU, a terra invisível e informe e as trevas sobre o abismo, por que só então é que as Escrituras falam de teu Espírito? Será porque convinha apresentá-lo assim pairando sobre alguma coisa? E seria isso possível se não mencionasse primeiro sobre o que pairava? De fato, não era sobre o Pai nem sobre o Filho que ele pairava, e seria impróprio falar assim se não pairasse sobre alguma coisa. Confissões XIII, VI

O anjo caiu, a alma do homem caiu, revelando assim as profundas trevas em que teria caído o abismo que continha todas as criaturas espirituais, se não tivesses dito desde o começo: “Faça-se a luz!” — se a luz não se tivesse feito, se todas as inteligências de tua cidade celeste não se tivessem unido na obediência a ti, se não tivessem repousado em teu Espírito que paira, imutável, sobre os seres transitórios. De outro modo, até o CÉU do CÉU não seria mais que abismo de trevas, enquanto que agora é luz no Senhor. Confissões XIII, VIII

Ó minha , vai adiante em tua confissão. Dize a teu Senhor: “Santo, santo, santo! É o Senhor, meu Deus! — Em teu nome fomos batizados, Pai. Filho e Espírito Santo; em teu nome batizamos, Pai, Filho e Espírito Santo. Também entre nós Deus criou, pelo seu Cristo, um CÉU e uma terra, isto é, os espirituais e os carnais de sua Igreja. E nossa terra, antes de receber a forma da doutrina, era invisível e informe, e estávamos imersos nas trevas da ignorância, porque castigaste o homem por causa de sua iniquidade, e teus justos juízos são como abismos profundos. Confissões XIII, XII

Contudo, somos luz apenas pela , e não por uma visão clara. É na esperança que fomos salvos, e a esperança que vê não é mais esperança. O abismo clama pelo abismo, mas é já pela voz de tuas cataratas. Não pude falar-vos como a homens espirituais, mas como a carnais. Quem assim fala, não julga ainda ter atingido sua meta e, esquecendo-se do que ficou para trás, avança para o que está vivo, como o cervo tem sede de água das fontes, e diz: “Quando chegarei?” — Ele deseja o abrigo de sua morada, que está no CÉU e chama o abismo inferior dizendo: “Não vos conformeis com este mundo, mas reformai-vos renovando vosso espírito, e não queirais ser crianças na mente, mas sede pequeninos quanto à malícia, para que sejais perfeitos no espírito…” Confissões XIII, XIII

E ainda: “Ó gálatas insensatos, quem vos fascinou?” — Mas não é mais sua voz que fala assim, e sim a tua voz, porque mandaste teu Espírito do alto do CÉU por intermédio de Jesus, que subiu ao CÉU e abriu as cataratas de seus dons, para que a torrente de alegria alegrasse tua cidade. É por essa cidade que suspira o amigo do esposo, ele que já possui as primícias do Espírito, mas que ainda geme, porque está à espera da adoção e do resgate do seu corpo. É por ela que suspira, porque ele é membro da Esposa de Cristo; por ela se abrasa em zelo, porque é o amigo do esposo. Zela por ela, não por si mesmo, pois é pela voz de tuas cataratas, e não com sua própria voz, que ele chama pelo outro abismo, objeto de seu zelo e de seus temores. Assim como a serpente enganou Eva com sua astúcia, ele receia que as inteligências débeis se corrompam e se afastem da pureza que está em teu Esposo, teu Filho único. Quão resplandecente será essa luz, quando o virmos tal como ele é, e quando tiverem passado essas lágrimas que se tornaram o pão de meus dias e de minhas noites, enquanto a cada dia me perguntam: Onde está o teu Deus? Confissões XIII, XIII

E quem, senão tu, nosso Deus, estendeu sobre nós um firmamento de autoridade, da tua divina Escritura? O CÉU se dobrará como um livro, e agora ele se estende sobre nós como um pergaminho. Mais sublime é a autoridade de que goza tua divina Escritura depois que morreram aqueles que cujo intermédio no-las comunicaste. E sabes, Senhor, sabes como cobriste de peles os homens, quando o pecado os tornou mortais. Por isso estendeste como um pergaminho o firmamento de teu Livro, e tuas palavras em tudo concordes, que dispuseste sobre nós pelo ministério de homens mortais. Por sua morte, a autoridade de tuas palavras, por eles divulgadas, desdobra sua força sobre tudo o que existe em baixo; ela não se erguia tão alto enquanto eles viviam. É que ainda não tinhas desenrolado o CÉU como um pergaminho, nem tinhas ainda difundido a glória de sua morte por toda parte. Confissões XIII, XV

Leem, escolhem, amam. Leem perpetuamente, e o que eles leem jamais fenece; escolhendo e amando, leem tua imutável vontade. Teu códice jamais de fecha, jamais se enrola, porque tu mesmo és eternamente esse livro; tu os estabeleceste acima deste firmamento, levantado por ti acima da fraqueza dos povos da terra, para que estes, olhando-o, reconheçam tua misericórdia, que te anuncia no tempo, tu criador do tempo. Tua misericórdia está no CÉU, e tua verdade se eleva até às nuvens. As nuvens passam, mas o CÉU permanece. Os que pregam tua palavra passam para uma outra vida, mas tua Escritura se estende sobre os povos até o fim dos séculos. Confissões XIII, XV

O CÉU e a terra passarão, mas tuas palavras não passarão. O pergaminho será enrolado, e a erva sobre o qual se estendia passará com seu esplendor, mas a tua palavra permanecerá eternamente. Agora ela nos aparece no enigma das nuvens e através do espelho dos céus, e não como é na realidade, porque ainda não se manifestou o que havemos de ser, apesar de amados pelo teu filho. Ele nos olhou através da teia da sua carne e nos acariciou, e nos inflamou de amor, e corremos atrás de sua fragrância. Mas quando ele aparecer seremos semelhantes a ele, porque o veremos tal como ele é. Vê-lo tal qual é será nossa felicidade, mas nós ainda não o podemos contemplar. Confissões XIII, XV

Por desígnio eterno, lanças sobre a terra os bens do CÉU no tempo oportuno; a um, teu Espírito dá a palavra de sabedoria, luminar maior para os que encontram seu deleite na luz de uma verdade clara como o raiar do dia; a outro dás, pelo mesmo Espírito, a palavra de ciência, luminar menor; a outro a ; a outro o poder de curar; a outro o dom dos milagres; a outro a graça da profecia; a este o discernimento dos espíritos, àquele o dom das línguas. E todos esses dons são como estrelas, são obra de um só e mesmo Espírito, que reparte a cada um os seus dons como lhe agrada, e que faz aparecer tais astros para o bem comum. Confissões XIII, XVIII

Mas antes, lavai-vos, purificai-vos, arrancai a iniquidade de vossos corações e de meus olhos, para que apareça a terra seca. Aprendei a fazer o bem, sede justos para com o órfão e defendei a viúva, para que a terra produza a erva tenra e árvores cheias de frutos. Vinde e dialoguemos, diz o Senhor, e assim no firmamento do CÉU se ascenderão luminares que brilharão por sobre a terra. Confissões XIII, XIX

— Tudo isto já fiz — diz o rico. — De onde vêm pois tantos espinhos, se a terra é fértil? — Vai, arranca os espessos emaranhados da avareza, vende teus bens, enriquece-te dando tudo aos pobres, e possuirás um tesouro no CÉU; segue o Senhor se queres ser perfeito, junta-te aos que ele instrui nas palavras de sabedoria, ele que sabe o que se deve dar ao dia e à noite. Também tu o saberás, e eles se tornarão para ti luminares no firmamento do CÉU. Mas isso não se realizará se ali não estiver teu coração, e teu coração, não estará onde não estiver teu tesouro — Assim falou teu bom Mestre. Mas a terra estéril entristeceu, e os espinhos sufocaram a Palavra divina. Confissões XIII, XIX

Como se Deus tivesse dito: Façam-se luminares no firmamento, e logo se fez ouvir um ruído vindo do CÉU, semelhante ao de um vento violento, e foram vistas línguas de fogo, que se dividiram e se colocaram sobre cada um deles. E apareceram luminares no CÉU, que possuíam a palavra de vida. Correi por toda parte, chamas sagradas, fogos admiráveis. Vós sois a luz do mundo, e não estais debaixo do alqueire. Aquele a quem vos unistes foi exaltado e ele vos exaltou. Correi e dai-vos a conhecer a todas as nações. Confissões XIII, XIX

A terra que estendeste acima das águas não tem necessidade dessa espécie de aves que as águas produziram por ordem de teu Verbo. Envia-lhe, pois, teu Verbo, por meio de teus mensageiros. Nós falamos de suas obras, mas quem age por seu intermédio, para que produzam uma alma viva, és tu. A terra a germina porque é a causa dos fenômenos que ocorrem na superfície, assim como o mar foi causa da produção dos répteis dotados de almas vivas, e das aves sob o firmamento do CÉU. A terra já não necessita destas criaturas, embora ela se alimente de peixes pescados nas profundezas do mar, nessa mesa que preparaste na presença dos crentes; porque eles foram pescados nas profundezas do mar para alimentar a terra árida. Confissões XIII, XXI

Ele julga tudo, significa que tem autoridade sobre os peixes do mar, sobre os pássaros do CÉU, sobre os animais domésticos e selvagens, sobre toda a terra e sobre todos os répteis que nela se arrastam. Exerce esse poder pela inteligência, pela qual percebe as coisas que são do Espírito de Deus. Mas, elevado a tão grande honra, o homem não entendeu sua dignidade, igualou-se aos jumentos insensatos, tornando-se semelhante a eles. Confissões XIII, XXIII

Por isso, o homem que criaste à tua imagem, não recebeu poder sobre os astros do CÉU, nem sobre o mesmo CÉU misterioso, nem sobre o dia e a noite que chamaste á existência antes da criação do CÉU, nem sobre a massa das águas, que é o mar. Mas recebeu poder sobre os peixes do mar, sobre as aves do CÉU, sobre todos os animais, sobre toda a terra, e sobre tudo o que se arrasta pela superfície do solo. Confissões XIII, XXIII

E note ainda nisto, meu leitor. Há uma frase que a Escritura declara de uma só forma, e que a voz fala apenas dessa maneira: “No princípio criou Deus o CÉU e a terra” — E não pode a frase ser interpretada diversamente — descartando o erro ou o sofisma — conforme os diversos pontos de vista legítimos? É assim que crescem e se multiplicam as gerações dos homens! Se consideramos a natureza das coisas, não alegoricamente, mas em sentido próprio, a sentença: “Crescei e multiplicai-vos” — se aplica a todas as criaturas que nascem de uma semente. Se, ao contrário, a interpretamos em sentido figurado, como penso que foi a intenção da Escritura, que não limita inutilmente essa benção aos peixes e aos homens, encontramos então multidões de criaturas espirituais e temporais, como no CÉU e na terra; de almas justas e injustas, como na luz e nas trevas; de escritores sagrados que nos anunciaram a Lei, como no firmamento estabelecido entre as águas; na sociedade amargurada dos povos, como no mar; no zelo das almas piedosas, como em terra enxuta; nas obras de misericórdia praticadas nesta vida, como nas plantas que nascem de semente e nas árvore frutíferas; nos dons espirituais concedidos para o bem de todos, como nos luminares do CÉU; nas paixões dominadas pela temperança, como na alma viva. Em todas essas coisas encontramos multidões, fecundidade, crescimento. Mas que esse crescimento e essa proliferação exprimam uma mesma ideia de vários modos e que uma só expressão possa ser entendida de muitas maneiras, esse fato, apenas o encontramos nos sinais sensíveis e nos conceitos intelectuais. Confissões XIII, XXIV

Tu nos deste para alimento todas as ervas que produzem semente e que cobrem a terra, e todas as árvore que contém em si, em germe, seus frutos. E não foi somente a nós que deste esse alimento, mas também às aves do CÉU, aos animais da terra e aos répteis, mas não aos peixes e aos grandes cetáceos. Dizíamos que esses frutos da terra significam e representam alegoricamente as obras de misericórdia, que a terra fecunda produz para as necessidades desta vida. Era semelhante a uma terra assim o piedoso Onesíforo, cuja casa recebeu a graça de tua misericórdia, porque muitas vezes assistira a teu Paulo, sem se envergonhar por suas cadeias. Confissões XIII, XXV

É o mesmo que fizeram os irmãos que, de Macedônia, lhe forneceram o que lhe era necessário, produzindo também abundante fruto. E contudo, o Apóstolo se queixa de certas árvore que não lhe tinham dado fruto devido, quando escreve: “em minha primeira defesa ninguém me assistiu; todos me abandonaram. Que isto não lhes seja imputado!” — Tais frutos são devidos aos que nos ministram doutrina racional, ajudando-nos a compreender os mistérios divinos. E nós lhes devemos exemplos de todas as virtudes; e também lhes devemos os frutos como a pássaros do CÉU, por causa das bênçãos que distribuem abundantemente sobre a terra, pois sua voz se fez ouvir por toda a terra. Confissões XIII, XXV

Graças te damos, Senhor! Vemos o CÉU e a terra, isto é, a parte superior e inferior do mundo material, assim como a criação espiritual e material. E, como adorno dessas partes que se compõe, o conjunto do Universo, e o conjunto de toda a criação, vemos a luz que foi criada e separada pelas trevas. Vemos o firmamento do CÉU, tanto o que está situado entre as águas espirituais superiores e as águas materiais inferiores, como ainda esses espaços de ar, chamados também de CÉU, onde volitam as aves do CÉU entre as águas que se evolam em vapores, e nas noites serenas se condensam em orvalho, e as que correm pesadas sobre a terra. Vemos a beleza das águas reunidas nas planícies do mar, e a terra enxuta, ora nua, ora tomando forma visível e ordenada, mãe das plantas e das árvore . vemos os luminares do CÉU brilhando acima de nós, o sol bastar para o dia, a lua e as estrelas consolando a noite, e todos esses astros marcando e assinalando a cadência do tempo. Vemos o elementos úmido habitado por peixes, monstros, animais alados, porque a densidade do ar que sustenta o voo dos pássaros é aumentada pela evaporação das águas. Vemos a face da terra embelezar-se de animais terrestres, e o homem, criado à tua imagem e semelhança, senhor de todos os animais irracionais, precisamente porque foi feito à tua imagem e se assemelha a ti, em virtude da razão e da inteligência. E como na alma humana há uma parte que domina pela reflexão e outra que se submete na obediência, assim a mulher foi criada fisicamente para o homem; é fora de dúvida que ela possui um espírito e uma inteligência racional, iguais aos do homem, mas seu sexo a coloca sob a dependência do sexo masculino; é desse modo que o desejo, princípio da ação, se submete à razão que concebe a arte do agir retamente. Eis o que vemos, e que cada uma dessas coisas, tomadas por si, são boas, e que todas, em seu conjunto, são muito boas. Confissões XIII, XXXII

Foram feitas por ti do nada, não de tua substância, nem de nenhuma substância estranha ou inferior a ti, mas de matéria concriada, isto é, criada por ti ao mesmo tempo em que lhe deste forma, sem nenhum intervalo de tempo. Sem dúvida a matéria do CÉU e da terra é uma coisa, e sua forma é outra; a matéria tua a fizeste do nada, a forma, tu a tiraste da matéria informe. Confissões XIII, XXXIII

Também meditei sobre o significado simbólico da ordem pela qual se fez tua criação e da ordem pela qual a Escritura relata. Vimos que tuas obras, consideradas cada uma em si, são boas, e em seu conjunto, muito boas. Em teu Verbo, em teu Filho único, vimos o CÉU e a terra, a cabeça e o corpo da Igreja, predestinadas antes de todos os tempos, quando ainda não havia nem manhã, nem tarde. Depois começaste a executar no tempo o que predestinaste antes do tempo, a fim de revelar teus desígnios ocultos e de dar ordem às nossas desordens — porque pesavam sobre nós nossos pecados, e nos perdíamos longe de ti em voragens de trevas. Teu Espírito misericordioso pairava sobre nós, para nos socorrer no momento oportuno. Justificaste os ímpios; tu os separaste dos pecadores e confirmaste a autoridade de teu Livro entre os superiores, que te eram dóceis, e os inferiores, para que a eles se submetessem. Reuniste em um corpo único, de mesmas aspirações, a sociedade dos infiéis, para que aparecesse o zelo dos fiéis fecundo em obras de misericórdia, e distribuindo aos pobres os bens da terra para adquirir os do CÉU. Confissões XIII, XXXIV